A Deriva teima na poesia. Tornou-se num mistério que precede
o vício de a editar. Tentamos a coerência e a busca da percepção da sua
importância. Tentamos entendê-la no remetente das opções que nos enviam.
Ricardo Gil Soeiro é, sem qualquer dúvida, um poeta maior. Pela coerência, pela
escrita e pelo tempo que projecta, num jogo de sombras e de marionetas que lhe
fazem frente e a que responde, escrevendo tão bem. A Deriva orgulha-se de
editar este poeta. A Deriva gosta de poesia. A Deriva vai continuar a editar
poesia.
Num livro de
Jean-Claude Pinson editado por nós, em 2011, na pequenina Coleção Pulsar, o
autor pergunta «Para que serve a Poesia, Hoje?». Diz Pinson: «Quando
relacionada com o contexto geral de uma cultura cada vez mais submissa a uma
lógica da mercadoria e do espectáculo, há de facto hoje como que uma miséria da
poesia, reduzida que está a qualquer coisa como 1% do 1% cultural (pois
trata-se de uma miséria subsidiada). (Em França, digo eu). Mesmo se existe um
mercado da poesia, não há verdadeiro mercado para a poesia, cujas vendas
representam uma percentagem ínfima do comércio dos livros (0,3% - e mesmo
assim, só se lhe juntarmos o teatro).
Serão,
contudo, os leitores de poemas menos numerosos hoje do que há um século? Não é
nada certo, se nos lembrarmos do que eram as tiragens no tempo de Mallarmé. E
Hans Magnus Enzensberger não estará certamente errado ao notar que hoje como
ontem a tribo dos leitores de poesia permanece em suma ‘uma pequena minoria de
extremistas’, em número estável nos grandes e nos pequenos países ocidentais
que ele ridiculamente baptiza de ‘constante dita de Enzensberger que seria à
volta de 1354 leitores» (no mundo ocidental, note-se). De qualquer maneira,
Pinson afirma o cada vez menor interesse pela poesia se olharmos para as
páginas dos jornais, pela sua indigência crítica, pela indiferença e, pior que
tudo, pela insuportável condescendência onde não falta uma pretensa ironia de
alguns dos escrivanhadores que, esses sim, deveriam tomar à letra o conselho de
Bartleby. Depois de algumas divagações sobre o papel da poesia no contexto de
outras artes em clara evolução, afirmando que é a única que produz mal-estar no
auto-reconhecimento do poeta como produtor de arte que o é, que a arte
contemporânea adquiriu visibilidade, enquanto que a poesia se escondeu numa
sombra lírica e ainda romântica claramente anacrónica onde a maior parte dos autores
de poesia não lê poesia e em que, possivelmente, há mais autores que leitores
(atenção que em 1828, Leopardi já o dizia). O papel que lhe subjaz, à poesia,
seria então o de «mudar de vida» tão caro a Breton ou aceitar a definição de
René Char (que aliás o Ricardo Gil, cita neste seu livro) como o «sobre-cérebro
da acção», ou seja, numa nova praxis poética. Ora, se assim aceitarmos estas propostas,
como diz Pinson, estaremos a exigir-lhe demais. Seguir-se-ia um contexto de
hesitação esquizofrénica entre culto (Breton) e o «ódio à poesia» de Bataille.
Iríamos assim da irrisão dadaísta à irónica sentença de morte de um Denis Roche
declarando-a «inadmissível». Com estes
pensamentos chegamos à conclusão que a poesia não constitui qualquer «arte
superior» concepção que, até certo ponto, foi responsável pelo seu pretenso
ocaso. Cito-o, de novo: «A insatisfação, o desassossego, a vergonha de si,
mesmo o ódio à poesia – o ódio das suas formas mais batidas e das suas figuras
mais factícias – têm esse mérito essencial de relançar sempre e mais longe a
busca infindável de outra poesia,
capaz de matar um pouco uma sede que não conseguimos verdadeiramente nomear.»
É aqui, é
por aqui, que vejo a poesia de Ricardo Gil Soeiro na construção de uma outra
poesia, de uma forma de linguagem própria, coerente, identificável com
objectivos claros de subversão poética que adquire a relevância e a importância
da sobrevivência na própria poesia. Aliás, já Maria João Cantinho, a 9 de Junho
de 2013, nos tinha avisado na apresentação do Bartlebys Reunidos e que anotei
os seus pontos essenciais. Dizia eu nessa ocasião: «À volta de Bartlebys e da
ideia «I would prefer not to» Maria João Cantinho interpretou e ligou teias
formadas por derivas de negação pela criação literária. Falou-se, portanto, de
Célan, de Rimbaud, de Steiner, de Borges, de Wittegenstein e de muitos outros
para quem a solicitação de deixar de escrever foi forte e, por exemplo no caso
de Rimbaud, foi determinante para a sua vida. Não será preciso ler Melville,
portanto, para entender a poesia de Ricardo Gil Soeiro, mas é condição muito
importante. E é isso que faz a beleza de uma vida poética: a procura incessante
de um tema unificador que faz e refaz experiências, as teias e labirintos da
negação (expressão muito usada por Maria João Cantinho) em que se transforma a
leitura de um poema. Ricardo Gil Soeiro avançou com uma noção mais concreta
destes labirintos, na possibilidade da declaração de Bartleby ser, ela própria,
uma contradição em si mesma.»
