terça-feira, junho 30, 2020

«Flauta de Luz», Boletim de Topografia, nº7

Revista Flauta de Luz Nº 7
«Flauta de Luz» - Boletim de topografia, nº7
Tenho adquirido a revista Flauta de Luz. Júlio Henriques é seu editor e coordenador e abre a publicação com «Civilização». Aí, poder-se-á ler numa descrição de uma sociedade doente e a crise de civilização a que assistimos: «(…) A torrente inovadora que tornou crianças, adolescentes e adultos furiosamente agarrados (enganchados, como se diz no calão da droga) a computadores, tablets e smartphones criou uma atmosfera geral de ausência comunicativa, de relação preferível com as coisas, em que avulta um novo tipo de insensibilização. Juntando a cultura do narcisismo [que, mais à frente, Anselm Jappe bem explica juntamente com o fetichismo da mercadoria, nota minha] (modelo parental educativo em que passaram a evoluir as novas gerações) ao impelido apego destas últimas às ‘’tecnologias da informação’’, chegamos assim a auto-estrada digital conducente a este coktail de shots corporais de aturdimento garantido.(…)». O mote está dado e as coisas dividem-se deste modo: os que se apegam às novas tecnologias sofregamente e aqueles que, como eu, ainda compram, leem e divulgam revistas como a Flauta de Luz.

De resto, é com verdadeiro prazer que lemos os artigos que se sucedem a um ritmo vertiginoso para quem pega  na revista, perdão, boletim de topografia, sem a conseguir largar. Comecemos por Raoul Vaneigem, mais lúcido que nunca, a perspectivar novas insurreições e a urgência em criá-las em direção a uma verdadeira humanidade que salve não só o planeta como a espécie humana que se quer autónoma e livre. Que conhece o percurso deste homem, sabe do que fala e da coerência que sempre o acompanhou.  Interessante a sua posição sobre a epidemia de hoje «Seria mesmo necessário o coronavírus para demonstrar aos mais obtusos que a desnaturação em prol da rentabilidade tem consequências desastrosas para a saúde universal? Esta saúde que de forma constante é gerida por uma Organização Mundial cujas preciosas estatísticas disfarçam o desaparecimento dos hospitais públicos? Há uma correlação evidente entre o coronavírus e o desmoronamento do capitalismo mundial. Ao mesmo tempo não é menos evidente que aquilo que recobre e submerge a epidemia do coronavírus é uma peste emocional, um medo histérico, um pânico que simultaneamente dissimula as carências de tratamento e perpetua o mal assustando os pacientes. (…)». Vaneigem assina mais dois artigos um deles uma entrevista truncada no Le Monde e que conhece aqui a sua versão definitiva. Atenção a esta entrevista onde o autor declara a real importância do movimento dos Coletes Amarelos, juntando as ZAD (Zonas A Defender), o movimento zapatista e a crítica contundente aos Black Bloc. Mas, principalmente, a apresentação de uma saída insurrecional e alternativa ao modelo capitalista.

Temos David Watson, autor de Against the Megamachine na conhecida Autonomedia, editora libertária norte-americana, num artigo muito claro «Atualizar os Possíveis» sobre o possibilitismo e as novas utopias na construção de um mundo diferente.

A «Advertência Final» é um exercício irónico de quatro investigadores científicos sobre o tão conhecido «Aviso à Humanidade», de 2017, que juntou 15 mil cientistas de 184 países sobre os perigos que pairam sobre o Planeta. Estes 4 signatários advertem, ao tal aviso, que, sem a crítica ao capitalismo e as alternativas económicas que devem acompanhar essa (ir)responsabilidade do lucro e da rapina de recursos, podem esperar sentados até ao próximo aviso à humanidade. As coisas ficarão na mesma.

Um «suprimento litrário avulso» vai dando conta de autênticos murros no estômago à intelectualidade e ao processo de criação artística em curso. Se o riso era quase impossível de arrancar a quem lesse ou consultasse em diagonal os verdadeiros e reais suplementos literários que proliferam por aí, neste suprimento litrário a verdadeira alegria da leitura neo-abjeccionista brota, incontrolável. Também há insurgência no riso. Atenção aos registos de Júlio Henriques «Amar um robô» (lembrei-me de Sophie, mas podem dar-lhe outro nome qualquer…) e «Mas o que é que nós queremos?». Não percam a sua leitura.

