sexta-feira, novembro 30, 2018

Wenceslau de Moraes, o ke-tôjin 14


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Ke-tôjin, na língua japonesa, quer dizer «o selvagem barbudo». Wenceslau de Moraes foi escritor, poeta, militar da marinha portuguesa, cônsul em Kobe e professor do Liceu de Macau. Nasceu em 1854 e faleceu em Tokushima, em 1929. Creio que o epíteto de selvagem barbudo, embora por vezes andasse andrajoso pelas ruas, não era só um carinho japonês a Wenceslau de Moraes. Era assim que os orientais viam os portugueses. Diziam os japoneses, em testemunhos da época, que comíamos com as mãos, não nos lavávamos e só falávamos em ouro. «Mas não eram má gente!», diziam. Este desprezo não cabe em Wenceslau de Moraes quando se exilou, voluntariamente, primeiro na China, onde casa com Vong-Io-Chan de quem tem dois filhos e depois em Tokushima, no Japão. Não volta a Portugal. Poeta simbolista e decadentista, olha para o ocidente despido já de espiritualidade e de valores éticos, com o desdém de um poeta que procura, no exótico, a sua fuga. Ama e vê morrer duas mulheres que o marcaram no Japão: Ó-Yoné e Ko-Haru a quem dedica um livro belíssimo. Quanto ao seu exotismo assumido devemos ter cuidado com o seu significado nas palavras de Moraes: defende que se devem amar todos os bichos (e ele tinha-os no seu «casebre», como ele chama à sua casa) e as coisas, todas as coisas, mas não é budista. Escreve: «O amoroso do exotismo, geralmente um intelectual, (…), é também geralmente um esteta, conseguintemente um místico, um apaixonado da cor, do perfume, do som, de tudo o que é beleza e arte.» Todavia, entendendo que as religiões caducam, ele define-se como um religioso para além das religiões. Entre os exóticos realça Lafcadio Hearn e Pierre Loti com uma real admiração pelo primeiro. Quanto a Loti pensa que este nunca compreendeu o Oriente porque hiperativo, ao contrário de Goncourt que o percebeu melhor, mesmo sem ter saído do seu quarto, ironiza. Sendo a sua religião a de esteta, encontra na saudade (como é que a nossa saudade poderia desaparecer?) o que chama uma estética retrospetiva da paixão do belo. Um homem que se vestia de kimono japonês, que detestou a abordagem ocidental e particularmente a portuguesa do século XVII ao Oriente, criticando e desculpando a rudeza e atrevimento do aventureiro Fernão Mendes Pinto, resgata-nos, a nós ocidentais, e nos seus escritos, desse mundo feito de violência e perfídia. Deixa-nos um provérbio japonês para que as nações o pensem: «Jigoku no sato mo kané shidai» (até as sentenças do inferno não passam de negócio de dinheiro!). Como ele diz em «O Exotismo Japonez»: «… E fugi, e voei, e fui deixando farrapos de alma (…) por todo esse mundo exótico fora, - pelo oceano imenso – águas é céu. (…) Cheguei ao Japão. Amei-o em transportes de delírio, bebi-o como se bebe um néctar.»

António Luís Catarino 6/11/2017

Recordação precipitada de Alexandre O’Neill 13


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«Ó Portugal, se fosses só três sílabas/linda vista para o mar…». Alexandre O’Neill. Este homem, este poeta, desnudado das palavras a quem atribuía o epíteto de «animais doentes» pela constante tentativa de as tornarem «bonitinhas», tinha o condão da cumplicidade com o leitor. Mesmo quem nunca o leu repete-lhe os estribilhos ou versos com que denunciou este país feito de pessoas importantes, lídimas corredoras de carreiras assentes no «respeitinho» e em «deuses e deusecos» omnipresentes e servis: «País engravatado todo o ano/e a assoar-se na gravata por engano». Estou a falar da expressão «vidinha» com que nos abanou as consciências monótonas de um país alienado e anestesiado «A poesia é vida? Pois claro!/Conforme a vida que se tem o verbo vem/ - e se a vida é vidinha, já não há poesia/ que resista». Alexandre O’Neill tinha ascendência irlandesa de um foragido do século XVIII, sabe-se lá de quê, e que veio desgraçadamente aportar a Lisboa. Portanto, O’Neill lisboeta, crítico do provincianismo capital, de «ombro na ombreira» como quem espera, um dia qualquer, sair da sombra da porta, dar o ombro aos outros e criar a vida poética verdadeiramente livre «Quando tudo escombro/ ainda todos seremos/ombro na ombreira» e que o levou a excessos em que, disse, «fez do corpo uma alavanca para o mundo, sem pensar no futuro». Inventou a vida, ultrapassou o quotidiano repressivo, amou intempestivo, morreu novo. Cá o temos, a alavanca da escrita que o levou a fundar o Grupo Surrealista de Lisboa em 1947. Saiu de lá logo no ano seguinte porque António Pedro, ministro salazarista sabidão, expôs os surrealistas num salão não sem antes aceitar o lápis azul da Censura. O’Neill, parte para outra, e, nos Cadernos Surrealistas, edita Ampola Miraculosa. Tem a sua Nadja, o seu amor louco com Nora Mitrani, surrealista francesa. A polícia política e a família impendem-no de se lhe juntar em Paris. Não mais a vê. Acede, cuidadoso, aos neorrealistas, cansado do convívio com «fantasmas», sem que se lhe conheça militância ativa. Traduz Ubu de Jarry, Brecht. Escreve nos jornais. Colabora em teatro e cinema. Encontra em Tolentino, Cesário Verde, Pascoaes (que chegou a conhecer escrevendo-lhe uma «Recordação Precipitada»), Álvaro de Campos, uma influência a que não foge, como aceita a fórmula para si próprio de um «grande poeta menor». À questão que lhe é colocada em 1962 de qual seria o seu defeito ele responde: «sentir o desencanto». Para um poeta perder o encanto do mundo é perder igualmente o dom das palavras e da vida. Não o perdeu. Portugal para ele continuou a sua Feira Cabisbaixa de 1965: «…Feira cabisbaixa, meu remorso,/ meu remorso de todos nós».

