quarta-feira, setembro 21, 2016

Sofia Miguens, do Departamento e Instituto de Filosofia da U. Porto, escreve sobre Wittgenstein e de «Observações sobre o ramo Dourado de Frazer», iniciativa de Bruno Monteiro e editado pela Deriva

WITTGENSTEIN, Ludwig, Observações sobre o Ramo Dourado de Frazer, Edição, tradução e notas de João José de Almeida, Introdução e revisão da tradução de Nuno Venturinha, Coordenação de Bruno Monteiro, Deriva Editores, Porto 2011. 116 pp.; ISBN: 9789729250859. 

A estranheza do comum 

O ano de 2011 marca os sessenta anos da morte de Ludwig Wittgenstein; esta publicação das Observações sobre «O Ramo Dourado» de Frazer (Bemerkungen über Frazers Golden Bough), devida à iniciativa de Bruno Monteiro, sociólogo do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e coordenador do volume, assinala a data. A tradução do alemão é da autoria de João José de Almeida, a partir dos manuscritos e dactiloscritos editados pelo Arquivo Wittgenstein na Universidade de Bergen. A introdução e a revisão da tradução são da autoria de Nuno Venturinha, reconhecido especialista, a nível internacional, no Nachlass wittgensteiniano. Não se poderia esperar mais da qualidade da edição. Para quem, como eu, estuda e ensina Wittgenstein, sobretudo a partir da filosofia da mente e da linguagem, e portanto sobretudo a partir do Tractatus e das Investigações Filosóficas, este livro Observações sobre o Ramo Dourado de Frazer (que aliás não foi escrito como um livro) é quase um objecto estranho. Mas, por isso mesmo, é um objecto muito interessante e muito revelador dos muitos usos de Wittgenstein para pensar sobre o pensamento – desde pensar sobre o que estamos a fazer quando fazemos lógica até pensar sobre o que estamos a fazer quando fazemos antropologia. Aliás, Wittgenstein pode ser útil até para pensar sobre pensamento social e político: foi muito interessante saber que Bruno Monteiro, o grande motor por trás desta publicação, foi levado pelo seu tópico de investigação – os grupos políticos dos extremos do espectro, cujas propostas se afastam do ‘centro’ por dependerem de nuances – a interessar-se por Wittgenstein. Interessava-lhe a percepção e a discriminação, no sentido de identificação minuciosa. Portanto (para falar a linguagem de Wittgenstein) interessavam-lhe os fenómenos do ver-como, dos aspectos, e assim foi levado às Investigações e aos escritos sobre cores. Em suma, também para pensar sobre fenómenos de percepção social mais ou menos detalhadamente discriminativa interessa compreender como se pode ver mais ou menos olhando para o ‘mesmo’. Mas aqui importa não tanto a percepção política na nossa sociedade e sim a antropologia: Sir James George Frazer, o autor de The Golden Bough – a study in magic and religion, o livro que Wittgenstein comenta nestas observações, e que influenciou tanta gente, desde B. Malinowski, até S. Freud, James Joyce, Ezra Pound ou T. S. Elliot, foi um antropólogo escocês que estudou práticas religiosas ‘primitivas’, nomeadamente sacrificiais, anteriores às religiões monoteístas organizadas e que no tempo em que publicou The Golden Bough indignou muita gente por olhar de forma comparativa para a religião e para a magia. Mas se alguns contemporâneos puderam indignar-se com Frazer por causa de algo como uma conclusão não explícita, que era a persistência no cristinianismo de ritos e superstições de práticas protoreligiosas, ou mágicas, primitivas, Wittgenstein aborda-o 250 Revista da Faculdade de Letras – Série de Filosofia, 27-28 (2010/2011) 239-253 quase do ângulo contrário: uma importância mais imediata destas Observações Sobre o Ramo Dourado de Frazer é o facto de elas contestarem uma certa forma racionalista- ‘progressista’ (hoje diríamos ocidentalocêntrica) de fazer antropologia, de olhar para práticas sociais muito diferentes das nossas. O que perturba Wittgenstein é isto: o que estamos nós a fazer quando vemos povos e práticas como primitivos e, por serem primitivos, alien? (estranhos, demasiado estranhos, muito diferentes de nós, este ‘nós’ dito de forma normativa). Porque é que Wittgenstein diz com todas as letras que o antropólogo escocês James G. Frazer é ‘mais