quinta-feira, novembro 17, 2011

A propósito de "Perigo Vegetal", de Ramon Caride

 

Said e Sheila vivem, no ano 2075, no interior da Galiza, mas estão ligados em comunicação ao mundo global do passado. Uma gigantesca companhia transnacional, a C.U.B., tenta apoderar-se de todas as sementes de cereais existentes como parte de um plano para dominar toda a agricultura do planeta. 

A luta das "sementes livres" contra a indústria passou pela horta da Graça Por Alexandra Prado Coelho


Jude e Michel Fanton, dos Seed Savers australianos, surpreenderam-se com a variedade de sementes que encontraram em Portugal. Mas que pode estar em perigo, avisam.
Lembra-se ainda do dia em que comeu a primeira salada de tomate que lhe soube realmente bem. Foi em Portugal, o ano era 1966, e Michel Fanton visitava o país pela primeira vez. Agora, acompanhado por Jude Fanton, regressou. Portugal é um dos países da tournée dos dois Seed Savers, "salvadores de sementes", australianos. E estão encantados com o que viram: "No Algarve mostraram-nos 53 variedades de figos, e vinte e tal de tomates". 
Em Lisboa, o encontro é na Horta do Monte, a horta comunitária da Graça. Às 11h, um grupo de cerca de 30 pessoas, sobretudo jovens, junta-se, abrigando-se debaixo dos chapéus-de-chuva, para ouvir Jude. Quase todos têm conhecimentos básicos de agricultura biológica, mas Jude lança-lhes um desafio: descer pela horta e identificar diferentes tipos de sementes. 
Não é fácil. Primeiro é preciso não escorregar na terra já ensopada, e depois as sementes não são fáceis de encontrar. "Tem que se ter uma flor antes de ter a semente", vai lembrando Jude. "E só se apanham as sementes quando estão maduras", diz enquanto mostra como se retiram as sementes. 
Parece básico, mas encontrar as sementes está a revelar-se uma tarefa mais difícil do que parecia. Assim como distinguir as flores que se podem comer, ou as plantas de folha persistente e de folha caduca. "Os camponeses são muito bons observadores porque a sobrevivência deles depende disso", revela Jude. 
Daí a pouco, o grupo segue para um local mais seco, na Escola Voz do Operário, para aprender a separar as sementes. As da couve-galega, por exemplo, são bolinhas pretas muito pequenas. Jude e Michel aconselham a usar uma folha de papel e deixá-las rolar até caírem dentro do envelope, que será depois fechado e identificado. No final trocam-se sementes, e cada participante leva um envelope. 

Ilegal?

Uma actividade como esta arrisca-se a tornar-se ilegal, explica ao P2 Lanka Horstink, coordenadora da Campanha pelas Sementes Livres, em Portugal. O objectivo de Lanka é o mesmo de Jude e Michel: proteger a biodiversidade, garantir que continua a haver o maior número possível de sementes tradicionais, e que os agricultores possam continuar a trocá-las entre eles. 
Os Seed Savers, conta Michel, já andam nisto há 25 anos, recolhendo e guardando sementes de variedades tradicionais por toda a Austrália; e mantendo-as vivas, replantando-as nas suas hortas e trocando-as entre hortelões. 
Lanka observa a troca de sementes na sala da Voz do Operário enquanto fala: o que preocupa o grupo por detrás da campanha é que a Comissão Europeia esteja a preparar uma "lei das sementes" que, diz a coordenadora, vai tornar ilegais todas as variedades de sementes que não estejam registadas. Ou seja, cada camponês que possua sementes terá que registar cada espécie (pagando pelo registo), sem o que não poderá nem sequer trocá-las com o vizinho do lado. 

Mudanças na legislação

Desde 2008 que a Comissão Europeia tem estado a introduzir mudanças na legislação, prossegue Lanka. Mas aquilo que até agora eram apenas directivas poderá em breve ser lei. A campanha pelas Sementes Livres explica ainda que, para serem registadas, as sementes terão que respeitar uma série de normas ligadas à "homogeneidade e estabilidade" e ao "valor agronómico e de utilização" - requisitos "que as variedades tradicionais dificilmente conseguirão cumprir".
Primeiro porque "não têm uma dimensão de produção" suficiente e, segundo, porque é precisamente "a sua elevada variabilidade" que lhes dá uma capacidade de adaptação às mudanças no solo e no clima. O que significa que várias sementes nas mãos de agricultores podem, de repente, tornar-se ilegais. 
Esta é uma luta entre agricultura biológica e a grande indústria agrícola, que usa pesticidas e fertilizantes, continua a coordenadora da Campanha pelas Sementes Livres. Lanka diz que a legislação que está a ser preparada protege a indústria de sementes (que já detém mais de metade do mercado mundial de sementes comerciais). Se um agricultor não pode guardar sementes, é obrigado a comprar novas, todos os anos. Tudo isto, sublinha, está a contribuir para a redução drástica da biodiversidade (de vários milhares de variedades para uma dúzia de espécies de plantas que são consumidas actualmente). 
Dentro do quadro europeu, os portugueses são dos que mais conseguiram preservar variedades de sementes tradicionais. Por isso, diz Lanka, Portugal "ainda goza de um património vegetal genético invejável" comparado com outros países europeus. O importante é não o perder, apela.
(Público, 17.11.11)