POESIA, APESAR DE TUDO
Ao mesmo tempo que parece definhar sob a ameaça da falta de leitores e das regras editoriais, a poesia insiste e resiste,
alheia às circunstâncias pragmáticas
"Para que serve a poesia hoje?”: a pergunta é formulada no título de um
pequeno livro de um ensaísta e poeta francês, Jean-Claude Pinson, publicado em
1999, recentemente traduzido em português (Deriva Editores, 2011, trad. José
Domingues de Almeida, 66 págs.).
Trata-se de uma conferência, seguida de discussão com o público, que o autor proferiu em Nantes. O tema ressuscita um tópico antigo, com origem na elegia de Hölderlin “Pão e Vinho”, em que o poeta alemão pergunta na sétima estrofe: “Para quê poetas num tempo de indigência?”. Desde então, o “wozu Dichter” — o “para quê poetas” — nunca mais deixou de ecoar como uma interrogação que a poesia moderna lança a si própria e se tornou obsessiva. Convém perceber que o ‘Dichter’ hölderliniano, num contexto em que a literatura se reflete e se interroga si própria, é mais do que aquele que escreve nesse género literário que se chama poesia: é o escritor enquanto figura de um absoluto literário que toma a poesia como o ideal a que aspiram todos os géneros e mesmo todas as artes. Mas, no nosso tempo, o verso de Hölderlin, embora constantemente evocado, ganhou outras ressonâncias: o que escutamos nele já não é a perda de um mundo desencantado, de onde os deuses se retiraram, mas algo muito mais pragmático: a condição desfavorecida e minoritária da poesia relativamente ao romance e a todas as formas literárias narrativas; a falta de leitores de poesia; a suspeita de que é uma arte anacrónica, num mundo dominado por uma racionalidade económica e por uma cultura do entretenimento a que ela não se adequa, de tal modo que soa a pedantismo dizer “eu sou poeta”.
Traduzida nestes termos contemporâneos, a questão hölderliniana tem sido insistentemente ressuscitada e reativada, dando muitas vezes a impressão de que a morte da poesia é uma iminência, e que a sua vida está reduzida a uma precária sobrevivência. Daí a necessidade de a defender. E foi assim que o discurso de defesa e celebração da poesia se tornou uma espécie de oração — a oração crepuscular do literato —, ora declamada em chave fúnebre ora entoada com devoção pietista. O resultado é a autocomplacência e a exaltação de si própria como mito e verdade suprema — inclinações funestas que a empurram para uma morte bastante menos gloriosa do que aquela que lhe é infligida, segundo se diz, por fatores externos.
Trata-se de uma conferência, seguida de discussão com o público, que o autor proferiu em Nantes. O tema ressuscita um tópico antigo, com origem na elegia de Hölderlin “Pão e Vinho”, em que o poeta alemão pergunta na sétima estrofe: “Para quê poetas num tempo de indigência?”. Desde então, o “wozu Dichter” — o “para quê poetas” — nunca mais deixou de ecoar como uma interrogação que a poesia moderna lança a si própria e se tornou obsessiva. Convém perceber que o ‘Dichter’ hölderliniano, num contexto em que a literatura se reflete e se interroga si própria, é mais do que aquele que escreve nesse género literário que se chama poesia: é o escritor enquanto figura de um absoluto literário que toma a poesia como o ideal a que aspiram todos os géneros e mesmo todas as artes. Mas, no nosso tempo, o verso de Hölderlin, embora constantemente evocado, ganhou outras ressonâncias: o que escutamos nele já não é a perda de um mundo desencantado, de onde os deuses se retiraram, mas algo muito mais pragmático: a condição desfavorecida e minoritária da poesia relativamente ao romance e a todas as formas literárias narrativas; a falta de leitores de poesia; a suspeita de que é uma arte anacrónica, num mundo dominado por uma racionalidade económica e por uma cultura do entretenimento a que ela não se adequa, de tal modo que soa a pedantismo dizer “eu sou poeta”.
Traduzida nestes termos contemporâneos, a questão hölderliniana tem sido insistentemente ressuscitada e reativada, dando muitas vezes a impressão de que a morte da poesia é uma iminência, e que a sua vida está reduzida a uma precária sobrevivência. Daí a necessidade de a defender. E foi assim que o discurso de defesa e celebração da poesia se tornou uma espécie de oração — a oração crepuscular do literato —, ora declamada em chave fúnebre ora entoada com devoção pietista. O resultado é a autocomplacência e a exaltação de si própria como mito e verdade suprema — inclinações funestas que a empurram para uma morte bastante menos gloriosa do que aquela que lhe é infligida, segundo se diz, por fatores externos.