António Luís Catarino 30/09/2017

Portugal e Catalunha: coincidências? 12


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Os destinos de Portugal e Catalunha estiveram quase sempre cruzados. Os reis fundadores da 1ª dinastia portuguesa eram de origem borgonhesa e eram conhecidas as preferências por casamentos fora do âmbito de Castela. Desde Afonso Henriques, primeiro de Portugal, que se casou com Mafalda, da casa de Saboia, até D. Dinis que se enlaçou com uma princesa de Aragão, Isabel, como forma de não colocar em perigo a sucessão para mãos imperiais. Não será igualmente necessário, creio, lembrar os contributos catalães para a expansão afro-indo-americana dos portugueses, nomeadamente os dos célebres mapas (muito completos para a altura) dos geógrafos judeus dos condados de Barcelona. Mas foi em 1640 que a História juntou os dois povos. Lembremos em que consistiu o 1º de dezembro desse ano, ainda hoje feriado nacional por cá: em 1637 houve uma séria revolta popular contra o governo espanhol da União Ibérica de Filipe IV (o «nosso» Filipe III) devido a um brutal aumento de impostos e a repressão violenta que se seguiu. A grande burguesia mercantil, a alta nobreza e o alto clero, que tinham apoiado avidamente a União com Espanha, sentem-se ameaçadas pelas revoltas e antecipam um golpe de estado no dia 1 de dezembro de 1640 declarando a restauração da independência portuguesa. Ora, é exatamente na mesma ocasião que a Catalunha se revolta contra a presença espanhola originando a Guerra dos Segadores que vai de 1640 a 1652, sem que, historicamente, se prove qualquer ligação entre os revoltosos de ambos os campos. A História também é feita de coincidências! A hesitação filipina faz com que Portugal, exangue e sem exército ou marinha dignos desse nome, se refaça com tempo e espaço e a sempre eterna «ajuda» britânica. Mais tarde, levámos com oito invasões que tentaram repor a União Ibérica dos Habsburgos, todas elas sem um vencedor declarado. Isto até 1666, quando se deu a paz. Perante a proximidade do referendo catalão de 1 de outubro de 2017 (igualmente a data das nossas eleições autárquicas!), não se entende a posição de grande parte dos «opinadores» portugueses face à eventual independência catalã: a maior parte cala-se e não toma partido e, quando o faz, insulta os catalães com artigos penosos como «A Vergonha da Catalunha» de  Henrique Monteiro, (Expresso, 8/09/17) ou, pior, resume-se a questionar se é bom para a economia caseira, devido ao peso de Barcelona no PIB espanhol. Outros desdenham o processo, lembrando a Escócia, Sérvia, Croácia, Eslováquia, Eslovénia ou o Kosovo, como se houvesse comparação de realidades tão diferentes. Maior cinismo não há quando, a existir uma comparação óbvia, essa seria a da Catalunha com outro país: Portugal.