Os artigos sucedem-se com entrevistas a Jorge Valadas / Charles Reeve, que assinou agora o livro «Socialismo Selvagem» saído na Antígona e já divulgado aqui no Deriva das Palavras em http://derivadaspalavras.blogspot.com/2020/03/a-memoria-e-o-fogo-e-o-socialismo.html e uma importante entrevista a Júlio Henriques onde se fala, entre outros, de Paul Mattick, de René Vienet, do Maio 68, de Serge Bricianer ou de René Lefeuvre, editor da conhecida Spartacus. Uma mostra para uma possível construção de uma «antologia da poesia ameríndia contemporânea» acompanhada de artigos de uma verdadeira topografia indígena, tornados aqui os últimos guardadores da humanidade se quer continuar a ser, como os trabalhos de Ailton Krenak (que refere o importante «A Sociedade Contra o Estado» e que conheceu Pierre Clastres), Davi Kopenawa Yanomani, manifestos da Survival International em defesa dos Povos Índigenas, Stephen Corry com «Os melhores guardiães da natureza construíram o nosso meio ambiente e podem salvá-lo», Corsino Vela com «Uma guerra real num mundo virtual», e «Morrer em Rojava» uma coletânea de depoimentos sobre os internacionalistas que morreram pela autonomia autogestionária dos enclaves curdos na Síria, contra o Daesh e o exército turco às ordens da Nato. Provavelmente, para não dizer quase de certeza, que houve algum ímpeto irracional de quem defendeu que a Guerra Civil de Espanha foi a última guerra por ideais revolucionários!

Podem contar-se igualmente com artigos de Jorge Leandro Rosa, Vasco Santos e Chuang. O primeiro versa sobre as tecnologias e poder e os dois últimos analisam não só as implicações do coronavírus e as consequências sociais das novas epidemias para o século XXI. O último, Chuang, é uma revista e igualmente um blogue. O significado da palavra é um cavalo que passa o portão, que (se) liberta. A análise do que se passa na China de hoje, não só ao nível das epidemias, mas igualmente no campo social e da passagem de uma economia fechada para uma economia de capitalismo integrado mundial aponta as contradições a que está votada a ditadura chinesa. É por isso espectável que se tivesse optado pelo anonimato. Mas que é de alguém que está no terreno e que nos passa informação, não se tem dúvidas.

Também se comemora nesta Flauta de Luz os 100 anos de Lawrence Ferlinghetti, esse jovem beatnick ímpar!

Um número único, este 7º boletim, de 289 páginas!, com ilustrações fabulosas, que dá vontade de requisitar numa livraria mais números (a mim faltam-me dois!). Há, de certeza, na Livraria Letra Livre em Lisboa e na Utopia, do Porto. Ou então, flautadeluz1@gmail.com .

Ah…e Cesariny, pois claro, com um «Lembrete de coisas de um passado recente – Uma Raça Maldita». Quem será a «raça mais infame que apareceu à face da Terra?». Ele dir-vos-á.

António Luís Catarino
Coimbra, 6 de julho de 2020

«A Ideia». Revista de Cultura libertária. Nº 87/88/89. Os 100 anos do Surrealismo & outras datas

A Ideia celebra o centenário da escrita automática

«A Ideia». Revista de Cultura libertária. Nº 87/88/89. Os 100 anos do Surrealismo & outras datas

Habituei-me a ler «A Ideia» desde sempre. Este número vale (muitíssimo) por si próprio quando se assinalam três datas directamente ligadas a uma publicação que se define como de «cultura libertária». São 45 anos da criação d’«A Ideia» num círculo de exilados portugueses em Paris e com divulgação assídua em Portugal, mais o apontamento circunstanciado dos 100 anos do jornal «A Batalha» que, como sabem os que acompanham minimamente as lutas operárias do século XX, chegou a ser um diário com uma tiragem de 10 mil exemplares, julga-se, logo atrás de dois jornais institucionais. Para além desta nota, lembrar que foi o órgão anarquista da União Operária Nacional cujo congresso fundacional foi, creio eu, em Tomar e que deu origem à forte CGT. E ainda outro centenário importante para a iniciação de um verdadeiro e genuíno debate a que este número d'«A Ideia» contribui de uma forma indelével – falamos da publicação de «Les Champs Magnétiques» de André Breton e Philippe Soupault, em 1919, e que foram «cruciais para o nascimento do surrealismo entre 1922 e 1924». 

A revista muito pela responsabilidade de António Cândido Franco que coordenou um Inquérito sobre o Centenário da Escrita Automática apresenta-nos uma vasta panóplia de opiniões sobre este tipo de escrita com destaque, subjectivo é certo, para os depoimentos de Alberto Pimenta, Cruzeiro Seixas que, aliás, apresenta um poema inédito de 1961 titulado «Pequeno poema a Angola», Fernando Cabral Martins, Manuel de Freitas que não gosta do termo mas que ainda assim fala dele, Manuel da Silva Ramos, Margarida Vale do Gato com um artigo extremamente interessante sobre escrita automática em Kerouac e Withman entre outros, Maria Estela Guedes que a encontra em Herberto Helder, Michael Löwy, Miguel de Carvalho ou Nuno Júdice que optou por nos dar uma lição pedagógica sobre o tema. Mas são muitos os depoimentos, mesmo daqueles que separam o automatismo psíquico da escrita automática surrealista, apesar de toda a ideia contrária que a revista sugere e ainda que o próprio Breton e os surrealistas o neguem! Mas o resultado do inquérito é francamente bom.

Uma ressalva para as excelentes ilustrações que acompanham a publicação e ao trabalho gráfico cuidado.

