sábado, agosto 10, 2024

«L´Homme aux trois Lettres», Pascal Quignard

 

Éditios Grasset, col. Folio,Gallimard, 2020.
É um verdadeiro hino à leitura e à escrita. Talvez superior, pela emoção e verdade colocadas em cada palavra, aos variados artigos que Pascal Quignard tem editado sobre literatura. Alguém que se dedique à leitura, fazendo dela uma espécie de remissão do mundo, tentando encontrar algo de novo por dentro das ruínas que nos envolvem, entre elas as línguas, as próprias palavras e as letras, fazendo do silêncio uma premissa para todo o acto de leitura, encontrará neste livro um acompanhante sincero, quase absoluto, um cúmplice atento à vida que levamos. E a vida que levamos é cada vez mais absorvida pelo ruído, pelas poucas palavras sempre repetidas em cada acção, sempre iguais. Pior do que tudo isso é a anulação do étimo das palavras. A eliminação pensada pelo poder das suas raízes. A convocação da ignorância.

Voltemos ao livro e deparamo-nos agora com o espanto e a maravilha das palavras e das letras: comecemos pela palavra «literatura». Não traduzo este trecho de Pascal Quignard para garantir-vos o seu sentido exacto: «Le mot littérature est sans origine. J'aurais consacré ma vie à une proie insaisissable. Dont le nom n'avait aucun sens. Ni usage, ni fonction, ni dessein, ni origine, ni but». Admira-me sobretudo o dessein, o «desígnio» que, segundo Jean-Luc Nancy já aqui falado no seu «O Prazer do Desenho», descreve-o como sendo a origem da palavra «desenho». A literatura, voltando a Quignard, não tem objectivo, não tem obrigações, não constitui um desígnio. Óptimo. Estará então livre de qualquer compromisso que lhe queiram impor. 

Sublinhei o livro quase todo o que significa, dizem os entendidos do sublinhado, que não marquei nada, por exagero. Discordo. No meu caso identifiquei-me de tal modo com «L´Homme aux trois lettres» que o roubei na sua totalidade e dividi-o em fragmentos, tal como prevê a narrativa vária de Quignard. Podia aqui colocar alguns deles. Fico-me, contudo, pelo seu início tentando traduzi-lo para vós. Talvez o seu trecho mais forte, o que é subjectivo, bem o sabemos:

«Amo os livros. Amo o seu mundo. Amo estar na nuvem que cada um forma, que se eleva, que se alonga. Amo continuar a leitura. Entusiasma-me reencontrar a sua leveza e volume na palma da mão. Gosto de envelhecer no seu silêncio, na longa frase que passa sob os olhos. É uma margem avassaladora, afastada do mundo, que ignora o mundo, mas que não intervém nele de modo algum. É um canto solitário que só aquele que lê, compreende. A ausência de qualquer som externo, a ausência total de alvoroço, de gemidos, de apupos, o máximo afastamento da vocalização e da massa humana que só os livros permitem, trazem de volta uma música profunda que começou antes de o mundo aparecer. A verdadeira música pode ser a retransmitida quando é escrita. Amo litteras. Amo as letras. Música silenciosa de estilos dos escritores que preferimos: são, como tantas, nuas, avassaladoras, particulares, íntimas, tocantes, incomparáveis.» (pág.9/10)

«O livro abre-se.
Ler amplia a passagem para a vida, a passagem por onde a vida passa, a luz brusca que nasce com o parto.
Ler descobre a natureza, explora, faz surgir a experiência na palidez do ar, como se se nascesse.» (pág.11)