terça-feira, agosto 15, 2023

«Soif», Amélie Nothomb

 

Albin Michel, poche, 2019
Amélie Nothomb diz que é o livro da sua vida tal como refere a cinta do livro de bolso. Seja, e só ela o pode dizer. É uma escritora que sigo com interesse.

«Soif» é herege, partindo do princípio que a Igreja Católica Romana, na sua tentativa reformadora e de sobrevivência, ainda considera a imagem do Cristo humano como heresia. Esta sede é literal, portanto não confundi-la com a «sede» espiritual de que fala um nosso cardeal-poeta-bibliotecário da Vaticana. Amélie Nothomb cria um monólogo na primeira pessoa de Cristo e fá-lo falar, pensar, amar, odiar, desprezar, mentir, invectivar Deus ele-próprio, pai que o castiga sem que se saiba bem o porquê, diz-lhe ele para salvação da Humanidade, questão posta de lado por Cristo desde logo. A humanização terna de Nothomb à figura de Cristo sensibiliza-nos e acredito a qualquer católico que tenha uma ponta de amor pelo homem, filho de Deus, o que ele, desde logo e durante a Paixão rumo a Golgotá, põe em dúvida. Então donde vem esta sede, metáfora sempre presente nas escrituras, principalmente em João e Mateus? Torna-se em «Soif» a sede literal, como o disse atrás. As dores da Paixão, a fúria e o gozo da multidão que o agride, a coroa de espinhos, a fustigação contínua do chicote, o sangue, a nudez e o suor, a ausência dos apóstolos, as dores insuportáveis principalmente nos pés e nos músculos das pernas quando crucificado, obriga urgentemente a água. É necessário, diz a certa altura do sacrifício (e porquê este sacrifício?, repete Cristo) ter sede, para saber a maravilha que é beber água. Num dos melhores momentos do livro (e nas cenas bíblicas também), um soldado romano pede então a um centurião romano permissão para lhe dar água a que é atendido. Fá-lo, molhando uma esponja com vinagre, o que em vez de ser mais uma tortura como é contado vezes sem conta nos catecismos oficiais, era uma forma de aplacar essa sede brutal, método que era usual nas legiões romanas nas longas marchas dos seus soldados. O prazer que Cristo sente ao beber essa água, no meio das dores enormes da tortura e da crucificação, fá-lo lembrar-se de Epicuro e dos seus ensinamentos sobre o prazer (oh heresia!). Prazer que nunca renunciou com Madalena, amando-a tão humanamente, que, recordando a sua vida nas poucas horas que lhe restam, terá suposto fugir com ela para lugares recônditos, não reconhecíveis, nem conhecedores da sua pessoa e dos milagres que ele (e outros antes dele, como diz) protagonizou. Queria levantar-se todos os dias junto a ela, viver a vida comum observando ternamente uma cara que, logo que a viu, lhe fez descobrir nele a beleza e o desejo que não recusou. Madalena é a única que está com ele na morte, junto do soldado romano que lhe dá o golpe fatal no coração para lhe acabar com o sofrimento.

Uma excepcional heresia e um livro que deu, como não poderia deixar de ser, uma polémica desgraçada em França com a Igreja que nada compreendeu da obra de Amélie Nothomb. Este é um livro de amor. De grande e terno amor. E, tal como conhecemos o «Evangelho segundo Jesus Cristo» de Saramago, como uma obra de profunda gratidão e amor principalmente para com Maria, não poderemos deixar de o associar a todo o processo inquisitorial que levou Saramago a despedir-se de Portugal por causa das inquisições que ainda mexem por cá.

Há uma edição em português da Guerra e Paz, mas não a conhecia antes de o ler em francês e de aqui escrever estas palavras.