António Luís Catarino, 8/8/2017

Bienbenidos an Pertual 11

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Nos finais de julho, desloquei-me a um concelho irredutível que teima em falar a sua «lhéngua» apesar do domínio cultural de Portugal e de Espanha: Miranda do Douro. O título desta pequena crónica vai, pois, para o «probo» (orgulhoso) mirandês de raiz proto-latina, latina e asturo-leonesa, resistentes à força centrípeta de Castela. A razão pela qual viajei até lá, foi para assistir ao Festival Itinerante da Cultura Tradicional «l burro i l gueiteiro» e ouvir as vozes femininas das «Segue-me à Capela» e dos mirandeses dos «Galandum Galundaina». Se o primeiro grupo se baseia na recolha das vozes populares minhotas, beirãs, sefarditas e transmontanas, o segundo grupo canta somente em mirandês. Foi formidável. Só se dá valor à maravilha que é ouvir cantos, alguns já perdidos nos tempos, quem os ouve ao vivo. Mas a estória foi esta: enquanto esperávamos pelo espetáculo noturno e ao calor abrasador do planalto eu tinha várias hipóteses de sobrevivência: beber cerveja numa taberna de Palaçoulo, aldeia que recebeu o festival este ano e ver o Benfica, ou escolher entre dois «workshops» promovidos simultaneamente: um, sobre o burro mirandês em perigo de extinção, outro sobre a «lhéngua mirandesa». Sem pôr de lado a opção cerveja, optei por este último. Bingo! Três horas e meia de aprendizagem da língua liderado por Alfredo Cameirão. Entre palavras verdadeiramente poéticas como cinta de la raposa (arco-íris), caramonos (bonecos) paixarina, (borboleta), etc. ou mais algumas regras ortográficas que os leitores podem consultar na Biquipédia (a Wikipédia mirandesa), veio o desânimo sobre as linhas políticas adotadas para esta língua: como será possível que num universo de 7500 a 10000 falantes de mirandês em todo o país e imigração e após o reconhecimento oficial da língua mirandesa pelo governo (Dec. Lei 7/99) não se aumente o número de três professores (!!) de todo o concelho (7500 almas) para 475 alunos por ano. Pior: desde 1998 que a Unesco criou a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias onde se inscreve o mirandês, sem que Portugal a tenha sequer assinado (a Espanha obviamente assinou-a). O que leva a este boicote de um «Pertual ye hoije un paíç zambolbido, eiquenomicamente próspero, social i politicamente stable i cun Índice de Zambolbimiento Houmano eilebado. Ancontra-se antre ls 20 países de l mundo cun melhor culidade de bida, anque l sou PIB per capita ser l mais pequeinho antre ls países de la Ouropa Oucidental. Ye nembro de las Naciones Ounidas i de la Ounion Ouropeia (na altura de la sue adeson an 1986, CEE), i nembro-fundador de la NATO, de la OCDE, de la Zona Ouro (€) i de la CPLP»(1) ? Sim, digo eu, somos «pequeinhos», embora, paradoxalmente, na «zona ouro», claro!
(1)      – in Biquipédia, Páigina Percipal

António Luís Catarino 21/08/2017

Culpado? O Sapiens, claro! 10


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Numa praia, ao sol ibérico escaldante, deverão ler livros sóbrios, dos que fazem pensar, sem rir. Nada de policiais, de humor ou de autoajuda. Precisamos pensar nos interstícios dos dias livres. Assim, proponho-vos pensar o Homo Sapiens, esse grande culpado de tudo o que de mal existe na Terra. Exagero? Pois bem, sentem-se numa cadeira ao sol com um boné da Repsol, afastem as crianças e os vizinhos que em vez de colocarem os phones ouvem música aos berros, cuspam em cima dos que apagam as beatas dos cigarros na areia. Estão em condições de lerem «How to Think Like a Neandertal», de Winn e Coolidge. A simpatia destes autores por esta espécie que o Sapiens dizimou, propositadamente ou não, é ótimo para ler vendo os neandertais modernos que povoam as nossas praias e esplanadas. Contudo, colocam a vida mental deles no centro das suas investigações na Universidade de Colorado. Os neandertais ririam? Produziriam arte? Eram capazes de rituais funerários? Teriam deuses? Bom, eles acham que sim. Através da arqueologia, esta espécie canhestra, recoletora, incapaz de elaborar grandes tecnologias de caça, bronca, teria alguma sensibilidade (estranhamente comparam-no a um skinhead), embora rechaçada pelo bom do Homo Sapiens, incapaz de o seduzir para dentro dos seus clãs e sofisticadas tribos. Mesmo que um Casanova sapiens declarasse o seu amor por uma neandertal, o filho que eventualmente nasceria seria infértil, tal a diferença de genes. Quem nos diz isto? É Yuval Noah Harari em «Sapiens, História Breve da Humanidade», outro livro que aconselho. A simpatia deste investigador da U. de Jerusalém por neandertais está aqui bem expressa em contraponto com a antipatia pelo Homo Sapiens culpado de tudo o que de mal aconteceu na Terra. Era feliz como recoletor. A agricultura escravizou-o, o Estado castigou-o sem piedade, as religiões espremeram-no, os impérios utilizaram a cultura única como modo de dominação, a técnica e a ciência foram o maior logro da Humanidade porque estamos a desejar sempre mais do que alguma vez poderemos vir a alcançar. As utopias desfizeram-se em areia depois de milhões de mortos tal e qual como o capitalismo, o zénite da morte programada por esta espécie. Acabamos de ler o livro e sentimo-nos incomodados por sermos Sapiens. Mas como começou tudo, segundo este autor? Pela criação dos mitos e do boato, do dizer bem ou mal do tipo dentro da tribo. Pela maledicência. Só assim, o Sapiens «prosperou» e desenvolveu a linguagem, essa forma torpe de poder. Haverá outros que nascerão dele? O autor hesita entre o Homo Theologicus e o Homo Aeconomicus. Entre um e outro, oremos aos deuses para que não se cruzem!