Mas deixemos a revista falar por si e através da arte da colagem, do «détournement» se assim o entenderem:

Na página 30, André Breton explica, já como cadavre exquis e com a condescendência para um só depoente que, lesto e impante, apontava o seu dedo académico aos surrealistas afirmando que não foram estes os «inventores» da escrita automática, disse Breton: «Em 1919, a minha atenção tinha-se fixado sobre frases mais ou menos parciais que, em plena solidão, no momento de adormecer, se tornam perceptíveis para o espírito sem que lhes seja possível descobrir uma determinação prévia. Estas frases, notavelmente imaginativas e duma sintaxe perfeitamente correcta, surgiram-me como materiais poéticos de primeira qualidade. Esforcei-me antes de mais por retê-las. Foi só um pouco mais tarde que Soupault e eu pensámos reproduzir de forma voluntária o estado em que elas ocorriam. Bastava para tanto abstrair-nos do mundo exterior. Foi desse modo que elas nos chegaram durante dois meses, cada vez mais copiosas, sucedendo-se em catadupa, sem intervalo e com uma rapidez tal que foi preciso recorrer a abreviações para as registarmos». Foi assim que se iniciou, em 1922, a escrita de «Les Champs Magnétiques» e com ela o movimento surrealista.

Mas é com a profunda análise de António Cândido Franco em «Fluidos, Berlindes, Médiuns, Bolas de Cristal & Carvões – Do automatismo psíquico surrealista» que a clareza das posições surrealistas se tornam mais óbvias, tendo afirmado com toda razão que só existe a expressão «escrita automática» porque Breton e Soupault eram poetas. Seria então mais correto dizer-se «automatismo psíquico» visto que este abarca uma grande amplitude de comunicação artística como a imagem, o desenho, o filme, a pintura, o «ready made», a palavra, a colagem ou a junção de artefactos. Mais à frente o autor afirma, clarificando igualmente algumas confusões já referidas num depoimento em particular que nunca os surrealistas reivindicaram para si a «invenção» da escrita automática, socorrendo-se por vezes do próprio Breton. Diz António Cândido Franco: «O automatismo surrealista nasceu no âmbito da experimentação dos processos mentais, como um modo próprio de análise feito fora do âmbito hospitalar, mas baseado nos mesmos supostos de auto-conhecimento e de terapia catártica. Por isso, o seu criador, André Breton, sempre se negou a classificar o surrealismo como um movimento literário e artístico, preferindo encará-lo como uma nova etapa humana em direcção a uma maior e mais larga liberdade de consciência. O surrealismo tinha um âmbito próprio de pesquisa, uma revolução autónoma a realizar, e não se podia confinar à arte e à literatura.» (bold meu). Cândido Franco aclara mais à frente no mesmo artigo: «O instrumento que o surrealismo colocou disposição de todos, o automatismo mental, e que justificou o seu propósito da poesia passar a ser feita por todos e qualquer um, naquilo que se chamou ‘’o comunismo do génio’’, continua válido pois cada um de nós precisa de fazer a expedição às fontes originais do espírito donde brota a criação e a liberdade para poder viver a vida em plenitude».  Entretanto, o autor chama a atenção, igualmente, para um fenómeno contemporâneo poderosíssimo e que, este que vos escreve, tem chamado a atenção sempre que pode pelo que tem de realmente mau, de distopia. Leiam e meditem: «A tragédia da inteligência artificial é a escravização do espírito, naquilo que este tem de mais autêntico e que só no continente submerso da alma humana se pode encontrar do mesmo modo que apenas na escura profundidade duma mina se pode colher uma rama de oiro (…) no tempo da robótica é ele [o surrealismo] o primeiro a tocar a rebate nos sinos da imaginação».

Michael Löwy, no seu artigo sobre «O marxismo libertário de André Breton» faz-nos uma resenha com pormenores importantes da relação entre Breton e Trotsky e à sua ligação sempre tensa até ao seu afastamento total do Partido Comunista. Breton não desiste da liberdade e essencialmente da liberdade de criar, para isso juntando-se aos anarquistas o que leva o velho Trostsky a subscrever essa ideia no Segundo Manifesto Surrealista o mais politicamente envolvido de todos os manifestos. A ideia é não abandonar os princípios da Revolução de Outubro, mesmo que já traída e adulterada por Estaline. O PC não lhe perdoará e temos o Komintern a adjectivar o surrealismo de «materialismo gótico», de «marxismo romântico» como forma de o reduzir ou esvaziá-lo de sentido. Os surrealistas proclamam então, o «reencantamento do mundo» e a «recusa espontânea das condições de vida propostas aos seres humanos e a necessidade imperiosa de mudá-las». Enquanto muitos ainda duvidavam, eles cortam com o estalinismo em 1935, datas da maior repressão nos «processos de Moscovo».

