terça-feira, janeiro 30, 2024

«Alucinar o Estrume», Júlio Henriques

 

Antígona, 2017. Desenhos de José Miguel Gervásio
Quem conhece a revista «Flauta de Luz», de que Júlio Henriques é um dos responsáveis mais conhecidos, saberá registar a forma literária que dá corpo ao que escreve em pequenos contos fantásticos e de uma crítica social arrasadora: «forma literária» é expressão minha sem presunção ou academismos que ele rejeita com veemência. No entanto, não será muito difícil a cada um de nós lembrar-nos da tradição cáustica e satírica de um Mário-Henrique Leiria, de um Virgílio Martinho, de um Luiz Pacheco ou de Alberto Pimenta, isto só para ficar nas fronteiras da região, porque se pusermos um pé de fora da lusa raia nada me escusa de citar Rabelais, Lawrence Sterne, Swift, Vian, Hrabal, Saunders ou o Voltaire de «Cândido», e pára aí (em Voltaire) porque de Iluminismos estamos cheios. As personagens de Júlio Henriques em «Alucinar o Estrume» são de uma ironia violenta (dirigida aos outros e a si próprios) e, paradoxalmente, absortos nos seus sonhos utópicos e cheios de espanto perante o que os outros lhes podem dar. E, com sábia e pura conveniência, vir a receber. Porque é uma espécie de potlach o que observamos nessas histórias, tanto com Estêvão Vao em «Alucinar o Estrume» ou em Elias Eupróprio em «Deus tem Caspa» de que já falámos por aqui. 

Este dar e receber recusa as trocas em dinheiro ou em mais-valias onde impera o lucro; assume-se, antes, nas solidariedades e cumplicidades dos «neo-rurais», muitos a chegar das cidades e heterogéneos nos objectivos e que, como Adriano, outra personagem que regressa ao campo «...andava a trabalhar em prol de uma autonomia que começava pela alimentar; não se espraiava em devaneantes optimismos segundo os quais podia desde já viver-se ''fora do capitalismo'' bastando para tal a vontade de um ''espírito superior''; e também não idealizava beatamente o mundo camponês, ou o que por aqui restava dele, sabendo todavia - questão prévia - que se trata de uma cultura milenar e que uma cultura destas, como diz John Berger, não se pode deitar fora como quem risca contas saldadas.» (pág.96) No entanto, Estêvão Vao continua a clarificar este regresso ao campo: «A sociedade vigente estava a rebentar pelas costuras e não eram bem-vindas as gentis propostas conducentes a remendar com panos quentes tais costuras. Era diversa e mais funda a perspectiva por ele perfilhada: sair desta civilização, contribuir para a parição de uma outra - sem que isso, contudo, significasse uma inteira tábua rasa: anteriores culturas perseguidas continuavam, agora mesmo, a sua luta pela existência de um mundo plural. Fosse como fosse, em muitos lugares da Terra essa perspectiva estava a caminhar em busca de um novo sol.» (pág.97)

O título ao livro explica-se pelo conto «Aldeias sem estrume S.A.» em que EstêvãoVao se vê solidário com os aldeãos que foram proibidos, por medidas eco-higienizantes e para não incomodar os turistas do Rural, de retirar o estrume usado nos currais e ovis e a colocá-lo na rua da aldeia, coisa que estavam habituados há séculos afora. Esta rede de aldeias sem estrume passou logo pela cabeça de Estêvão Vao que comunicou aos dois aldeãos furiosos que só viam naquelas leis municipais o objectivo de passar «aldeias sem estrume para sem aldeãos» para numa fase seguinte se passasse «a aldeamentos de empreiteiros e agências turísticas nacionais e internacionais.» Assim, conta-nos o autor em dois post scriptum o que se passou em seguida para contrariar as posturas autárquicas: 

«ps1:(...) adiantamos desde já que Estêvão Vao decidiu entabular conversa com os dois comensais, mudando-se para a mesa deles com a travessa de arroz de míscaros ainda fumegante. Lembrou-lhes um lema: para grandes males, grandes remédios. Porque uma afronta daquelas (a proibição de estrume nas ruas da aldeia) estava mesmo a pedi-las. Então agora quem manda nas aldeias são os turistas? É Sua Excelência o Turismo? Vade retro, Satanás! E no lusco-fusco se encetaram os primeiros conciliábulos com vista a resistir à malfadada invasão.
ps2: À noite, na pensão onde estava hospedado, Estêvão Vao pegou num volume, que andava a reler, dos Diários de Miguel Torga, nele deparando, entre outras, com as seguintes linhas: ''A intimidade desta vida de aldeia é um espectáculo ao mesmo tempo repugnante e maravilhoso. Estrume da cabeça aos pés. Entre o porco e o dono não há destrinça. Mas, ao cabo, esta animalidade toda, de tão natural, acaba por ser pura e limpa como a bosta de boi.''» (pág. 38,39)

Repugnante e maravilhoso! Grande Miguel Torga! O estrume, esse, ele encontrá-lo-ia facilmente nos vómitos assestados com mimo nas queimas das fitas coimbrãs, o Doutor! Mas esse académico estrume, não é chamado para o textinho que Júlio Henriques nos trouxe a lembrar, atempadamente, não vá a memória um dia falhar-nos. Porque irá falhar.

No quase-final do livro temos um conjunto de que chamarei, não sem algumas dúvidas, de aforismos, apostos em «Massa (crítica) com Feijão-Manteiga - Notas encontradas num caderninho escolar e Estêvão Vao» (pág.147) em que se pode ler esta pérola tão certeira como actual:

«Chamar cidadão aos eleitores é uma força de expressão certamente desculpável numa democracia avançada. Veja-se este dístico, cuja nobreza palpita na nossa atmosfera: LOUVEMOS E EXALTEMOS O GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL! AVÉ! Com efeito, é isto que aqui se lê. E não é por acaso: esta oração deve rezar-se revezadamente em voz alta antes e depois das refeições, se as houver.»

