Creio que foi em 1991 que a 1ª edição de «Breviário
Mediterrânico» de Predrag Matvejevitch foi editada em Portugal. Nessa ocasião
comprei este livro sem que a crítica lhe desse muita importância, mas eu também
nunca dei muita importância à crítica. Estamos, pois, empatados. Li-o de um fôlego
e maravilhei-me com ele. A editora foi a Quetzal, a tal da ave trepadora, uma
metáfora, certamente. Comprei, agora, a 2ª edição que a Quetzal diz que é a
primeira. Na ficha técnica nem sequer está essa 1ª edição registada. Mistérios. Acresce
que esta edição está muito melhorada, com ilustrações de mapas e desenhos antigos que são uma mais-valia para o livro, não fosse o prefácio indigente de
uma folha A4 de Francisco José Viegas e o posfácio de Robert Bréchon.
Dispensamo-los de todo e empobrecem claramente a edição. Salva a apresentação da obra, Claudio Magris.
Penso que quando saiu a obra já estava em curso a guerra
fratricida entre croatas, sérvios e bósnios que implodiu a Jugoslávia. Predrag Matvejevitch
é croata e morreu em Zagreb em 2017. Como sinto a perda de bons escritores, os
«meus» escritores, também eu senti a sua ausência. Nunca em lado nenhum do
«Breviário» se sente ódio, rancor, exclusão. Pelo contrário: o seu discurso é de
paz absoluta, de leitura lenta e atenta às margens do Mediterrâneo. Como ele
soube descrevê-lo! As pedras, as areias, os seus faróis, as cidades e as
populações que as habitam, as religiões, os seus mosteiros e conventos, as
mesquitas, as ilhas e as lendas, os seus barcos altivos, os corais e as árvores que explodem de odores
diversos e o modo como consegue conviver tudo isto ainda no Mediterrâneo circundam as
expressões mais fortes do «Breviário». É um verdadeiro livro de História sem
pretender qualquer pedagogia desnecessária ligada à disciplina. Leiam-no,
simplesmente. É um prazer raro. E está lá João de Barros e Pedro Nunes, Gama,
Fernão Mendes Pinto, Magalhães, Colombo e os cientistas catalães, árabes, cristãos e
muçulmanos, judeus e gentios, comungando as cores, os ventos, as marés e as
correntes mediterrânicas. Também Pessoa com a sua questão em «O Marinheiro»: «o
mar de outras terras é belo?». Os marinheiros têm essa resposta secreta. Ou
Borges: «o mar é uma antiga linguagem que já não consigo decifrar».
E voltamos
às ilhas mediterrânicas belas como só elas são, mas igualmente cruéis como também sabem ser quando os homens as transformam em prisões como aconteceu a
Bonaparte, a Trotsky ou a prisão de Kotor que serviu para os opositores ao
fascismo, ou a ilha de Rab, um campo de concentração italiano para judeus, ou ainda
a ilha de Goli Otok onde estavam presos os jugoslavos que não
tinham aceitado a rutura titista (talvez a única prisão para estalinistas em
1948?, digo eu...). E Durrell, sempre Durrell, na sua ilha de Corfu, que o levou
a escrever o «Quarteto de Alexandria». E Camus, Aldous Huxley e tantos outros.
Ler o «Breviário Mediterrânico» limpa a alma e a vida. Da morte
fica-nos, paradoxalmente, o teatro e a evocação de Leburna, ator de Sisak, dos
fins do século III, cujo epitáfio é este: «Muitas vezes morri em cena, mas
nunca desta morte».
A representação de Predrag Matvejevitch do «teatro da vida» mediterrânico
descreve assim as praças com uma beleza literária ímpar: «O cais, o porto, o
molhe e a ponte do navio, a praça pública, o mercado e a venda de peixe, o
estaleiro naval, os espaços que rodeiam fontes e faróis, que contornam igrejas
ou mosteiros, os cemitérios e o próprio mar tornam-se assim, de tempos a
tempos, palcos ou teatros ao ar livre. Lá se representam diversos papéis,
insignificantes ou fatais, comédias e dramas, quotidianos e eternos. Os séculos
estão cheios de espetáculos destes: passado e presente do Mediterrâneo, a sua
história» (pág.88). A rigorossíssima tradução é de Pedro Támen.
Coimbra, 31 de maio de 2019
António Luís Catarino
Predrag Matvejevitch
Foto: Getty Images