Três manifestos surrealistas inéditos em português acompanham este número d’«A Ideia». Só por isto valeria a pena a sua rápida aquisição, ao mesmo tempo que nos perguntamos qual a razão de só agora os conhecermos, quando a criação do Grupo Surrealista de Lisboa e, mais tarde, do Grupo Dissidente de Cesariny, Cruzeiro Seixas e António Maria Lisboa entre outros, datam desta precisa época! Mesmo nos Textos de Afirmação e Combate do Surrealismo Mundial de 1977,de Cesariny, não consta alguma referência a estes manifestos (re)fundadores e clarificadores do surrealismo. São textos de uma beleza agressiva e de clara ruptura para com os PC, contra aqueles que em 1947 achavam todos os alemães nazis, clarificadora para com os pressupostos da revolução surrealista denunciando ao mesmo tempo a degenerescência da ditadura do proletariado na ditadura de um só partido. Para eles, os surrealistas, a revolução não se compadecia com a moral ou prática burguesas e denunciavam quer a religião e, com ela, o cristianismo: «os marxistas deverão deduzir que não se produziu nenhuma mudança significativa no domínio da economia desde que Moisés foi chamado ao Monte Sinai», os costumes e a moral «A sua confiança na perfectibilidade do percurso humano é, hoje, como ontem, o prolegómeno que diminui o espectáculo desolador do mundo»  e, ainda em 1947, proclamavam: «O sonho e a revolução foram feitos para se associarem, não para se excluírem. Sonhar com a Revolução não é renunciar-lhe, mas sim fazê-lo duplamente e sem qualquer reserva mental». Portugueses presentes nesta magna assembleia surrealista foram Cândido Costa Pinto e António Dacosta. Sabe-se que foi o primeiro a dar a Cesariny os contactos com André Breton que aquele aproveitou para se encontrar com ele pelo menos duas vezes.

Manuela Parreira da Silva faz um excelente retrato de Pessoa mediúnico cujo automatismo na escrita (principalmente no ortónimo e em Caeiro) nada teriam a ver com o automatismo surrealista tal como estes o entendem. É provável que Pessoa desdenhasse os surrealistas e principalmente os dadaístas. Pelo menos esta investigadora data esse conhecimento de 1917 e talvez este conhecesse bem Apollinaire que, como sabemos, foi colaborador em vida dos surrealistas aquando da apresentação de Les Mamelles de Tirésias, drame surréaliste en deux actes et un prologue. Mas Soupault, que esteve com Pessoa em duas ocasiões em Lisboa, não lhe foi muito simpático, ligando-o a um porto branco e a um sorriso associado! De qualquer maneira, somos levados a concluir que Pessoa, em certos aspectos, não se afasta dos surrealistas pese embora aquele modo mediúnico de conquistar o sonho que o separava destes. Pessoa e Freud seriam incompatíveis. Mesmo Cesariny, mais tarde, acaba por reconhecer a importância de Pessoa, mesmo que as suas loas fossem dirigidas, e muito bem, para Teixeira de Pascoaes.

Quem adquirir a revista não deixe de ler «Abjeccionismo & Automatismo» de Rui Sousa. Aqui entra-se em outra dimensão que é o muito português abjeccionismo, embora Rui Sousa em tese que está a preparar o coloque mais internacionalizado, digamos assim. A questão coloca-se: será o abjeccionismo uma deriva portuguesa do surrealismo? Teríamos então como representantes dessa corrente um Raúl Brandão, Gomes Leal, algum Orpheu, Luiz Pacheco, Ernesto Sampaio, António José Forte e o não menos importante Pedro Oom. Já de fora teríamos um outro tipo de abjeccionismo: Artaud, Bataille, Kristeva. Mas há um nome verdadeiramente esquecido hoje e que se sobrepõe que é o de António Maria Lisboa e a sua Metaciência, esse novo humanismo que ultrapassa a racionalidade e procura a consciência individual, onírica e verdadeiramente livre.

Centenário outro, desta vez o da criação, por Leonardo Coimbra, da primeira Faculdade de Letras do Porto, livre e libertária, que a ditadura fechou denunciada (não há outro termo) pela Faculdade de Letras de Coimbra (cidade/universidade/prostíbulo salazarista dos anos 30) denominando-a «Faculdade das Tretas do Porto». Agostinho da Silva foi seu aluno antes do seu exílio.