"Le poète allongé" (1915), Marc Chagall |
Ela não se adequa às regras do mercado e
não alimenta nenhuma indústria. Que, nestas circunstâncias, ela persista, eis
o que leva Enzensberger a considerar que se trata de um milagre e de um
anacronismo, para concluir a seguir que esse seu carácter invendável é o seu
misterioso privilégio.
Reside aqui o paradoxo da poesia: anacrónica. mas sempre atual: condenada a desaparecer por imposições sociais, económicas e culturais, mas persistente e obstinada. De tal modo que Enzensberger, com uma ironia demolidara, observa esta caracterísstica bizarra: "Há mais poemas a serem escritos do que a serem lidos, a poesia é o único medium de massa em que o número de produtores ultrapassa o dos consumidores"_ E, formulando uma lei do carácter imutável deste público limitado (a que chama com humor - constante de Enzensberger-), determina-o empiricamente de maneira precisa: mais ou menos 1354 leitores, para todas as culturas e comunidades linguísticas tenhas elas 250.00 leitores ou 250 milhões. Estas afirmações datam de 1985, mas podemos perceber o que elas significam em função dos desenvolvimentos da indústria editorial.
Reside aqui o paradoxo da poesia: anacrónica. mas sempre atual: condenada a desaparecer por imposições sociais, económicas e culturais, mas persistente e obstinada. De tal modo que Enzensberger, com uma ironia demolidara, observa esta caracterísstica bizarra: "Há mais poemas a serem escritos do que a serem lidos, a poesia é o único medium de massa em que o número de produtores ultrapassa o dos consumidores"_ E, formulando uma lei do carácter imutável deste público limitado (a que chama com humor - constante de Enzensberger-), determina-o empiricamente de maneira precisa: mais ou menos 1354 leitores, para todas as culturas e comunidades linguísticas tenhas elas 250.00 leitores ou 250 milhões. Estas afirmações datam de 1985, mas podemos perceber o que elas significam em função dos desenvolvimentos da indústria editorial.
Em
França, dados recentes dizem que a poesia tem um peso de 0,2% do volume de
negócios anual do sector do livro e isso corresponde a 0,31% do total de livros
vendidos. Uma insignificância, portanto, contrariada pela Espanha, pelo menos
de acordo com a situação descrita pelo "EI País"', em 2003 (já passou
quase uma década. os dados alteraram-se, certamente. mas a presença forte das
coleções ele poesia nas livrarias espanholas é um facto notável), onde se
falava de uma proliferação de editores de poesia e de tiragens que, em casos
excecionais, podiam ir até 10.000 exemplares. Números que não são suficientes
para criar best-sellers, mas temos de
pensar que o padrão é que uma primeira edição de um livro de poesia não
ultrapasse a ordem das centenas. Foi assim com Baudelaire, foi assim com
Mallarmé, e assim continua a ser com os poetas contemporâneos. Portanto, nada
de muito grave aconteceu entretanto, a não ser uma ilusão de ótica criada pela
lógica da indústria editorial e dos seus postos avançados.
Em Portugal, houve nos últimos anos um recuo considerável da poesia tanto nas livratrias como no espaço público mediático. Há um raciocínio, responsável por um círculo vicioso, que fez escola em muitos domínios da cultura: parte-se do preconceito de que as pessoas só gostam de x ou y, o que justifica a decisão de só lhes oferecer isso e lhes retirar o acesso a tudo o resto. O círculo vicioso cumpre-se então desta maneira: dada a convicção de que só uma pequena minoria ociosa e nada rentável lê poesia, tudo será feito para que nem essa pequena minoria possa satisfazer os seus hábitos. E o pequeno tornar-se-á ínfimo, graças a uma profecia que se autorrealiza. Mas, se passarmos para a esfera muito mais complexa da consagração, as coisas passam-se de outra maneira. Aí, por razão que a nossa história literária do último século e meio explica, a poesia adquire uma enorme importância e é o romance que passa a um estatuto de menoridade. Foi assim ao longo de todo o século XX e pouco nesse domínio, se alterou. A literatura portuguesa mais recente, com poucas exceções, continua a ser dominada por alguma poesia: é ela que alimenta alguma discussão literária; é ela que dialoga com a tradição literária; é ela Que nos faz aceder, como um sismógrafo, ao registo dos abalos do tempo. Ela ri-se - e nós com ela - dos jogos florais a que está reduzido o débito regular, minuciosamente calendalizado, da produção romanesca. António Guerreiro, Expresso Atual, pg. 34-36, 1.10.11