Antígona, 2017. Desenhos de José Miguel Gervásio

domingo, janeiro 28, 2024

«A Dominação e a Arte da Resistência-Discursos Ocultos», James C. Scott

 

Letra Livre, 2013, Tradução de Pedro Serras Pereira. Apresentação de Fátima Sá
Se bem que o estudo de James C. Scott se centre no discurso oculto e acções dissimuladas dos subordinados contra as elites aristocráticas e proprietários terratenentes e industriais entre os séculos XVII a XIX, não será difícil ao leitor atento uma transposição para as lutas dos subordinados de hoje em pleno capitalismo tardio e de vigilância. Provavelmente mais letal e repressivo do que o era nesses séculos. O sistema repressivo, assente na acção do Estado contemporâneo tem-se desenvolvido como nunca o vimos até se tornar verdadeiramente letal e os exemplos não faltam. A questão final que este livro nos coloca é se ainda há possibilidade real de conflito aberto que leve à construção de uma alternativa ao Estado ou ao capitalismo baseado numa construção de uma sociedade de produtores sempre reprimidos por aqueles. Porque discursos ocultos existem através de formas escondidas, eficazes para o espoletar de rebeliões e de revoltas. Mas até que ponto a recuperação pelas elites desses mesmos momentos de rebelião dos subordinados terão o êxito a que se propõem é a questão teórica e prática que James C. Scott apresenta neste «A Dominação e a Arte da Resistência», publicado em 1992 pela Yale University, onde o autor é professor.

«(...) parece-nos bastante claro que um subordinado prudente tende a conformar o seu discurso e os seus gestos àquilo que sabe que dele se espera - mesmo que essa submissão mascare uma opinião muito diferente daquela que é revelada fora de cena. O que nem sempre é tão claro é que, em qualquer sistema de dominação estabelecido, o problema não se resume à dissimulação dos sentimentos e à produção dos adequados actos discursivos e gestuais no lugar deles. Trata-se, antes de mais, de controlar o que seria o impulso natural para a revolta, a agressividade, a raiva e a violência que esses sentimentos normalmente desencadeiam. Não existe nenhum sistema de dominação que não engendre a sua própria safra diária de atropelos e atentados à dignidade humana: apropriação do trabalho, humilhações públicas, fustigações, violações, bofetadas, assédio, desprezo, rituais de denegrimento, etc.» (pág.71)

Num mundo contemporâneo com cada vez maior número de subordinados, uns verdadeiramente revoltados, mas cujas alternativas tardam em aparecer, ou outros que são da «servidão voluntária» bem descritos por Boetie, e que louvam e «compreendem» as «agruras» e «dificuldades» das elites, nada como ler este livro e usá-lo como alimento para a criação de situações irrecuperáveis.

Letra Livre, 2013, Tradução de Pedro Serras Pereira. Apresentação de Fátima Sá

«Deus tem Caspa», Júlio Henriques

 

Antígona, 1993, 2ª edição revista e aumentada. Apresentação de Alice Corinde
Um dos grandes libelos escritos contra o estado em que estão as coisas desde 1988 (mais ou menos), esta 1ª edição do «Deus Tem Caspa» de Júlio Henriques. A Antígona, a quem lhe deve muito pela colaboração que manteve com esta editora (e não foi a única, diga-se), já vai na 3ª edição e esgota sempre.

Verrinoso, intratável, irrecuperável, irónico até doer, Júlio Henriques percebe que povo temos, as suas idiossincrasias, as contradições e a miséria intelectual em que  caiu após um surto de febre facilmente debelável logo na jura à Constituição de 1976 e abandonando todas as múltiplas possibilidades de ser livre. Um país em que mandassem os produtores era bonito de se ver, mas o futebol, a pátria e a zona franca de Fátima levaram a melhor por obra, graça e firme vontade do povo português, nunca dado a grandes bodas com as revoluções. Para isso, usou o parlamento e a democracia liberal que vai de crise em crise até à vitória final, que, entretanto, se vai pondo a milhas do desiderato da população democrática e bem comportadinha., tadinha. Entregou-se igualmente a Deus que, como se vê, tem posto o planeta, e dentro dele o país, em condições de prosperar e encontrar finalmente a paz.

Através de Elias Eupróprio, feito guia-intérprete de Portugal também ele próprio, vai conhecendo a cidade de Coimbra metáfora e alegoria bastante para nos encontrarmos o verdadeiro ethos da nobreza e jactância bendita do povo português. Após, um prefácio de Alice Corinde a abrir as hostilidades e realçando a costumada obediência lusa, entremos em alguns trechos de «Deus tem Caspa» esperando que compreendam que o livro é muito maior do que vos mostro aqui. O critério é meu, portanto:

«(...) Graças ao tecido empresarial, a juventude escolar existe, e os executivos daquele, a quem não hesitaremos chamar Executivos de Deus, muito têm feito para promover tudo quanto é necessário promover. É graças a eles que existem as academias, sendo a de Coimbra tão-só a mais vetusta. Cada qual com os seus trajes particulares, cada qual com as suas praxes próprias [...], mas tudo isso sempre adequado às exultantes e adubáveis realidades do Ensino Sôprior. Daí a cor negra dos trajes e sua modelar inspiração nos seculares hábitos das igrejas: vão-se umas batinas, é certo, mas outras as renovam.(...)» (pág.69)

Mas, após umas aventuras no sul em autocaravana, Elias Eupróprio e mais umas companhias, e porque a chuva começava a cair teimando em terminar o estio, rumam a Coimbra:

«Como os três conduziam, a viagem apresentava-se fácil. Foram dilando um pouco, por aqui e por ali, chegando deste feliz modo a Coimbra, Portugal, com massa bastante para passarem uns tempinhos calmos. Nenhum deles conhecia a cidade; Elias ouvira falar dela, vagamente, como de um sítio sem grande interesse, e foi por essa razão, justamente, que lá decidiram ficar, pensando ser interessante conhecerem uma coisa assim.
Confirmaram-no, de resto, rapidamente. Aquele burgo era de facto uma das coisas mais ininteressantes que já tinham podido topar. Deambularam por cafés, por bares e por buátes, deslocaram-se a algumas residências estudantis e a vários departamentos académico-desportivos, e em todo o lado, harmoniosamente, se confirmava, com dados bastante mais precisos, a vaga informação inicial de Elias. (...) Que admirável era aquela pasmaceira, e a célebre ''mediocritate'' dos estudantes, tão cantada...» (págs.74/75)

«Segundo uma já ilustre e ruidosa multidão de enciclopédias de Cultura em Geral e uma insigne cópia de Obras Turísticas em particular, o português é triste. Inesgotável tema, por certo, cuja trágica trama pôde ao longo dos séculos tecer o oculto tecido do fantasma nacional, que Deus e a Democracia guardam em sua santa e fremente glória. Inquebrantável, rijíssimo tema, por si só lembrando a têmpera feral do ferrete luso! Que o não tema pois quem a ele se abalance, e lhe não falte ar e vinho, eis os votos sinceros e apaniguados deste que assassina quem o contrário sustente a bife da vazia (...)» (pág.105)