Uma pessoa até se encontra a ler «A Ideia» com grande concentração e aparece-nos vindo sei lá de onde um texto sofrível e mesquinho de Stefan Zweig sobre Verlaine. Já li coisas más, mas esta ultrapassa, em muito, alguns textos maus de pessoas más para quem dizer mal de pessoas que não se podem defender é um mal necessário para elas. Uma chusma de males. Que coisa insuportável! Ele, Zweig, refugiado judeu no Brasil e EUA, nunca atacando directamente os nazis porque as suas críticas poderiam originar mais mortes (!!!) tem a veleidade de apontar o dedo à «participação oportunista» junto com a anarquista Louise Michel na Comuna de Paris! Leiam agora este pedaço sobre Verlaine: «O espírito feminino comete muitas vezes o erro de confundir o comovente com o que é grande: se a vida de Verlaine pode ser qualificada de trágica e de profundamente perturbante, seria abusivo querer fazer desta chama vacilante que se apaga uma obra de arte, uma tragédia biográfica». Espírito feminino? Mais à frente: «Em casa de uma amigo [Verlaine] conhece uma rapariga, Matilde Mauté, 16 anos, graciosa, loura delicada, a encarnação da inocência e da pureza [ai, ai, Zweig! Onde pairava a tua alma enquanto escreveste estas linhas?]. O jovem Verlaine, feio com um bugio (sic), tímido e lascivo, um romântico que encontra as suas efémeras aventuras venais à esquina da rua (sic) com a ajuda de um copo de vinho, vê de repente a alva menina, a santa [alva e santa, que se pode mais querer senão cair nas garras de um bugio, ó Zweig?], aquela que lhe pode trazer a salvação [e nós a pensar que era o copo de vinho!]. Pela vossa saúde não vos conto mais. Ele não foi um nobelizado? Ora tomem…

Acabamos com Anselm Jappe com «Reflorestar a Imaginação» com um estudo rigoroso sobre a mudança do trabalho concreto para o trabalho abstracto nos dias de hoje. «É por isso que a sociedade moderna é uma sociedade baseada no contínuo aumento de trabalho, um aumento tautológico do mesmo. Não se trabalha para satisfazer uma necessidade, e logo repousar em sossego, senão que se trabalha para se poder trabalhar ainda mais» ou «Foi sobretudo a tradição poética francesa, primeiro com Baudelaire e mais tarde com os dadaístas, surrealista e outros, que se opôs à sociedade do trabalho – e também a nível prático. A outra grande excepção foi William Morris, que podemos considerar um marxista e que também impugnou de forma admirável o trabalho».

Finalizemos (ou iniciaremos, é convosco) a leitura deste excelente número da revista com Jappe:

«As tecnologias não criam valor, não acrescentam novo valor»

«Antes de mais precisamos de nos deixar de identificar com o papel de consumidor, do trabalhador, do cidadão, do eleitor. Hoje as novas exigências humanas só podem impor-se contra essas categorias. Os movimentos sociais devem insistir em que todos temos o direito a viver mesmo não conseguindo vender a nossa força de trabalho, mesmo não encontrando para ela nenhum comprador».

Pedidos a acvcf@uevora.pt ou António Cândido Franco / Rua celestino David, nº13-C, 7005-389 Évora

António Luís Catarino

Coimbra 2 de julho de 2020

terça-feira, junho 23, 2020

Christian Bobin «L’inespérée». Um livro inesperado comprado a Monsieur Bloch


L'inespérée de Christian Bobin (avec images) | Christian bobin ...
Há todas as razões para o «mainstream» não gostar de um escritor assim embora, paradoxalmente, esteja com uma grande literatura pela frente. 1), adivinha-se o seu catolicismo, 2) é duro e pouco sociável, 3) portanto, contraditório, 4) escreve na forma de conto. 

Comprado ao Monsieur Bloch em Delémont, na Suíça, um alfarrabista antiquário que teve a amabilidade de me afirmar o bom gosto que eu tinha em adquiri-lo pela soma de 2 euros, junto a outros e a uma cítara de aprendizagem escolar do século XIX, tive o incómodo de dizer-lhe que não o conhecia, mas que o simples folhear me levou a comprá-lo. Continuo a saber pouco dele, refugiando-se nos seus sessenta e cinco livros que editou e escrevendo livros curtíssimos em contraponto aos autênticos tijolos que vagueiam pelas (ainda abertas) livrarias. Mais um ponto contra ele: muitos livros e quatro prémios um dos quais da Academia francesa em 2016. E um prémio com veneno, o «Grande Prémio Católico de Literatura», em 1993. Este homem não é nobe(i)lizável, portanto.

O que eu acho mais estranho é que a beleza e a extrema limpeza do inútil nas palavras chama-nos para a continuidade do prazer de uma leitura que Christian Bobin nos dá. Aliás, ele não diz o prazer de ler um livro deste ou daquele, diz o «prazer de uma leitura» não identificando o quem. E mais uma estranheza no decorrer da descoberta deste autor foi lembrar-me amiúde de Houllebecq. O grande conhecimento do humano contemporâneo e até um certo desprezo pela envolvência social estão presentes fortemente nos dois autores, embora com meios de expressão diferentes. Como um católico e um ateu empedernido se podem conjugar, mesmo sem o estribilho estúpido de «os extremos tocam-se»!

Em «L’inespérée» e nos onze contos por ele constituído há momentos verdadeiramente fascinantes como em «La traversée des images» onde se lê «Um escritor é alguém que se bate com o anjo da sua solidão e da sua verdade. Uma luta confusa, sem conhecer a sua conclusão. Um combate de rua, uma mistura de bandidos, de penas voando em todas as direções e, por vezes, como em todo o combate, um momento de tréguas». Mais à frente continua «Não é a tinta que faz a escrita, é a voz, a verdade solitária da voz, a hemorragia da verdade no ventre da voz».

