Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) era catedrática de
Cultura Clássica na Faculdade de Letras em Coimbra, para além de tradutora de
grandes obras diretamente do grego e do latim. Foi minha professora dessa
disciplina durante dois anos. Faleceu a 10 de abril obrigando Portugal a
múltiplas homenagens. Senti um profundo incómodo pelo seu desaparecimento.
Maria Helena era uma professora invulgar, rara. Com uma aparência frágil,
dobrada sobre si própria, embrenhada em pensamentos, passava por nós com um
sorriso estampado no rosto. Foi a primeira professora catedrática da
Universidade. Preparou a tese em Oxford, em 1949, ainda com a Grã-Bretanha a
senhas de racionamento da guerra. O seu saber era profundíssimo e o legado que
nos deixou inesquecível. A questão final e habitual em MHRP, quando nos
encontrávamos com ela nos exames, era esta: «qual o legado que nos deixou a
cultura grega para as nossas culturas ocidentais?». Nos finais de 70 e inícios
dos 80, não éramos muito afins à dita «civilização ocidental». Mas tentávamos,
na nossa arrogante e eventual sapiência de estudantes, ligarmos Aristóteles à
democracia (de preferência, direta), Platão ao autoritarismo, procurávamos Nietzsche,
citávamos Goethe, transpirávamos o tardio Luciano, destacávamos a fraturante
Safo, entrávamos felizes pelo etéreo das pitonisas de Delfos e pelas neves do
Olimpo, replicávamos as Bacantes; contudo, MHRP, nas aulas, tinha-nos avisado:
«Não vão só por aí!». A cultura grega, afirmava, deixou-nos alguns momentos
marcantes à nossa cultura europeia: a despedida de Heitor de Andrómaca «…pôs
nos braços da esposa o filhinho; ela recebeu-o no seio perfumado, entre risos e
lágrimas; condoeu-se o marido ao vê-la, acariciou-a e dirigiu-lhe (…) palavras,
chamando-a pelo nome…», o pedido de resgate do cadáver de Heitor ao brutal
Aquiles pelo pai, Príamo, na Ilíada
«…Colocando-se perto, abraçou-se aos joelhos de Aquiles e beijou-lhe as mãos
terríveis, assassinas, que lhe mataram tantos dos seus filhos…», e o gesto
arrependido de Aquiles que manda alindar o corpo de Heitor. Na Odisseia, o choro de Ulisses quando ouve
uma canção que lhe lembra a saudosa Ítaca e o reconhecimento e morte do seu cão
quando lá chega «...Mas a Moira da morte negra se apossara de Argos, assim que
vira Ulisses, ao cabo de vinte anos.» Segundo Maria Helena eram estes, também,
os momentos da matriz ocidental. Ficávamos dececionados, é certo, mas hoje,
passados mais de trinta anos, percebemo-la…este é o nosso cimento: ódio, amor,
arrependimento, sangue, suor, lágrimas, alegria, vida e morte. A Moira que a
todos espera.
António Luís Catarino
24 de maio de 2017