Se algum dia (feliz) conseguirem ter este livro entremãos não percam o conto «Lentes», cujo protagonista continua a ser Elias Eupróprio que em longo passeio por Coimbra e no Jardim Botânico encontra uma batata que lhe repetia: ''Fala-te um lente, meu rapaz. Escuta-me e terás uma carreira brilhante e assegurada, deslocações ao estrangeiro com tudo pago e uma bolsa para investigação da Fundação Gulbenkian''. Escusado dizer que o encontro com um tubérculo não impedia que a voz viesse lá do alto. Depois de muito deambular por Coimbra, pela Baixa, pelo referido Jardim Botânico, tendo-se cansado no Jardim da Sereia, passeado pela Praça da República, pisando o solo de Celas, eis que Elias nota que a voz do lente se transformou em 10 volumes da Enciclopédia Larousse-Selecções cuja definição de lente o exaltou. Dizia:

«''Os lentes, contrariamente às lentes, não têm uma vida sexual digna de nota, se bem que, pela razão extraordinária de serem lentes, isso constitua, ipso facto, uma particularidade digna de estudo. Os seus cuidados são absorvidos na busca de alimentos espirituais apodrecidos, que diligentemente absorvem com o fim abnegado de os servirem, depois de mastigados, aos seus sectários, a horas certas. São abundantes na região, mas a sua caça é expressamente proibida; as multas podem ir até 1500 escudos.'' Elias sentiu então uma sede atroz e uma fome atroz. Volveu os olhos para baixo, para a cidade cheia de automóveis e de moscas, e transformou-se em merda.» (pág.144)

O país, Coimbra, é também isto, talvez mais que isto, talvez ainda menos que isto. Na ocasião, nos anos 80, no dealbar de uma época fugaz de alguma rebeldia criadora em Coimbra, que Júlio Henriques também conheceu, já se previa a aceleração da decadência da cidade e a proximidade do cavaquismo que a moldou, tal como ao país inteiro, de muito dinheiro, pez, alcatrão e betão armado, materiais imprescindíveis ao capital(ismo). Sendo assim, fiquem assim com ela e com ele tal como está. Ou pior.

 Antígona, 1993, 2ª edição revista e aumentada. Apresentação de Alice Corinde

«A Ideia», 100 a 103. Outono de 2023

O número de outono d' A Ideia já saíu e está à vossa disposição nas livrarias independentes habituais. Para além da excelente revista de cultura libertária, cuja qualidade e intervenção alternativa já nos habituou, junta igualmente um suplemento dedicado aos 100 anos de Cesariny.

O Índice do número 100 a 103



 

sexta-feira, janeiro 26, 2024

Manifestação de apoio à Palestina em Coimbra. 28/1/2024

 


Jornal Mapa nº40. Janeiro a Março.

 


«E eis-nos chegados ao MAPA #40, no ano em que o 25 de Abril faz 50. Um número que é um grito por um cessar-fogo na Palestina, onde a guerra, como sempre, se assemelha a um investimento. Mas que não esquece que, com a normalização das investidas policiais nas universidades, também por cá os tempos não são os melhores para as liberdades. Visitamos Chiapas – cuja experiência zapatista está, ao fim de 30 anos, em processo de alterar a sua estrutura de autogoverno – e Rojava, esta através dum olhar trans não binário. Em terrenos mais próximos, passamos pela Andaluzia na sua luta pela terra, por Covas do Barroso na sua oposição à mineração, por Contumil (Porto) no seu processo de gentrificação, e por Curral das Freiras (Madeira) no seu combate pelo território. Não faltam ainda entrevistas, incluindo a Solveig Nordlund, cineasta fundamental da filmografia de Abril, ao ressurgido Indymedia e a dois pontos onde podes encontrar o MAPA à venda. Notícias também da Europa-Fortaleza, num tempo de cada vez maior utilização da Inteligência Artificial para fins repressivos que Joseph Weizenbaum parece ter previsto em 1976. Destaque central para o Vale dos Vencidos, livro de José Smith Vargas acabadinho de editar. Tudo isto com paragens para humor, literatura, cinema, poesia, ilustração, BD, ….»

Da apresentação da redacção do Mapa.

quarta-feira, janeiro 24, 2024

«Tasmânia», Paolo Giordano

 

D. Quixote, Novembro de 2023. 300pp. Tradução de Vasco Gato
Não esperem grandes rasgos literários e, muito menos após lerem «Tasmânia», concordarão que Paolo Giordano é «um dos mais importantes escritores italianos da actualidade» ou que o seu livro é «feroz e ao mesmo tempo comovente» como alertam as badanas do livro editado pela D. Quixote.

Apocalipse, vise-se hoje em Gaza e na Ucrânia. Preparam-se tantos mais, quanto mais depressa entrarmos num inverno nuclear que nos levará eventualmente à extinção. Nada que não saibamos sobre a programação oculta inscrita nos vários países do mundo apostados em acreditar nas alternativas autoritárias a autocráticas, para não dizer ditaduras que, segundo a ONU, nos últimos anos tiveram um aumento exponencial. Não escolho palavras ao acaso, basta fazer uma investigação no Sr. Google e os gráficos da organização mundial dizem tudo.

Paolo Giordano é um jornalista físico, dedicado a temas científicos sobre as alterações climáticas e a cada vez mais certa catástrofe. Foi este assunto que me levou a adquirir o livro. Depois, aparecia por todo os jornais, em operações de marketing bem visíveis elaboradas pelos críticos da praça, como se fosse uma experiência brutal de um novo tipo de literatura. Não vi lá nada. Diziam que para além do apocalipse físico do planeta, também ele vivia um, pessoalmente. Sinceramente nada vi. Se o apocalipse era a relação com a sua mulher, temo dizer que 90 em cada 100 portugueses que pediram o divórcio após o casamento, também já o viveram, com a agravante lusa de terem de continuar a morar um com o outro devido ao preço da habitação. Isso talvez configure uma verdadeira calamidade. Mas adiante.

Quanto ao apocalipse em si, o da Terra, ele mistura tudo, as alterações climáticas verdadeiras, o terrorismo islâmico, as megatoneladas de satélites que envolvem a atmosfera da terra e que a todo o momento podem cair sobre nós numa reacção em cadeia, os problemas de género, o negacionismo que provoca a síndrome de Cassandra que se explica pela impotência dos cientistas do ambiente em fazerem-se acreditar por políticos e pela população alimentando um estado pré-traumático e depressivo sobre eles, a proximidade real de um inverno nuclear por uma guerra mundial, a seca e a falta ou envenenamento dos recursos hídricos, as pandemias, o desaparecimento das nuvens ou a transformação destas em nuvens de metano com luz própria para além da libertação do permafrost, também de metano que liberta o CO2, só para citar alguns dos problemas que fala sem grande aprofundamento. Enquanto isso, ele viaja pelas COP's, não gosta do que vê, vai tendo aqui e ali relações com mulheres fugazes e apocalípticas, claro, não consegue ter filhos sabe-se se lá se pela qualidade da água cheia de feromonas, vai comendo hambúrgueres e embebeda-se de vez em quando para aliviar o stress. 