Em «Le thé sans thé» podemos ver então a incompatibilidade entre ele e o «socius», a tal verdade contemporânea que ele despreza «A vida em sociedade é quando todos obedecem ao que ninguém quer. A escrita é uma escapatória a esta miséria, uma variação da solidão assim como amar ou brincar – um princípio de insubmissão, uma virtude de infância». Ora esta frase é colocada na boca de um escritor profissional com um anfiteatro pleno de debutantes da literatura e ela é dita por um «alter ego» verdadeiro do escritor, que ele sabe que mentindo para melhor vender, diz a verdade.

O conto «J’espère que mon coeur tiendra sans craquelures (fendas, em português)» fala da fusão entre imagem e a literatura afirmando, sem alguma polémica para os puristas da palavra fácil «Falar de pintura não é como falar de literatura. É muito mais interessante. Falar de pintura é como se rapidamente acabar com a palavra, voltar lesto para o silêncio. Um pintor é alguém que limpa um vidro existente entre nós e o mundo com a luz, como um pano de luz humedecido pelo silêncio. Um pintor é alguém que nos envia, sem parar, fotografias do mundo. Muitas imagens, demasiadas imagens para as encerrar todas num portefólio e de as fazer sair de tempos a tempos: eis como o mundo bate no coração de um desconhecido».

«Uma reforma aos trinta anos» e «Mina» são contos que nos remetem para a mulher. A primeira, uma educadora de crianças deficientes casada e com um amante que, mais tarde, a deixa. Conta, entretanto ao marido e chora durante a noite quando ela chega ao quarto e à casa toda iluminada que ele deixou. Como se a luz ainda se mantivesse lá, na casa dividida pelos dois e um terceiro que a abandona. Reforma-se cedo no plano sentimental, e remete-se à relação rotineira «de quem sempre a compreendeu». Mina é um nome de uma prostituta a quem lhe cabe um cancro de mama com a idade já problemática de quarenta e cinco anos. Não se trata, mas lembra-se que Mina é o nome da namorada de Drácula e de todas as personagens que o pai lhe contava em miúda. Prefere morrer como a «verdadeira Mina» a do vampiro. É ela que lembra ao leitor que não se diz «Eu queria amá-la», mas sim «Eu amo-a» e, ao dizê-lo, a descoberta de um amor bem mais profundo do que todo o vago querer.

Talvez o conto menos conseguido do livro, o do real assassínio da mulher de Garaudy (embora não o cite) às suas mãos. Achei alguns lugares comuns, como os filósofos são notícia quando matam solitariamente e coisas assim. Por acaso pensei em Heidegger e em Carl Schmitt, mas este era constitucionalista do III Reich com ares de filósofo.

Guardei para o fim o conto dos mais belos que li de Christian Bobin. O conto homónimo que deu título ao livro «L'inespérée». Das mais belas cartas de amor que li. Gostava que pensassem agora em Houllebecq ou mesmo em Littell, por exemplo, e vejam um católico a escrever «Estou louco por pureza. Estou louco por essa pureza que nada tem a ver com uma moral, mas a vida no seu átomo elementar, o feito simples e possível do ser em cada um de nós junto às águas da sua negra morte, infinitamente só, eternamente só. A pureza é a matéria mais generalizada sobre a terra. Ela é como um cão. Cada vez que repousamos sobre o nada no nosso coração vazio, ela vem sentar-se aos nossos pés, fazer-nos companhia». Se pensarmos no título «As partículas elementares» de um tal Houllebecq, talvez encontrem semelhanças...ou talvez nem por isso, mas foi uma tentativa que espero não ter sido vã.

«Escrevo desde que me lês, desde aquela primeira carta em que ignorava o que ela poderia dizer-te, que só poderia encontrar sentido nos teus olhos. Nunca escrevi nada de melhor do que as três primeiras frases daquela carta: Não acreditar em nada, não esperar por nada. Desejar que alguma coisa, um dia, chegue. As palavras vieram atrasadas nas nossas vidas. Tu estiveste sempre à frente do que eu esperava de ti. Foste, desde sempre, o inesperado».

Coimbra, 23 de junho de 2020.
António Luís Catarino

segunda-feira, junho 15, 2020

«O Grande Sol de Reil», poema inédito de António Pocinho


António Pocinho, anos 80. Foto de autoria desconhecida

Recebi este manuscrito (a grafia é de António Pocinho) no dia 27 de junho de 1980, entre copos infinitos de cerveja no «Café Califa» e outras substâncias já prescritas, na Rua das Matemáticas em Coimbra e creio que seguiu para a «Fenda - Magazine Frenética». Não confirmo a sua publicação. Diz, por debaixo da assinatura do António com quem privei no triângulo maldito de Coimbra – Tomar - Lisboa, isto: «Poema gravado em Coimbra, nos estúdios do ‘’Bota-Abaixo’’, entre 6 e 27 de junho de 1980. Som, mistura e arranjos de António Manuel Pocinho e Vasco Santos». Tenho comigo o original. Se o Vasco o quiser eu terei todo o gosto em dar-lho. É assim o poema:



O GRANDE SOL DE REIL

O que está escrito, está escrito na vida
e aí tudo tem a sua alquimia.
Descobrir o início das coisas,
percorrer-se o caminho ao longo das pessoas,
ficar-se perplexo com o verbo,
vibrar-se com a acção
é já de si uma prodigiosa armadilha,
uma procura exaustiva da intimidade.

