quarta-feira, julho 23, 2008

Filipa Leal à conversa com Catarina Nunes de Almeida. Nas Quintas de Leitura


Filipa Leal e Catarina Nunes de Almeida

Alegre, mas não muito“Allegro ma non troppo, un poco maestoso” foi o nome sugerido por Catarina Nunes de Almeida para a sessão das Quintas de Leitura dedicada à sua poesia. O Teatro do Campo Alegre recebeu a jovem poeta no dia em que era lançado o seu segundo livro, «A Metamorfose das Plantas dos Pés». O nosso diálogo começou não pela poesia de Catarina, mas pela saudade de Catarina, actualmente a ensinar Língua Portuguesa na Universidade de Pisa. Catarina, que escreveu um dia “Não moro não quero morar nunca”, que escreveu “Eu sigo por onde não há caminho”, que perguntou “Em que rua moras nesta cama?”.

Filipa Leal: em que rua mora em Pisa? [Risos] Na verdade, eu não moro em Pisa...
Mas trabalha em Pisa...Sim, trabalho em Pisa mas moro em Luca, uma cidadezinha muito simpática, um burgo medieval que me ensinou a andar de bicicleta outra vez. É uma cidade muito especial porque para além de ser a cidade do Puccini, é uma cidade muito poética, muito inspiradora... Acho que fui parar ao sítio certo.
Mas foi para lá porque preferiu Luca ou tratou-se de um acaso?
Eu comecei por estar num quarto em Pisa, mas calhou logo nos primeiros fins-de-semana ir passear a Luca...E apaixonou-se...Sim. Quem vai a Luca percebe por que é que se tem que ficar em Luca.
Fale-nos um pouco dessa sua experiência: porquê Pisa, porquê sair de Portugal? Prazer ou sacrifício pelo projecto?Antes de ir para Pisa eu já tinha estado em Itália, e não foi por motivos nada profissionais, foi por motivos até bastante passionais... [Risos]
E foi por isso que escolheu voltar?
Quando fui, estive em Nápoles, não estive ali. Depois a ideia de ir para Pisa foi realmente a de trabalhar, mas é sempre um bocadinho um sacrifício. Eu sou muito ligada às minhas raízes.
Custa-lhe estar longe?
Custa mesmo.
Mas pensa voltar quando acabar este projecto...
Sim, eu estou a pensar em voltar no próximo ano, até! [Risos]
Para Lisboa.
Sim. Ou para o Porto...Vamos ver se há motivos passionais...Por exemplo. [Risos]
Sempre desejou partir, ou foi uma opção mais tardia? Quando era criança tinha imaginado sair de Lisboa?
Não. Eu nunca fui muito de expandir-me no espaço, digamos assim. Sempre gostei muito de viajar, mas pensando em voltar. Era sempre por curtos períodos e nem consigo imaginar de maneira diferente.
Como é que tem sido a sua experiência na Universidade, nomeadamente no ensino de Português? Há muita gente a estudar Português em Pisa?
Em Pisa, se calhar não tanto como em outras partes de Itália, não sei porquê. Mas em Itália há muito interesse pela Língua Portuguesa. Começa logo pelo Brasil, mas depois quando eles têm contacto com a literatura portuguesa, com a nossa música, com a nossa cultura, até acabam por se voltar mais para nós e deixar um bocadinho o Brasil... E os alunos são muito queridos – tornaram-se os meus melhores amigos. Levam-me à praia, levam-me ao cinema... Porque quando eu cheguei lá estava um bocadinho perdida. Em Nápoles, estava no meio de uma relação, tinha amigos, havia pessoas que entraram logo na minha vida... E ali, em Pisa, estava um bocadinho deslocada no início, mas entretanto abriu-se um novo ciclo e foi muito bom.
Sei que tem desenvolvido outros projectos, a par do ensino da língua.
Sim, sim. Tenho procurado divulgar a cultura portuguesa, sobretudo a literatura porque é a área em que eu tenho feito alguns estudos. E não só: recentemente meti-me num grupo de teatro com os alunos...
Fazem teatro em português?
Sim, em português...
E é a Catarina que escreve as peças?
Foi uma adaptação do Torga, d’«Os Bichos», porque achei que seria fácil para eles. E correu muito bem.
Sente que esta saída, esta experiência, tem tido um impacto visível na sua poesia? Este novo livro contém esta experiência?
Sim, sim...
Dedica este livro de uma forma muito curiosa [“Ao Vesúvio, que me engoliu”]...
Eu dedico este livro ao Vesúvio porque grande parte do livro foi escrito em Nápoles. A experiência amorosa que está por trás foi vivida em Nápoles e achei que fazia todo o sentido dedicá-lo ao Vesúvio.
Mas é o lado passional ou o lado da distância que está aqui contido?
Também. Foi uma experiência nova para mim estar longe, e eu não sou nada de me ausentar por muito tempo – sou um bocadinho conservadora nisso. Mas não só. O livro foi publicado também em Itália e isso não se teria proporcionado se eu não tivesse estado ali. Conheci as pessoas certas, provavelmente, e o livro foi traduzido e curiosamente foi publicado primeiro em italiano e só depois em português... Eu não queria nada, mas foi assim...
O Jornal de Letras [JL] dedicou, em 2007, uma edição especial à dita “Novíssima Poesia Portuguesa”, e a Catarina foi uma das contempladas. Sente-se parte de uma geração? Há uma geração no sentido da proximidade de estilo, como no surrealismo, por exemplo? Há uma novíssima?