Sobre a guerra mundial que será nuclear, (daí Paolo Giordano se encontrar, por várias vezes, em Hiroxima e Nagasáqui para estudar ainda hoje os efeitos das bombas A), vejo-me na quase obrigação de lembrar uma afirmação de Einstein, não sei se apócrifa, mas que ainda assim vou citá-la: «Não sei as consequências se houver uma Terceira Guerra Mundial, mas sei que a Quarta será à pedrada!». Tasmânia? Por que não a Patagónia, igualmente? De qualquer modo, os abrigos atómicos das elites já estão a ser construídos sub-repticiamente. Onde irão eles, após o colapso, comer os hambúrgueres e as coca-colas, pergunto-me? Mandam vir pela Uber? Através da net? Qual net? Qual Uber?

A referência à Tasmânia, em somente duas páginas do livro e que lhe dá o título, explica-se porque, segundo o jornalista científico Paolo Giordano e alguns outros cientistas, terão a certeza que será o único lugar que reúne as condições necessárias para a sobrevivência após o apocalipse, tenha ele as características que tiver. Marte? A proposta hilariante de Elon Musk de explodir bombas nucleares em cadeia nesse planeta, de modo a produzir uma atmosfera viável para o ser humano, é de um ridículo que ultrapassa Trump quando este afirmou que não havia aquecimento global porque nevava e rodos em Nova Iorque! Depois, há afirmações, no mínimo grotescas, como a que Marie Curie foi a primeira cientista negacionista da História, por ter rejeitado que a doença que a levou à morte, mesmo com as mãos verdes fosforescentes devido à manipulação de urânio, nada tinha a ver com radiações. Forçado, isto. 

Tudo muito leve, demasiado leve. Se a táctica era misturar um problema real do clima e do planeta como metáfora da sua vida real, falhou totalmente. Quanto a mim, há livros bem mais preocupantes e sérios, com dados científicos verificáveis sobre o colapso. Basta procurá-los. Talvez o fim deste livro na minha estante, signifique que a plataforma olx seja uma alternativa interessante.

D. Quixote, Novembro de 2023. 300pp. Tradução de Vasco Gato

domingo, janeiro 21, 2024

«O Anticrítico», Diogo Vaz Pinto

 

Maldoror, Dezembro de 2023. 659pp
Já cá mora, enviado rapidamente pela Letra Livre, uma editora e livraria independente que, ainda por cima, soma a estas qualidades a do envio das encomendas para todo o país. Não é só a única, diga-se (a Utopia e a Snob também contam para o recado), mas convém lembrar-vos. Trata-se de «O Anticrítico» de Diogo Vaz Pinto, editado em Dezembro de 2023. Escuso de lembrar que é poeta, escreve no «Sol» e que é editor da Língua Morta.

Atenção: não li o livro todo. Vou lendo aqui e ali, porque o livro está bem estruturado e leva-nos facilmente onde queremos, isto é, a tipos que conhecemos, a poetas lidos e conhecidos e a referências impossíveis de contornar. Ainda é cedo para conseguir ler todas as 650 páginas, mas do que li, e já não foi pouco, infiro algumas das verdades apostas: Diogo Vaz Pinto sabe do que fala e do que falta na literatura e na poesia portuguesas. Tem uma enorme cultura de base, que não se confunde com a cultura de café ou de «títulos jornal» saídos directamente da Wikipédia, com que muitos ditos críticos nos brindam e brincam connosco. É contundente e implacável. É, sem dúvida. Mas as letras lusas há muito que precisavam de uma escrita como a dele. Sentíamos (sentimos) uma modorra, uma corrupção de interesses instalados muito difíceis de suportar para quem usa e teima no costume de ler e que não desiste disso. Uma arrogância sapiente a modos de exportação coimbrã instalada em Lisboa e Porto, mai-la província em bicos de pés. As festas florais em que transformaram os encontros literários, os editores a lixarem outros, o ego insuportável de autores, as sacanices utilizadas e isto sem querer arrolar muita porcaria do que se vê e lê. Não se deduza, contudo, que Diogo Vaz Pinto seja «uma lufada de ar fresco» como é costume dizer-se amiúde quando queremos recuperar alguém. Ele não me parece «recuperável». 

«Não tenho conta para as vezes todas em que, para ir com a rábula insultuosa que me tecem, pegando uns onde outros deixaram, numa cooperativa de imbecis que, sinceramente, me comove, já me quiseram tirar a condição que vem de tudo o que faço. Mais difícil seria desmontar alguma coisa. Resta que, ou ignoram muito vermelhuscos, ou a ideia é revogar-me a carta, licença, prostrar-me na indigência de eu ser uma qualquer abominação, ''Bicho'', monstro que ligam com tudo o que é baixo, e mesmo assim paira sobre eles sem explicação. (...)» (da contracapa)

Pode-se concordar com ele ou não. Em alguns trechos sobre autores, não concordei. Na maioria dos casos, sim. São inegáveis e certeiras as críticas do «anticrítico». Mas é necessário ter o livro à mão para o dizer.

Passo a transcrever um trecho de um capítulo, «Coveiros da Própria Consciência» (pág.605) que mais me deram prazer ao ler e, agora com experiência feita de 15 anos e editado 250 livros, tendo parado há 7 anos a edição e fechado a luz da Deriva, de ter pago a água, entregue a chave ao senhorio, é com total concordância que vos dou aqui a conhecer:

«Seria uma tristeza, uma canalhice, na verdade, fingir que há algum charme na edição literária. É uma vocação desesperada, em nome de um mundo que há muito levantou as âncoras e deslocou deste, tendo deixado apenas o cheiro a despegado, os traiçoeiros ecos de ordem às tripulações, e ainda temos de aturar esses marinheiros de água doce, enchendo a toda a hora a boca com os «ó céu ó mar ó destino», e temos as enfadonhas canções de bêbados, as mais desconchavadas meretrizes com a sua entrega desoladora, e, nisto, no máximo, pode aspirar-se àquela noção romântica que Leminski cunhou para o poema que não se entende, e por isso é digno de nota, com «a dignidade suprema de um navio perdendo a rota».
Assim, editar seria como escrever algo em busca de um desentendimento imensamente desafiante e animador, essa conversa que o escritor israelita Etgar Keret disse ser longa como um túnel debaixo de uma prisão, escavada pelo editor - paciente e dolorosamente - com uma colher, para que possamos sair do lugar onde estamos. A edição está a meio caminho entre a utopia e o pão com margarina servido a um faminto. Há, portanto, muita margem não só para erros audaciosos, mas para aldrabices, e é uma paisagem que se apresenta hoje cheia de lacraus e vigaristas, desses que não apenas acreditam mas, mais, até se deixam embalar nas próprias lérias. (...)» (pág. 617, 618)

