FILHO, IRMÃO, PAI
O tempo vai sorvendo a imagem do meu pai (às colherzinhas, sem madalena). Custa cada vez mais reconhecê-lo. De ano para ano aumenta a dificuldade e o esforço. Reduz-se progressivamente o tempo de exposição à memória. Aproximo-me dele para o perder – uma orelha, a sombra do olhar, o queixo, para já não falar dos gestos que se desenvolvem no ar, atrás da janela fechada.
Envelheço. Em breve terei a sua idade e poderei trocar com ele algumas impressões acerca da experiência. Talvez me peça para lhe contar como são os meus dias, que desejos e que interrupções. A imperfeita precisão da imagem serve para a figura do irmão. Um pai tem mais exigências.
Filho virá a ser na mais intensa desagregação. Os contornos esbatidos podem ser usados na construção pelo futuro. Meu pai e meu filho.
Foi há dois meses, ainda a praia nos estendia a sua aberta superfície. Ferida – ovo, um texto. Antes de eu nascer era assim. Podia ser um pouco do meu pai e dar-lhe mais um dia, viver com ele numas poucas de frases. A minha acção transformada em mais um dia de vida do meu pai, um dia que fosse.
Agora estas palavras todas. Ele terminou-se, mas eu continuo a juntar palavras como se lhe fosse dar um rosto. Ele transparece no vidro, cada vez mais indistinto. Procuro o sentido que a carne reclama na sua inconstância difusa e depois espalha. A carne, sem regra. Perdulária. Diz-me que devo ocupar o seu lugar – porque não compreendeu e não sabe onde já estive.
A história das parecenças é macabra. Muita lembrança e um bule de chá. Duas fotografias, lado a lado. Alguns anos de diferença não prejudicam. A mesma coluna vertebral. Apenas uma, a sombra ampliada que recobre os corpos, bem autonomizados mas com espaços comuns. Idêntico o olhar, dizem. E bebem. Finalmente a desembaraçada mão apaga-nos do vidro.
José Ricardo Nunes, in Alfabeto Adiado