MEDUSA
Há muitas coisas belas. Medusa é uma delas.
Um penteado de pecados fica bem ao mortal, um olhar petrificante tudo o
que pode almejar quem anda pela vida mais que por ódio, amar.
No olhar de Medusa, vejo Rosa Parks sentada para que outros pudessem
levantar-se, vejo os punhos erguidos e as luvas negras de Tommie Smith e John
Carlos nas olimpíadas da sonsice que é o adiamento das guerras na paz podre das
medalhas, vejo Mahatma Gandhi fiando a fome de justiça e liberdade que nenhuma boca
cheia de alheamento poderá compreender, vejo o julgamento de Sócrates, a cicuta
bebida de um trago como uma lição perdida na história da nossa incomensurável
apatia, vejo Galileu Galilei, Joana d'Arc e até Jesus Cristo eu vejo, como tantos
outros que como estes vivem hoje nos bolsos de uma juventude reles que julga
ser possível apagar grandes fogos sem fogos.
Vejo lições de entrega, vejo quem ousou dar-se por si próprio e pelos
outros sabendo que entregar-se era descobrir-se e que descobrir-se nada mais é
do que lançar-se no abismo da dúvida, da incerteza, no desconforto de uma
missão que apenas reivindica alguma limpeza neste mundo de auto-justificado
nepotismo, vejo o homem revoltado como cabelos venenosos, despenteado pela
noção clara de que desprezar é consentir e consentir é ser cúmplice da porcaria
em que chafurda quem mais não sabe do que adormecer em berço de ouro a palha de
que se alimenta.
Há muitas coisas belas. Medusa é uma delas.
Da sua cabeça decepada hão-de nascer cavalos alados. E nem depois de
morta deixará de petrificar quem fite nos seus olhos a verdade que nos aponta:
de pedra somos feitos, se desapaixonados e indiferentes. (Henrique Manuel Bento Fialho, Estranhas Criaturas, Deriva)