Vou continuar a ler e a consultar. Em português bem escrito, acresce-se.

quarta-feira, janeiro 17, 2024

«Tai Pi», Herman Melville

 

Minotauro, Junho de 2023. 358pp. Tradução de Miguel Martins
Ah, canibais! Digo-vos desde já que entre os antropófagos que por aí andam nas sociedades contemporâneas e os originais, depois de ler «Tai Pi, Um Olhar sobre a Vida Na Polinésia» de Herman Melville, prefiriria, de longe, conviver com os segundos. O livro foi escrito em 1846, editado recentemente pela Minotauro, e corresponde ao período em que Melville, acabado de observar a ruína financeira da família novaiorquina, parte para a aventura que o leva no navio Dolly para a Polinésia «francesa», ou seja em Nuku Hiva, nas quase virgens Ilhas Marquesas. Foge, com um companheiro de viagem, Toby, do navio que o trouxe a esta baía e fica por lá durante quase meio ano. «Tai Pi» foi o seu primeiro livro, a que se segue «Omoo», sequela do primeiro e que estranhamente não foi traduzido e publicado em português ou nas suas vertentes brasileiras ou africanas. Que eu saiba; e é pena se assim é.

Os canibais de Tai Pi, que em polinésio significa «comedores de carne humana», são no seu quotidiano vegetarianos. Ora, toma! Eles são cocos, bananas, fruta-pão, e só de vez em quando, em grandes festas comunitárias, lá comem um parkuee, porco ou leitão, e uma ovelha ou outra. Peixe, raramente e só cru, acompanhado inapelavelmente por mais festas. Bebidas: água límpida e fresca que brota de múltiplas cascatas e uma «arva» de efeito narcótico e relaxante que escuso aqui de enaltecer porque infelizmente nunca conheci. Melville diz que provoca um sono luxuriante e eu acredito. Fumavam uma espécie de tabaco com cachimbos que rodavam entre mãos, igualmente «relaxante», embora o escritor nunca tenha reparado em plantas de tabaco na ilha. Mistérios. A verdade é que os dias passavam com o «Molee», que em polinésio, era o chamado descanso ou sesta. O tempo, nas sociedades ditas primitivas, não é o mesmo do nosso. Dilata-se. Carne humana? Já lá vamos.

Os hábitos dos Tai Pi, inimigos declarados dos Happares seus vizinhos e igualmente canibais, eram, de facto, formidáveis e, ainda hoje nos encanta, lendo a descrição real de Melville no meio-ano que esteve com eles, quase prisioneiro, visto que não o queriam em contacto com os brancos de onde era proveniente não o deixando descer à baía de Nuku Iva já em comércio inicial com a França. Conclusão: os Tai Pi, por mais canibais que fossem, não mastigaram Herman Melville e deram-lhe a possibilidade de um êxito estrondoso com a publicação deste livro e de Omoo. No fundo, amaram o americano intranquilo, deram-lhe todas as mordomias e simpatias; Kory-Kory foi o seu ajudante e guardador quotidiano, apaixonou-se por Fayaway «a mais bela das nativas» e teve relações privilegiadas com o chefe (não tão chefe assim) Mehevi. Aliás, não havia «chefes» tal como um pobre ocidental habituado miseravelmente à subordinação, o entende. O prestígio de um indivíduo vinha sobretudo das suas façanhas guerreiras contra os brancos ou os Happares. Aí, havia festança no fim das refregas e lutas que paravam aos primeiros ferimentos ou mortos e que não ultrapassavam o número dos dedos da mão de um lado e de outro. Melville, no fim da sua estada forçada por uma perna doente e pela teimosia dos Tai Pi em não o deixarem sair do vale de dois mil habitantes, reconheceu que a festança era nutrida por corpos dos mortos em combate. Nada do outro mundo e até, por consideração ou comiseração, não o convidaram para a grande festa de dois dias não fosse o americano descobrir os ossitos e caveiras humanas a servir de decoração dos Pi-Pi e do Ti a grande cabana de homens. Disseram-lhe que se ele fosse a essa festa particular de guerreiros (houve outras de dias seguidos para que foi convidado) era «tabu» uma expressão que Melville, nunca soube traduzir porque ou tudo era tabu ou nada era tabu. Ou, melhor ainda, os tabus podiam ser levantados, segundo a disposição do chefe Mehevi ou de um sacerdote mais afável para com os preceitos sociais. Embora de índole guerreira os conflitos entre o clã eram inexistentes, as crianças eram poucas e felizes, a poligamia era feminina e não masculina, isto é cada mulher tinha entre um a dois homens que escolhia ou repudiava, nem tinha as habituais tarefas atribuídas às mulheres, mesmo em sociedades não ocidentais e «primitivas». Como não havia agricultura, não havia trabalho, ou propriedade. Talvez o Pi-Pi, a casa, ou a lança, fosse a única propriedade tida como tal, mas eram casas abertas a todos e não havia roubos, conceitos completamente desconhecidos entre os Tai Pi e os Happares. Na baía de Nuku Hiva, onde os barcos ocidentais atracavam em busca de ouro e metais preciosos, já não era assim, obviamente. Daí os povos das montanhas exigirem o isolamento e os contactos em forma de «tabu».

«Neste estado de espírito, todos os objectos que captavam a minha atenção infundiam-me uma perspectiva diferente, e as oportunidades de que agora desfrutava de observar as atitudes dos nativos tendiam a fortalecer as minhas impressões favoráveis. Uma peculiaridade que me provocou admiração foi a permanente hilaridade que reinava ao longo de toda a extensão do vale. Pareciam não existir quaisquer preocupações, tristezas, problemas ou contrariedades em todo o Tai Pi. As horas passavam tão alegremente como os casais sorridentes num baile rural. [...] Tudo era alegria, diversão e muito boa-disposição. O desalento, a hipocondria e as depressões dolorosas iam esconder-se no meio dos recantos e das fendas das rochas.» páginas 174 e 175.

