terça-feira, fevereiro 19, 2008

O Sorriso de Mona Lisa, seguido de Quatro Contos de Fronteira, de Pedro Teixeira Neves

Capa de Gémeo Luís

O Sorriso de Mona Lisa

Nada aconteceu de um dia para o outro, do dia para a noite, como se costuma dizer. Foi antes um processo longo e demorado, quase imperceptível, invisível a olho nu, tal como o movimento dos ponteiros de um relógio. Tentamos vê-los moverem-se e é impossível, o nosso olhar simplesmente não consegue captar aquele «parado movimento», se é que assim se podem pôr as coisas. Pois foi precisamente desse modo que as coisas se passaram neste caso. E curiosamente, quem deu o alarme, nem foi sequer um especialista, mas antes um anónimo e cinzento guarda museológico, um simples funcionário.
Havia poucos meses que o país inteiro se encontrava extasiado ante a descoberta revelada pelos conservadores do Louvre. Por mero acaso, numas obras forçadas por via de infiltrações, numa das muitas e recônditas salas de reservas e fundos da instituição, um dos conservadores, ao espreitar para dentro de um velho sarcófago, tinha dado de caras com uma estátua! O tratar-se de uma estátua, por si só, já seria estranho, pois nunca se soubera de estátua alguma guardada num sarcófago. Mais estranho ainda era tratar-se de uma estátua grega, ainda se fosse egípcia... Retirada a estátua e levada para uma sala de restauro, de imediato especialistas em arte grega reputaram a descoberta como «magnífica», «única» e «milagrosa». «Milagrosa» por duas razões, pela sua beleza extrema, mas também por via do seu notável estado de conservação. «Magnífica» e «única» porque... bem, quanto ao porque já lá iremos.
Interessa reportar, de momento, que logo, logo a estátua foi limpa e preparada para ser mostrada ao público. Ninguém duvidava de que passaria a ser mais uma «jóia da coroa» do museu. E assim sucedeu, ultrapassando-se mesmo as melhores e mais optimistas expectativas. Em questão de dias, tendo conhecimento da descoberta, milhares e milhares de pessoas, amantes de arte, especialistas ou tão-só ignaros turistas em trânsito, acotovelaram-se em filas intermináveis para com os seus próprios olhos, se pudessem com as próprias mãos, poderem ver de perto aquela «nova» maravilha de arte que, não se duvidasse, passaria doravante a constar em todos e quaisquer manuais, guias de arte, dicionários ou enciclopédias sobre arte ocidental. Do mesmo modo, também nas escolas de arte, a estátua passou a ser uma das obras mais estudadas e aquela que maior número de alunas havia escolhido para dissertação de tese final de curso.
Pelo porte, musculado e avantajado, sabia-se que tinha sido um guerreiro. Era um nu sublime, único e singular, fascinante e esplendoroso no modo como, de uma forma exuberante e ao mesmo tempo natural, exibia a intimidade da personagem representada. Olhos redondos, bem definidos, lábios grossos, nariz à grega, testa alta e larga soçobrando-lhe caracóis fartos, todo ele, dos cabelos à planta dos pés, exibia, apesar da força que emanava e encerrava, uma graciosidade que não era senão a tradução divina de uma graça em forma de corpo. A meio caminho, a flor, a divina protuberância masculina revelando-se em todo o seu fulgor e ânimo. Em tudo semelhava um atleta olímpico da actualidade e, em matéria genital, ninguém duvidava, um Deus! Era um grego, está de ver.
Detalhes e rigores técnicos de execução aparte, a beleza das proporções, a maravilha das linhas, o suave da cor da pedra, a luminosidade radiante que do todo se desprendia, a verdade é que o seu apelo maior, e logo motivo maior e bem patente do seu êxito de público, residia naquele concreto e desmesurado instrumento. «Realidade ou ficção da mão que o esculpira, ninguém o sabia precisar, já que subsistiam dúvidas sobre a sua autoria», explicava a um bando de japonesas uma guia solícita e despachada, repetindo as suas explicações e comentários em pelo menos quatro línguas.
Sem qualquer ponta de pudor, no que, bem vistas as coisas, se revelava a liberdade de que desfrutara o seu autor, o «belo grego», como já era conhecido nos meios artísticos, exibia-se naquele museu havia apenas seis meses, desde que fora encontrado numas ruínas nos arredores de Roma. Era um belíssimo exemplar da escultura helenista clássica e nunca, até então, fora encontrado um outro seu similar em tão bom estado de conservação. Para mais, tratava-se de um dos poucos exemplares escultóricos do chamado conceito de contrapposto – posição na qual a escultura apoia totalmente numa perna, deixando a outra livre, facto que oferece à obra um grande dinamismo. Policleto, Miron, Praxíteles e Fídias foram seus grandes representantes, tal como Lisipo, que, nas suas tentativas de plasmar as verdadeiras feições do rosto, conseguiu acrescentar uma inovação a esta arte, criando os primeiros retratos. O «belo grego» teve, por conseguinte, e até porque ainda ninguém percebera como uma estátua daquelas fora ali parar (para mais, a um sarcófago!), honras de exposição na mais afamada sala do museu, naturalmente junto de «Mona Lisa», também conhecida como Gioconda. Para sermos mais exactos, a estátua foi colocada mesmo em frente a Gioconda.
(...)


de O Sorriso de Mona Lisa, excerto do conto do mesmo nome. Deriva, 2008, 125pp. 14 euros

Filipa Leal e Pedro Teixeira Neves nas Correntes d'Escritas 2008


Capa de Gémeo Luís / Pedro Teixeira Neves



Pedro Teixeira Neves que escreveu O Sorriso de Mona Lisa, seguido de Quatro Contos de Fronteira, na Deriva, esteve nas Correntes d' Escritas, na Póvoa de Varzim, no dia 15 de Fevereiro, numa mesa moderada por Michael Klegger e constituída por valter hugo mãe, Eduardo Halfon, Ignacio del Valle e João Paulo Cuenca. O tema foi «A Literatura rasga a Realidade?». Na noite de quinta-feira fez-se o lançamento do livro. A intervenção do Pedro foi extremamente objectiva. Uma resposta muito concreta à questão formulada pela organização das Correntes e cujo Sorriso de Mona Lisa responde cabalmente. Basta ler.


Filipa Leal por Mafalda Capela


Filipa Leal, esteve na sexta-feira, dia 16, na mesa «Poesia: a bem dita e a mal dita» com Janet Nuñez, Jorge Sousa Braga, Ondjaki e Teresa Rita Lopes. Também a Filipa vai, muito em breve, lançar o seu próximo livro de poesia na Deriva com o título O Problema de Ser Norte. De uma grande clareza a intervenção de Filipa Leal.