Tudo o que permanece no domínio
dos lugares escondidos da linguagem,
da luta de classes e do poder
está envolvido por uma misteriosa literatura.
O que nos resta da ligação entre o sagrado e o profano
e que conduz a escrita a um jogo demasiado difícil para ela
contém em si a génese neurótica da ficção.

«Há uma linguagem na neurose
que se assemelha ao código da escrita»
- anunciaram os jornais
onde se falava dos polícias de dentro e de fora,
das emissões em línguas estrangeiras,
das manhãs muito cheias de luminosidade,
muito voltadas para dentro do seu próprio amor.

Escreve-se por uma questão alveolar,
por onde uma necessária respiração das células
onde uma espécie de transporte activo das palavras,
à semelhança do que acontece na bomba de sódio
seria um elemento fundamental
na combustão da energia poética associada à vida.

Comove-nos este espaço: a noite, o candeeiro aceso,
a escrita, os autores, alguém dormindo ao lado.
Dormir na ausência para acordar na memória.
Onde a magia, a eternidade,
a infância dos nossos actos, a revolução?
Há algo de abusivo na verdade,
no pousar os olhos sobre o texto,
no beber mais uma cerveja no «Califa»,
no descansar do dia-a-dia da vertigem.
Dói-nos este rock, esta droga
até ao ponto em que nos iniciamos na imagem,
na álgebra superior e mortalmente branca.

Recusamos esta dança, os filósofos
…a hipotética imaginação da luz…

Perseguir a palavra: virtude do corpo ou maldição do espírito.
E foi subornada esta paisagem por um milagre antigo.
Terra benzida nos «sex and drugs and rock’n rol»
porquê o poeta, os computadores, a bomba de neutrões?
Armando a estrada e os anjos de revólver?

Vítimas do crime no acto em que nascemos,
aceitamos a chantagem da vida
ao olhar sobre a misteriosa moralidade destes campos,
pisados por mulheres descalças em busca de uma linguagem para o sexo.
Caminho eterno para a aprendizagem da placenta.
Nas águas – o código amniótico.

Prostituímo-nos na memória, no cio da palavra, no espaço e no tempo deste corpo.

Rosto pintado de anjo no cinema: é rigorosamente inútil o poema.

António Manuel Pocinho
Coimbra, entre 6 e 27 de junho de 1980


domingo, junho 07, 2020

«Na cidade exposta – Coimbra», de António Alves Martins



Este livro é um portento. Muito andei eu para aqui chegar - «portento»! No significado da palavra eu posso encontrar igualmente «encanto», «maravilha», «prodígio» que não andam longe do sentimento que o tive a ver e folhear.

Mas deixemo-nos de entusiasmos e apresentemos os seus autores: de ideia inicial de António Alves Martins, lemos textos deste autor e de José António Bandeirinha. As fotos são de António Alves Martins. A edição do livro-quase objeto foi de 50+1 livros todos numerados. Informação adicional é que o livro foi publicado pela Artes Breves Edições «em edição única e exclusiva com a chancela (informal)» da editora e a tipografia foi a muito conimbricense Damasceno e com a qualidade que se lhe (re)conhece. Portanto, um livro sobre Coimbra, de Coimbra e feito com matéria cinzenta de Coimbra. Mas engane-se o incauto que pense que é laudatório para a cidade e suas vetustas instituições. Não é. Talvez esteja ao nível, e não estou a exagerar quando o digo, de um célebre número único da revista «Via Latina» dos anos 70 que não foi nada agradável para a urbe, assim como os vários textos da «Fenda» e da «Pravda» que não criaram raízes. Ou das desprezadas «PO.EX.» e do «Círculo de Artes Plásticas».  Sabemos bem o porquê.

Portanto, o número da própria tiragem é, em si mesmo, uma provocação. Se assim o quiserem e entenderem ter um livro que vai esgotar rapidamente. Peçam-no, pois, quanto antes a artesbreves@gmail.com .

Na apresentação dos autores lê-se que António Alves Martins se formou em Coimbra em Filosofia, editou poetas como Gil de Carvalho, António Ramos Rosa, Alberto Pimenta, Jorge Sousa Braga, Jorge Fazenda Lourenço, Cavafy, Larkin, estes na «Centelha/Fora do Texto» já falecidas e colaborou com a «Cotovia». Editou, na «Deriva Editores» do Porto, «Cidades Materiais» em 2016 e mostrou-nos fotografias belíssimas numa exposição homónima do livro agora editado, no Liquidâmbar, em 2019.