Sendo assim, Herman Melville voltou para Nova Iorque, após mais dois anos na Polinésia. Quer «Tai Pi», quer «Omoo» foram um êxito comercial, o que não aconteceu com os posteriores «Moby Dick» e «Bartleby» na ocasião ostracizados e hoje considerados os melhores livros de Melville. Regressou então para, palavras dele, a «civilização» onde encontrava as execuções hipotecárias, letras protestadas, contas a pagar, dívidas de honra, alfaiates ou sapateiros injustos, obstinados em serem pagos, cobradores, advogados que fomentavam a discórdia, familiares pobres a ocuparem permanentemente o quarto de hóspedes, viúvas desamparadas com os seus filhos a passarem fome nas instituições de caridade deste mundo, mendigos, prisões para devedores. Continua: «Em Tai Pi, não havia quaisquer nababos orgulhosos e insensíveis; ou, para resumir tudo numa palavra, não havia dinheiro! Essa ''raiz de todos os males'' não se encontrava no vale.» (pág.175)

Escolha dele. Gauguin não o fez. Um livro admirável que deve ser lido com sofreguidão abundante.

Minotauro, Junho de 2023. 358pp. Tradução de Miguel Martins

sexta-feira, janeiro 12, 2024

«Felizes anos de castigo», de Fleur Jaeggy

 

Alfaguara, Outubro de 2023. Tradução de Ana Cláudia Santos
Não é costume, mas inicio esta ficha de leitura com um comentário de Joseph Brodsky sobre «Felizes anos de castigo» da suíça Fleur Jaeggy, livro publicado na Itália, em 1989: «A caneta de Fleur Jaeggy é como a agulha de um entalhador a desenhar raízes, os galhos e os braços da árvore da loucura - uma prosa extraordinária. Tempo de leitura: quatro horas. Tempo de recordação: a vida inteira.»

Se concordo com este comentário de Brodsky, já não me reconheço noutros que a editora deu a conhecer nas badanas e contracapa. A narrativa centra-se na relação obsessiva de duas jovens (a própria Fleur e Frédérique) num colégio interno na Suíça, mas não me parece ser esse o seu principal fio condutor. Trata-se, antes, de uma descrição de um universo concentracionário, absurdo e paradoxalmente bem real, pesado, violento, de um colégio interno onde se passaram os melhores anos da vida de muitas jovens. No entanto, e reside aqui a singularidade do estilo literário de Fleur Jaeggy, este clima de quase pesadelo não perpassa totalmente para a escrita. A autora sabe ver através do vidro das janelas dos quartos fechados as estações do ano, a Primavera que desponta, a neve que cai, o Outono das folhas caídas e o calor do estio no Lago Constança. Também nos armários individuais os objectos, as cartas, os sinais que vêm de fora, da família ausente e dos comboios libertadores que as levam nos períodos de férias que, nem por isso, são melhores. A sua escrita é límpida.

Para além da prosa que nos prende completamente ao livro de uma escritora desconhecida para os portugueses, embora nascida em Zurique em 1940 e já com uma obra algo vasta, a sua leitura foi-me acompanhada por vários sobressaltos. Um deles começa logo na primeira página do livro: Escreve Fleur que tinha apenas 14 anos, quando teve conhecimento da morte próxima de um homem na floresta de Appenzell quando dava o seu passeio na neve. Esse homem era Robert Walser. Não era ainda reconhecido como escritor em 1956, ano da sua morte a 25 de Dezembro (aqui deve haver um engano de datas da escritora, visto que então teria 16 ou 15 anos e não 14 como refere), nem a sua professora de Literatura o conhecia. Talvez por isso se tenha debruçado, posteriormente, pela história trágica de Walser, também ele internado e durante trinta anos, no manicómio de Herisau a muito pouca distância do Bausler Institut, o colégio de Fleur. Mais tarde torna-se amiga de escritoras e escritores de que aqui dei nota: Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard, Italo Calvino ou o já citado Brodsky. Traduziu igualmente Marcel Schowb, entre outros.

O outro sobressalto estará relacionado com a vivência de Fleur Jaeggy no colégio interno. Só por quem lá passou, e na idade entre os 6 e os 15 anos vividos por ela, é que poderá compreender na sua totalidade os sentimentos contraditórios de amor e ódio, de revolta intensa, de vontade poderosa de fuga, de violência explosiva ou de impotência que guardam as paredes de um colégio. Sei do que falo, daí o sobressalto mais que justificado perante o título irónico de «Felizes anos de castigo». O espanto que cresce à medida que lemos Jaeggy é a triste certeza do que fala e do que viu transcrito para este livro admirável. Acreditem que, em colégios internos, o inferno está mais perto do que se pensa:

«Eu compreendia aquelas crianças que se atiravam do último andar de um colégio só para fazerem alguma coisa desregrada, e disse-lho [a Frédérique]. A ordem era como as ideias, uma posse, uma possessão. (...)» Pág.54. 

Num colégio interno ou, calculo, numa prisão, a necessidade de ordem chega a ser uma obsessão perante o caos da violência, dos castigos gratuitos ou dos afectos em ebulição, mesmo que não se manifestem durante uma eternidade. Porque o tempo, aí, torna-se uma eternidade. Tem-se de ter os armários fechados a cadeado, a roupa bem arrumada, a carteira da sala igualmente fechada, separada com os cadernos das disciplinas, os manuais, os estojos em que não falte nada para evitar não só os castigos, mas também que as ideias estejam em «ordem», naturalmente em ordem. Fleur descreve o seu armário e a carteira como o seu mundo. 

Depois vem o desejo, a necessidade de prazer que se confunde com a tristeza e a solidão. Não há escolha: «Mas perseverava no prazer de ir até às profundezas da tristeza, como se faz com uma humilhação. O prazer do desapontamento. Não me era novo. Apreciava-o desde que tinha oito anos e era aluna interna no primeiro colégio, religioso. E se calhar foram os melhores anos, pensava. Os anos de castigo. Há como uma exaltação, ligeira mas constante, nos anos de castigo, nos felizes anos de castigo.» Pág.80.

Este livro rasa ao de leve nos «educadores» e nas suas taras, incongruências, desejos escondidos, na sua crueldade. Tal como Fleur Jaeggy, também senti essa violência discricionária, gratuita, exercida por indivíduos que se diziam professores a alunos e que nem sequer se deviam aproximar de uma instituição educativa, quanto mais ensinar ou educar. O mesmo para os prefeitos aceitados para castigar e que não tinham hipóteses de ter um emprego normal, alguns deles criminosos da guerra colonial. Em Portugal, só conheço uma ou outra obra que trata esta violência (cito de cor): a de Vergílio Ferreira em «A Manhã Submersa», a de Nuno Bragança em «A Noite e o Riso» em que ele foge do colégio que frequentei, e ultimamente «A Gorda», de Isabela Figueiredo (presumo na parte feminina do mesmo colégio conhecido pela sua brutalidade). Mas foi um artigo de uma crónica de António Guerreiro, no Público, que chamou a atenção sobre este fenómeno mais que usual nos colégios portugueses: a crueldade exercida sobre alunos e alunas por professores que deveriam pedir desculpa a gerações inteiras dessa gratuitidade movida por autênticas taras. Talvez um dia a República a peça. Mas quando, hoje, ouço professores a defenderem a retoma de castigos físicos com o «argumento» de «a mim não me fizeram mal nenhum», duvido que, em vida, assista a tal acontecimento. 