«Palimpsesto»,
impressionou-me vivamente e vai marcar as minhas preferências poéticas para
sempre. Digo-o porquê se não se importarem de eu o partilhar convosco. A sua
leitura obrigou-me a uma procura incessante sobre, por exemplo, o Angelus Novus
de Klee e esse anjo levou-me a Maria João Cantinho novamente que, no seu «Anjo
Melancólico», interpreta tão bem Walter Benjamim, quando diz (palavras de
MJC) «Nessa imagem terrível, o Angelus novus revê-se num mundo melancólico e
triste, horrorizado pela sua visão, com um olhar alucinado perante esse horror
e encontrando apenas diante de si, um monte de destroços, que quer reunir
e «salvar», mas uma tempestade que sopra do paraíso prende-lhe as asas,
arrastando-o, impedindo-o de realizar esse gesto». Melhor alegoria para o mundo
e para os horrores de hoje num quadro de Klee, de 1920, dois anos depois do fim
massacre e da despedida dos dadaístas. Melhor metáfora é onde este quadro se
encontra: em Jerusalém, do lado israelita. Num museu provavelmente ultra bem
protegido. O anjo histórico de Walter Benjamim será assim um palimpsesto de uma
História que se reinventa e se reescreve pelos mesmos acontecimentos levados
pelo mal de Arendt. No seu «Anjo sem sorte» Heiner Muller, que Ricardo Gil
também cita, ou melhor, também o observa e o transforma, ele escreve no «Anjo
do Desespero»: «Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas
e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se
acumula o futuro, esmagando-lhes os olhos, fazendo explodir como estrelas os
globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com
o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas…»
Mas deixemos falar o autor do seu trabalho. A 30 de abril de
2013 o Ricardo Gil diz-nos, numa entrevista no nosso blogue, Deriva das
Palavras, e denotando uma extraordinária coerência, o seguinte:
(...) A minha opção
é, todavia, outra. Se parto em busca de uma re-humanização poética do sentido,
tal não significa que me renda a uma arte de vocação totalizadora: só
compreendo a plenitude do sentido à luz das fracturas, das sombras que se
insinuam por entre as nossas aspirações mais genuínas.
É isto que me interessa fazer. Não o tal lirismo forte de
uma subjectividade que canta, mas desenhar um rosto polimórfico que se desdobra
em diferentes urdiduras textuais: e que essas urdiduras textuais possam abrir
novos horizontes de sentido. (…) Ou seja, aqui é já uma outra voz que pretendo
explorar: convoca-se uma reflexão metapoética que aposta no poder demiúrgico da
palavra, mas que, simultaneamente, acolhe a condição inerentemente paradoxal que
atravessa a criação poética.
E a 20 de maio de 2013, aquando da saída de «Bartlebys
Reunidos»
O livro constitui o segundo volume de uma “Tetralogia de uma
Poética Palimpséstica” que estou a escrever (um projecto constituído por quatro
volumes que assentam nos mesmos moldes formais) e baseia-se na personagem
criada por Herman Melville, no conto Bartleby, the scrivener (1853): o escrivão
Bartleby que, a cada solicitação ou ordem, limita-se a retorquir: “Preferiria
não o fazer.”
Numa outra entrevista, agora a 21 de agosto de 2013
1 - O que representa, no contexto da sua obra, o livro
Bartlebys Reunidos?
R – Trata-se do segundo volume de uma tetralogia que, neste
momento, estou a escrever, intitulada Tetralogia de uma Poética Palimpséstica e
que é constituída por quatro volumes (que assentam nos mesmos moldes formais):
presentemente, estou a trabalhar no Volume III: Comércio com Fantasmas [Para
uma Epistolografia Espectral] e no Volume IV: Anjos Necessários [Para uma
Angelografia do Desejo]. O meu objectivo é reunir no futuro os quatro volumes
num único livro que intitularei de “Palimpsesto’’.
Despeço-me desta minha intervenção com um poema inscrito no Palimpsesto que me diz muito e creio que
a todos vós porque se trata do anjo de Klee:
Os anjos de Klee
E existíamos
como um só rosto.
Esquecendo-me
de propósito
onde eu
começo e onde tu terminas,
desenhávamos
uma flor na escuridão.
As palavras
há muito deixaram de insistir:
são de uma paciência
infinita.
Amanhã
haverá vozes de sombras
que nos
pintarão de perguntas
– o
interstício de te voltar
a ver na
curva do tempo.
Anjo morto, desperta do
teu sono e vem depressa
iluminar esta sede de um
silêncio que não existe.
António Luís Catarino