selvagem do que os selvagens de que fala em The Golden Bough’? Devo dizer que fui atrás do “Ramo Dourado” e o livro não é à primeira vista tão absurdo como Wittgenstein nos faz pensar – é um livro de descrições de práticas mágico-religiosas, e quem o escreveu pensava pelo menos que valia a pena escrever sobre essas práticas: sobre o rei dos bosques, o rei-sacerdote, a magia simpática, o totemismo, o tabu, práticas em partes diferentes do globo e de épocas muito distantes entre si, desde povos que antecederam os Romanos na actual Itália, até esquimós e nativos australianos. Para responder a esta questão (Porque é que Wittgenstein diz com todas as letras que o antropólogo escocês James G. Frazer é ‘mais selvagem do que os selvagens de que fala em The Golden Bough’?) de forma mais aprofundada teríamos que falar de muitas coisas. Seria importante, nomeadamente, compreender, além das ideias de Wittgenstein sobre lógica, linguagem e pensamento, as suas ideias acerca de progresso, acerca de moralidade, de religião e de ciência. Um ponto de partida aqui seria a célebre citação de Nestroy que aparece em epígrafe nas Investigações. ‘O progresso é sempre menos do que imaginamos’ (Überhaupt hat der Fortschritt das an sich, dass er viel grösser ausschaut, als er wirklich ist. / O progresso tem isto em si, que parece sempre muito maior do que aquilo que realmente é). A citação é de Nestroy, um cantor, actor e dramaturgo austríaco do século XIX. Ou então a sua impaciência perante, por exemplo, a filosofia utilitarista, que via como um bla bla bla racionalista em ética. As referências permitir-nos-iam compreender melhor a sua dúvida enorme perante a ideia de uma progressão mito-religião-ciência como constituindo um progresso não problemático das formas de vida e pensamento humano. Vou propor aqui uma chave: uma coisa que temos de saber sobre Wittgenstein para percebermos o incómodo perante Frazer que estas Observações expressam é que Wittgenstein vê o olhar do filósofo sobre as nossas próprias formas de vida como o olhar de um antropólogo. Noutras palavras, também em filosofia se analisa e descreve práticas e a estranheza não começa lá fora, com outros povos e outros tempos, antes começa nas nossas próprias práticas – o filósofo americano Stanley Cavell, fala da descoberta wittgensteiniana da ‘estranheza do comum’. É esse o objecto do olhar do filó- sofo – pensemos por exemplo em nós próprios, aqui e agora, ordeiramente reunidos, sentados, com o pretexto da apresentação de um livro [este texto foi originalmente escrito para o lançamento da tradução do livro], no contexto de um ritual de universidade. Invertendo o famoso motto de Marx (que é aliás de Terêncio), tudo o que é humano (me) é estranho, poderíamos pensar. Como Cavell gosta de sublinhar, a imagem wittgensteiniana do filósofo é a de um explorador de uma tribo desconhecida – só que essa tribo somos nós, forasteiros e estranhos a nós próprios. Mas em que sentido é que tudo o que é humano é estranho? Stanley Cavell, em The Claim of Reason, fala da ‘descoberta de Witttgenstein’: essa descoberta é a convencionalidade da natureza humana ela própria, a convencionalidade daquilo que faz de nós humanos. Esta intersecção do famiRevista da Faculdade de Letras – Série de Filosofia, 27-28 (2010/2011) 239-253 251 liar e do estranho, partilhada pela antropologia, pela psicanálise, pela filosofia, é o lugar do comum. Ver o comum como estranho – a Unheimlichkeit freudiana – é perfeitamente possível. Não são só os aliens que são estranhos: nós somos estranhos, a cada instante podemos sentir-nos perplexos com aquilo que os humanos dizem e fazem enquanto humanos. Frazer não vê isto e é isso que incomoda Wittgenstein. Ele pensa que o nosso comum é normal mas o comum do povo do sacerdote de Nemi é estranho. Frazer tem uma visão teleológica à la Hegel (aliás Hegel aparece no fim do Ramo Dourado, mais especificamente as passagens sobre religião das suas Lições sobre a Filosofia da História). É isto que Hegel simboliza em filosofia, a visão da história como teleologia: um povo levando o facho da história, depois decaindo e passando o facho a outro – e quem não está a levar o facho da história