Mas o que diz Fleury sobre esses educadores? «Rancor é coisa que os educadores parecem possuir, um rancor à superfície da pele e no tom de voz, um rancor, ousaríamos dizer, quase pela humanidade em geral. E é talvez graças a este rancor que eles, os educadores, são em substância bons educadores.» Pág.91. Talvez. Um educador é sempre um reactivo, um disciplinador.

Termino adiantando, espero que não abusivamente para quem ler este livro, que Frau Hofstetter, a directora do colégio, acabou por morrer num desastre de automóvel em pleno temporal no Appenzell, junto com o marido e com o filho. As mortes pouco significaram para Fleur. Já tinha outro colégio interno que frequentava e Frédérique, sempre tão racional durante a estadia na instituição como aluna, encontrava-se num manicómio, despojada de tudo, por tentar deitar fogo à casa, com a sua mãe lá dentro. Nunca mais se encontraram. Fiquemos então com as palavras de doce ironia e maldade criativa de Jaeggy:

«Éramos maleáveis, ela [Frau Hofstetter] modelou-nos. Mas como podiam os seus olhos vigiar um temporal, que se calhar queria pregar-lhe uma partida? Os educadores, pelo menos aqueles que conhecemos, não têm uma vida dupla. Durante o ano ensinam, depois descansam. Nunca vão à aventura. Não temos saudades dos nossos educadores. Talvez por vezes os tenhamos respeitado demasiado, mas isso fazia parte da educação que recebemos, e, se todas as noites beijei a mão à Mére Préfète, sem nunca me rebelar, foi porque, por vezes, além das regras, havia também a volúpia. A volúpia da obediência. Ordem e submissão, não se pode saber que resultados darão na idade adulta. Há quem se torne criminoso ou, por desgaste, bem-pensante. Mas ficámos marcadas, sobretudo aquelas raparigas que passaram sete a dez anos num internato. Não sei o que lhes aconteceu, já não sei nada delas. É como se estivessem mortas.» Páginas 92 e 93.

Em 1989, presumo, Fleur Jaeggy foi procurar o Bausler Institut. Já não existia e as pessoas, disseram-lhe que estava enganada. Ali nunca houve um colégio, agora o edifício era um instituto para cegos. Talvez fosse melhor procurar noutro local. A memória levou esse colégio como o vento. Tal como o meu colégio, hoje coberto de heras e de osgas, ratazanas e vidros partidos, de morcegos e de pombos que entram nas antigas salas de aulas. Quando também há pouco tempo passei por lá, não deixei de me sentir bem ao vê-lo assim. Mas ainda há memória dele.

Fleur Jaeggy está viva. Está em casa, em reclusão, há anos.

Alfaguara, Outubro de 2023. Tradução de Ana Cláudia Santos


quarta-feira, janeiro 10, 2024

Greve Climática Estudantil e Climáximo alvo de humilhações e violência policial


DN de 7/01 e Público de 8/01

Há apenas 5 posts relatei aqui, e isso nas redes sociais vale o que vale, a repressão policial completamente desproporcionada, junto com a população motorizada, armada de tacos de hóquei e outros objectos, a que são votados os jovens manifestantes que lutam contra a anemia criminosa das instituições governamentais face às alterações climáticas. Escrevi isto no dia 20 de Dezembro de 2023.
Ontem, dia 7 de Janeiro, no DN, Fernanda Câncio traça um descrição de 3 páginas de verdadeira selvajaria e terror com que os jovens foram tratados após a detenção nas esquadras policiais a saber: no Calvário, nos Olivais e em Moscavide. E isto após serem severamente agredidos enquanto as acções decorriam, quer pela polícia, quer por populares que não foram, como deveriam ser, identificados. Algemaram-nos entre 7 a 10 horas, despiram-nos parcialmente e a algumas raparigas chegaram a despir totalmente. Perguntaram-lhes se eram gays, lésbicas ou homossexuais, como se fosse importante para um eventual inquérito (!?). A queixa está no MAI de José Luís Carneiro que, entretanto, «repreendeu» a polícia que mandou despir totalmente uma das jovens. Ninguém repreendeu os polícias que colocaram luvas de latex como eventual ameaça na revista individual aos jovens masculinos, já depois de serem revistados por 3 a 4 vezes por cima da roupa. Hoje, dia 8 de Janeiro, o Público retoma a notícia do inquérito do MAI, da Inspecção-Geral da Administração Interna e Procuradoria-Geral da República por estas práticas policiais. Iremos ver o resultado. Já em Maio de 2021, 19 manifestantes também do sexo feminino foram obrigadas a despir-se. Os casos têm-se repetido, desde aí, sempre com a mesma acção de humilhação e violência por parte da polícia, nomeadamente a 24 de Novembro e a 14 de Dezembro de 2023.
Parte interessante destas notícias que só agora parecem preocupar os media: as manifestações são pacíficas, nada foi encontrado de artefactos violentos, mesmo que existam artigos de opinião de juízes e de comentadores que exigem (ainda) mais repressão e prisão efectiva para estes jovens, muitos deles organizados na Greve Climática Estudantil e na Climáximo.
Pormenor: esse mesmo juiz que teve a ousadia de propor à polícia uma guião para o «tratamento» a este jovens para prisões efectivas (apondo nos relatórios crimes que ultrapassariam os 5 anos!) é o mesmo que na semana que passou, escreveu, escandalizado, com o facto de 71% de portugueses ignorantes opinassem sobre a percepção que tinham que Costa era inocente na Operação Influencer! Isto, segundo esta douta opinião, de se ter percepções para além de ser tramado deveria ser proibido!

quinta-feira, janeiro 04, 2024

«Todos os Cavalos do Rei», de Michèle Bernstein

 

Debord com Michèle Bernstein (à sua esquerda). As mãos à sua direita são de Alice Becker-Ho. Foto e legenda da Biblioteca Nacional de França

Barco Bêbado, 2023. Tradução de Joana Jacinto.
Finalmente, uma edição traduzida impecavelmente por Joana Jacinto de «Tous les Chevaux du Roi», de Michèle Bernstein publicada, imaginem, em 1960. Acresce-se as boas ilustrações de Jorge Feijão. Há ainda uma pequena introdução de Stewart Home. Merece um apontamento elogioso à Barco Bêbado por esta iniciativa.