Sim, eu acho que me insiro na “Novíssima”, com certeza – na velhíssima seria difícil. [Risos] Percebe-se que há vários caminhos que estão agora a começar a ser trilhados. Eu não sei se não estamos todos ainda a olhar para os nossos pés – não sei se temos já a percepção de um estilo ou de uma corrente, porque a geração geralmente só se define quando já está fechada – não me apercebo muito disso mas se existe uma “Novíssima”, por que não fazer parte dela? Acho que sim...
Mas sente-se próxima dos poetas seus contemporâneos?
Sim, mas há sempre alguns com que nos identificamos mais...
No texto que publicou nessa edição do JL, fala de uma “cadência erótica e feminina que sobressai, como a que sobressai na natureza”. A relação íntima, quase carnal, com a natureza – como a própria fusão do homem com a árvore, por exemplo – é nítida na sua poesia. É uma das suas marcas mais visíveis, a par do erotismo. Aliás, há um exemplo para mim claríssimo destas duas vertentes, nos versos: “Um calor primitivo roça a madrugada: és tu o sol que me nasce entre as pernas”. Julgo que era a Anaïs Nin que dizia que “a pornografia revelava e o erotismo sugeria”. Interessa-lhe esse lado de sugestão, de provocação?
Sim, sim. Interessa-me sobretudo revelar as coisas mas deixando sempre um véu, deixando as sombras, os interditos, os silêncios...
Sente que encontrou um estilo? Reconhecer-se-ia de fora?
Sim, eu reconheço uma voz interior e já estou mais ou menos à vontade com ela. Se isso for um estilo, digo que sim.
Voltemos à expressão que utilizou - “cadência erótica e feminina” - mas agora para pegarmos no segundo adjectivo: “feminina”. Há uma escrita feminina?
Não sei... Eu começaria logo por dizer que o poeta é um fingidor. Não acredito muito que seja por o poeta ser homem ou mulher que vai reflectir masculinidade ou feminilidade.
Portanto um homem pode escrever um poema feminino e uma mulher pode escrever um poema masculino...
Exactamente. Porque é o sujeito que ele encarna. Eu posso ser uma mulher e escrever o poema mais machista deste mundo, porque estarei a ser esse fingidor...
A certa altura, escreve: “Não cabe mais ninguém nos meus poemas/ Agora serei só eu e as minhas romãs e os meus mestres espalhados pelos arrozais”. Tanto no JL como em ambos os livros, remete para os seus ‘mestres’. Neste poema, parece que também eles se confundem com a natureza... Quem são os mestres de Catarina Nunes de Almeida?
Se calhar, um bocadinho por influência da minha tese (tenho lido muitos textos orientais), os meus mestres são os orientais, os poetas do haiku... Eu busco a síntese.
“Na Primavera ando mais feliz”
Deixemos agora a poesia e cheguemos a si. Antes disso: nós somos a nossa poesia ou somos outra coisa diferente? Há alguns poemas seus que quase nos fazem corar: é assim atrevida também na vida real, ou é só na poesia?
É só na poesia! [Risos]Alguém cometeu uma inconfidência e me contou que costuma ficar mais distraída na Primavera... É verdade?
Sim, é verdade. [Risos] Ouço mais música na Primavera. Há mais sol e então reparo mais nas coisas... Sim, na Primavera ando mais feliz.
Escreve-se melhor na Primavera?
Sim... Ouve-se os passarinhos [Risos]...E depois escreve-se poemas eróticos... [Risos]Também. [Risos]
No seu resumo biográfico, diz que conheceu cedo o fascínio pelo teatro... Chegou a fazer teatro? Sim, formei-me um bocadinho. Fiz alguns workshops, algumas coisas amadoras, mas nunca trabalhei a sério.
Mas em Pisa tem participado?
Não. Enceno apenas. Mas na próxima eles já estiveram a insistir e por isso deverei entrar...
Agora vou fazer uma pergunta autobiográfica, se é que isso é possível: acha que o poeta é um actor frustrado?
Acho. Eu sou...
Eu também. [Risos]
Fala muita vezes (ou seja, os seus livros falam muitas vezes) de fábulas, como se a verdade estivesse nesse exercício de imaginação ou de memória antiga. É necessária essa evasão?
Sim, completamente. Eu sou muito assim, vivo muito no mundo da fantasia e não gosto de sair. Por mim estava sempre, por exemplo, no plano do cinema. Às vezes acordo cinematográfica.
Sente-se dentro de um filme? É como se faltasse apenas a banda sonora?
Sim, sim.
Por outro lado escreve: “Certamente uma palavra não é um lugar habitável”. Mesmo assim, prefere morar lá, na palavra?
Sim.
Porquê o título desta sessão? Porquê “Alegre mas não muito”? Isto tem um lado autobiográfico?Não. Bem, tenho momentos tristes, mas não é autobiográfico. Diz-se muitas vezes que os poetas são um bocadinho tristes...
É um mito, não é? [Risos]Sim, é um mito. [Risos] Neste caso, até foi porque já que havia uma relação com Itália na minha poesia, agora sobretudo no segundo livro, achei que fazia sentido trazer um título em italiano, e isto vem da Nona Sinfonia do Beethoven – é um andamento...Que ouviu na Primavera.
Provavelmente! [Risos]