José António Bandeirinha é um arquiteto de Coimbra cujo curso tirou nas Belas-Artes do Porto e é Professor Catedrático no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra. Foi pró-Reitor para a Cultura e Director do Colégio das Artes da mesma universidade. É investigador do CES e Director do DAUC. A sua intervenção em prol de uma Coimbra que rompa com os cânones que a orientaram infelizmente nos últimos anos é conhecida e reconhecida por todos os cidadãos que vivem a cidade.

Comecemos pelas afirmações de António Alves Martins neste livro belíssimo: «Esta brochura, em conjunto com as oito fotografias (+ uma) das dezasseis então expostas [o autor refere-se, portanto, à exposição realizada no Liquidâmbar] – agora em novo formato / suporte - , corresponde a um segundo momento dessa materialização única que dá acesso ao tempo propício a pensar e a olhar a fotografia: a experiência concreta da imagem impressa em folhas de papel que, embora soltas, são envoltas numa capa cuja janela abre para a narrativa do livro: o livro, como lugar privilegiado do tempo lento das imagens (ou do seu silêncio).»

Depois desta descrição da fusão existente entre a palavra e a imagem com uma desenvoltura e um rigor concetual realçado e apresentado por António Alves Martins, chegou a vez da justificação do espaço e do lugar Coimbra «(…) tornou-se assim a cidade exposta – na dupla dimensão de paisagem e obra – (…) – nas imagens impressas da cidade – é o resultado de um processo que implica, em primeiro lugar, o assumir da caminhada livre, o movimento de um olhar disponível para o inesperado de um plano e das suas linhas de fronteira (…)». Ou seja, este que vos escreve lembra aqui o espírito nómada da Psicogeografia poética de um Vitor Segalen, de um Rimbaud, de um Baudelaire, ou de um Debord… dado a conhecer pelo fundador do seu movimento, Kenneth White. É essa procura do inesperado que exigiram Vaneigem e Asger Jorn, queimando a arte e fundando espíritos livres e primitivos, igualmente telúricos. É esta a procura livre de um livro que respira liberdade. E ainda e sempre Italo Calvino, dir-se-ia um alter ego de «A Cidade Exposta».

Quanto a José António Bandeirinha, expõe a fórmula de um texto coerente, suave e paradoxalmente de uma grande violência para com as opções conimbricenses dos últimos anos e, quiçá, de décadas muitas. A narrativa aparece de duas fontes: uma que foi uma intervenção sua há dezasseis anos e outra há apenas alguns meses. A junção destes dois momentos, por paradoxal que se ache, obrigaram-no somente a alguns ajustes, o que decididamente é péssimo para a urbe. Neles podemos ler, e com o perigo inerente à descontextualização das frases:

«Para muita gente, para mesmo muita gente, confessada ou inconfessadamente, Coimbra não passa de uma referência estereotipada. Mas o problema não é esse, o problema é que a repetição acrítica do estereótipo desgastou o conteúdo e apagou o significado real. A sensação é que o que fica é um imaginário paradoxal e altivo que, embora radicado numa cultura urbana ancestral e identitária – e talvez por isso mesmo -, foi ficando fossilizado, como ecrã obsoleto da realidade e da vida que se ia degradando face ao fluir dos tempos.»

O mote está dado e José António Bandeirinha não esmorece na análise da sua cidade. Citando igualmente Calvino, o arquitecto avança com ‘’Seis propostas para uma Coimbra (ainda)’’ cuja descrição pormenorizada não caberia aqui. Contudo, no item ‘’Leveza’’ (existem mais cinco que o leitor averiguará certamente) Bandeirinha avisa-nos «O sentido que aqui se dá à Leveza é sensivelmente o mesmo que em Calvino [Lições Americanas, 1984]. Basicamente, diz respeito à transformação do que é pesado em leve. Tratando-se de Coimbra, de um certo estado depressivo e de uma mais que óbvia decadência, não devemos deixar que a ‘’culpa’’ que neste caso se opõe à leveza, tome conta da nossa motivação para inverter o processo» e continua sobre o estado da decadência da cidade «(…) São muito complexas e intrincadas as razões desta decadência, sobretudo porque não têm uma origem única, e muito menos se podem expressar num simples parágrafo. No plano temporal, são de ordem simultaneamente remota e próxima, no plano espacial são de ordem simultaneamente externa e interna, são de ordem histórica, política, social e cultural, e cada uma destas ordens auto-alimenta-se e alimenta as restantes.»

De uma clareza meridiana, esta análise que se espraia no ensaio. E a clareza e a violência suave com que este projecto se desenvolve para Coimbra, de Coimbra, contra Coimbra, continua nas fotos extremamente belas de António Alves Martins desta mesma decadência e vivacidade de quem se propõe dizer, como toda a vida fizeram os autores, que a cidade merece melhor. Que está escondida e que se remete para uma solução uterina, da procura de origens mistas e promovendo a rebeldia das paredes que nos falam e soluçam (ainda). Isto é de quem não se cansou.

O livro é, na realidade, fantástico.

António Luís Catarino
Coimbra, 7 de junho de 2020