Torna-se evidente que ao ler avidamente o primeiro romance de Michèle Bernstein nos lembramos do encantamento que sentimos ao ver um filme a preto e branco dos anos cinquenta e sessenta do século passado. Caramba, foram 64 anos de intervalo entre a sua publicação e a tradução portuguesa! O livro respira liberdade e ousadia. Uma luta permanente contra o tédio, a vida e a moral burguesas. Sem ser uma obra-prima (quem a desejaria?) é de uma beleza desarmante. E por vezes com alguma doce crueldade, igualmente. Já lá voltamos. 

Vale a pena descrever um pouco quem é Michèle Bernstein: segundo os biógrafos (apoio-me principalmente na biografia «Vie et Mort de Guy Debord» de Christophe Bourseiller e editado pela Plon) e artigos avulsos sobre Debord, com declarações importantes da própria Bernstein; ela conheceu Debord já em 1952 com a Internacional Letrista, vindo com ele e outros, em que se destaca Asger Jorn (que Stewart Home o faz passar, no livro, pela personagem Ole), a dissolvê-la e substituí-la pela Internacional Situacionista em 1957. Desde esta data até 1969 tem uma acção discreta, mas fundamental para a construção do corpo teórico da Internacional. Teorias essas que se vêm a revelar certeiras na análise da sociedade do espectáculo e do capitalismo integral em que mergulhámos e cuja catástrofe iminente está bem à vista de todos. Júlio Henriques, na impecável antologia sobre a Internacional Situacionista, cujos textos escolhidos foram da sua responsabilidade e da Antígona, revela-nos que muitos dos comunicados e escritos dos situacionistas têm a sua assinatura. No número 1 da revista da IS, logo em 57, Michèle Bernstein assina o artigo «Pas D'Indulgences Inutiles» sobre a importância da conferência fundacional de Cosio d'Arroscia (edição antológica da Champ Libre). 

Voltemos ao romance «Todos os Cavalos do Rei» procurando os sinais do que se pode chamar, hoje, de inconformismo activo e procura incessante da Vida como deveria ser vivida, como uma deriva revolucionária. Essencialmente, o (anti)romance centra-se em Gilles e Geneviève, embora talvez seja abusivo o termo «centrar». Há várias personagens que se movem amorosa e intelectualmente à sua volta. Todos muito novos, loucos e errantes. Foquemo-nos no que escreve Michèle Bernstein sobre a noite e a deriva em Paris, em consonância, aliás, com o que veio a ser publicado como «A Teoria da Deriva» (podem encontrá-la quer na antologia já citada de Júlio Henriques, na Antígona, quer noutra publicação situacionista recente da Barco Bêbado, publicada por Emanuel Cameira):

«Não tinha estado com Gilles ,uitas vezes neste período. Quando o encontrava de tarde, estava o mais das vezes cansado de ter andado toda a noite a pé com Carole, entre Les Halles, Maubert e Monge. Raramente a levava a Saint-Germain, penso eu, ou para os lados do Pigalle, e muito menos a Montparnasse, que detestamos, nem a nenhum destes bairros de Paris onde a noite se arrasta como o dia e se encontram sempre as mesmas pessoas. Sei como Gilles gosta de passar as noites numa marcha longa, em que um café ainda aberto se torna um ponto de paragem precioso nas ruas onde não abundam os noctívagos. Duas horas depois, a Rue Mouffetard está vazia. É preciso voltar a subir ao Panteão para encontrar um bar, na Rue Cujas. A próxima etapa fica perto do Senado, depois da Rue du Bac, desde que se tenha o bom gosto de contornar aquele que, entre nós, ainda se designa de o Quartier. Aqui, imagino Carole a contar a sua vida (não deve ter vivido grande coisa ainda). E o novo dia levanta-se em Les Halles, é um rito.» (páginas 26/27)

Um dos mais belos diálogos do livro encontra-se aqui, nesta conversa entre Gilles e Carole, apontando já para o rimbaudiano «Ne Travaillez Jamais!», pinchado pela IS em muitas ruas de Paris, durante o Maio de 68:

«-Tu trabalhas em quê, exactamente? Ainda não percebi.
- Na reificação - respondeu Gilles.
- É uma área de estudos muito séria - acrescentei. [Geneviève}
- Sim - respondeu ele.
- Estou a ver - observou Carole com admiração. - É um trabalho muito sério, com livros volumosos e muitos papéis em cima de uma grande mesa.
- Não - disse Gilles - eu só passeio. Basicamente, passeio.
- Não estou a compreender - confessou ela. - Não há muito tempo, também eu passeava bastante. Há muito tempo passeava sozinha.
    O álcool pô-la triste. Falou-nos do tempo que passa. Como todos os adolescentes que deixam essa fase, depois de terem compreendido ou lido os seus encantos, vivem amargamente o envelhecimento, a mudança de estado. Embora muito jovem, antigamente ainda era mais jovem.
- Não tem importância alguma - disse Gilles. - Encontrámos sem dúvida um método que nos permite continuar adolescentes, ou fazer de conta que o somos ainda. Não envelheceremos senão em circunstâncias extremas. Vamos incluir-te neste esquema.» (páginas 30/31)

Sobre o trecho que apresento agora, deixo ao leitor desta ficha, ou ainda melhor, ao eventual e futuro leitor deste romance de Michèle Bernstein a interpretação da personagem Gilles e o seu perfil psicológico se tiverem a liberdade, muito aleatória, diga-se, de a compararem com quem o entenderem:

«Quando conheci Gilles, três anos antes, rapidamente percebi que ele pouco tinha do grande libertino que diziam com frequência que ele era. Ele dá sempre aos seus desejos o máximo de paixão que pode, e é precisamente este estado aquilo que ele sempre buscou nas diversas histórias de amor que seria uma loucura tomar por inconstância- O clima que recriou em todas elas consistia nesta sinceridade de sentimentos e numa consciência aguda do lado tragicamente passageiro das coisas do amor. Além disso, a intensidade da aventura era inversamente proporcional à sua duração. A confusão e a ruptura acompanhavam Gilles antes de aparecer qualquer razão válida: depois, era demasiado tarde. Eu era a excepção, eu estava protegida.» (pág.41)

Um livro belíssimo a ler, a perceber as suas entrelinhas, e a desejar que venha aí «La Nuit» o seu segundo livro.

Os pedidos para a aquisição de «Todos os Cavalos do Rei» devem ser endereçados às livrarias independentes. Por mim, escolhi a Snob, de Lisboa. Rápida e eficaz.