é secundário ou despiciendo. Hegel pôde dizer, no seu tempo, ‘eu vi o Espírito do Mundo entrar a cavalo na cidade’ – era Napoleão, como antes tinham sido os Gregos, os Romanos, ou o Cristianismo, mas certamente não todos os povos contemporâneos destes povos, não todos os movimentos contemporâneos desse movimentos, pois não ‘transportavam a luz’. É isto que Wittgenstein não aceita: «A apresentação de Frazer das concepções mágicas e religiosas dos homens é insatisfatória: ela faz com que essas concepções apareçam como erros». «Estava então Agostinho errado quando evocava Deus em cada página das Confissões? Mas – pode-se dizer – se ele não estava errado então quem estava era o santo budista – ou outro qualquer – cuja religião expressa concepções completamente diferentes. Mas nenhum deles estava errado. Excepto quando afirmava uma teoria» (p. 29) «A ideia de explicar um costume (porventura a morte do rei-sacerdote) parece-me equivocada (aqui só se pode dizer e descrever: a vida humana é assim)» (p. 31). O que é o isto ser assim que só se pode descrever? Um princípio de resposta poderia ser encontrado em Wittgenstein e na forma como Wittgenstein fala de ‘acordo na linguagem’ para falar daquilo a que acima chamei o comum: este acordo não é um acordo quanto a opiniões (falamos, discutimos explicitamente, argumentamos) mas um acordo na linguagem e em formas de vida (estamos aqui sentados, vestidos, calados, circunspectos, num lugar que concebemos como de saber, pensando nestes sons que emitimos como tendo significados – nada disso nós discutimos explicitamente – não é uma questão de opiniões, mas de formas de vida). Não sei se estão aqui muitos filósofos, no entanto queria dizer uma palavra para filósofos: que esta dimensão de acordo e convencionalidade, que está em causa quando se pensa na filosofia como visando práticas, é algo de importante de um ponto de vista filósofico. É importante de um ponto de vista filosófico porque é importante para pensarmos sobre método – para pensarmos sobre o que estamos a fazer quando pensamos sobre a nossa forma de pensar, desde a lógica até à ética e à estética. Quando se fala em Wittgenstein como mostrando a importância do comum para a filosofia isto, na história da filosofia do século xx, significa por exemplo uma oposição à ideia de que linguagens formais revelam a essência da linguagem e uma natureza ontológica última da realidade. Não é que haja problemas com fazer lógica, analisar a linguagem, fazer investigações ontológicas – os filósofos fazem tudo isto constantemente. A questão é que as coisas são mais complicadas do que simplesmente descobrir o esqueleto por detrás da aparência, por exemplo usar linguagens formais para analisar a linguagem comum. Isto foi muito importante na filosofia do século XX, sob o impacto da lógica formal e 252 Revista da Faculdade de Letras – Série de Filosofia, 27-28 (2010/2011) 239-253 Wittgenstein não acredita nisso, da mesma forma que não adere a Frazer – nem essência, nem finalidade. Por vezes diz-se que Wittgenstein era um anti-modernista – tivemos ainda há bem pouco tempo aqui na FLUP um filósofo australiano de Sydney, David Macarthur, que, para além de ter vindo falar-nos sobre a natureza dos juízos estéticos, fez uma conferência sobre a casa de Wittgenstein (a casa que ele construiu em Viena, na Kundmangasse, para a sua irmã, a socialite vienense Margarethe Stonborough). Sem entrarmos na discussão dos gostos artísticos de Wittgenstein, podemos dizer no mínimo que ele era um céptico quanto a progresso – basicamente ‘O progresso é sempre muito menos do que aquilo que pensamos’, como disse Nestroy. O que procurei aqui explicar foi que a reac- ção a Frazer que está nestas Observações vem em parte daí, e também da ideia de que quando descrevemos práticas humanas o nosso objecto é o acordo em formas de vida, e não em juízos ou opiniões conscientes e explícitos. Fundamentalmente, nós não somos o pináculo de uma progressão, nem o único ponto de vista sem ponto de vista. E Frazer está, segundo Wittgenstein, demasiado próximo de pensar que somos.* 

Sofia Miguens (Departamento de Filosofia e Instituto de Filosofia da Universidade do Porto)