António Luís Catarino, 21 julho 2017

Feira do livro de Madrid, pois sim. 9


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Uma pequena notícia e opinião divulgadas por um dos grandes defensores da língua portuguesa, Fernando Venâncio, chamou-me a atenção para o que se terá passado na Feira do Livro de Madrid onde Portugal era, este ano, o país convidado. Li, pois, o artigo do suplemento digital El Cultural, de 19 de junho, da responsabilidade de Martín López-Vega. Devo dizer que estou de acordo com a sua crítica quando revela a oportunidade perdida em divulgar a literatura e a poesia portuguesas em Madrid. Já lá vamos. Não concordo muito, mesmo nada, é com a sua afirmação sobre Valter Hugo Mãe quando escreve que é um autor português contemporâneo de «una calidad literaria incuestionable». Não questiono que ele seja um autor, um português ou mesmo um contemporâneo, mas caramba!, de «calida incuestionable»? Ou, ainda, do momento «dulce» por que passa a nossa literatura. Bom, afirmações polémicas, mas adiante. Se assim foi, como Martín López-Vega diz, a presença portuguesa traduziu-se numa lástima. Reparem: a polémica inicia-se com o falar em português em mesas-redondas para um público maioritariamente castelhano, apontando o caso de Eduardo Lourenço. Porque se trata de um pensador, por vezes denso, mas com um grande conhecimento do «ser português» (seja lá o que isso for!) era necessário que ele atendesse às sonoridades próprias da língua, às pequenas nuances, irónicas ou não, que um estrangeiro não tem de perceber. Fui, entretanto, ao site da Feira do Livro de Madrid e, de facto, a imagem de Portugal sai de lá como Martín López-Vega a descreveu. Parecia um postal turístico de...Lisboa! Se havia pastéis de nata, ou água mineral e cerejas do Fundão, nada de mal, mas éramos, ou não, um país convidado para uma Feira do Livro da capital espanhola? Falar de Saramago ou de Lobo Antunes é importante, mas constituí um tema batido, tal como o sabor ressequido de um pastel de nata ao calor tórrido de Madrid. Poderíamos ter feito mais por dar a conhecer autores, esses sim de qualidade literária inquestionável e sabedores da querida alma sofrida portuguesa, como Mário de Carvalho, Mário Cláudio, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Ana Margarida de Carvalho, José Cardoso Pires, Frederico Lourenço, Vasco Graça Moura, José Tolentino Mendonça, O´Neill, Sophia de Mello Breyner Andresen, Manuel António Pina, Ruy Belo, Herberto Helder, Mário Cesariny ou Natália Correia. E tantos, tantos outros que espero dar vida neste espaço. Quanto aos «contemporâneos» bem suportados por editoras/promotoras de grandes egos, haverá tempo de os ver voar. Não sei bem para onde, mas terão destino garantido, certamente.

António Luís Catarino 28/06/2017

1961 – O annus horribilis de Salazar 8


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56 anos não constitui nenhum número redondo, daqueles que são lembrados porfiadamente pelos anais da História. Por isso mesmo, vou lembrá-lo. 1961, foi o início do fim do Império português. Ainda hoje, perguntamo-nos como aguentou Salazar na cadeira do poder, num ano que tinha tudo contra ele. E não é nenhuma metáfora maldosa, visto que foi a queda numa cadeira que, literalmente, o levou à morte. Neste ano, em fevereiro, deu-se início à guerra colonial em Angola que se transmitiu rapidamente a Moçambique e à Guiné-Bissau e Cabo Verde. Foram três frentes de guerra que obrigaram à morte, durante 13 longos anos, de dezenas de milhar de vítimas. Em janeiro, Henrique Galvão e um comando luso-espanhol, desviou o paquete Santa Maria para o Brasil, tendo o governo brasileiro acolhido os «piratas» pró-liberdade como exilados políticos. Em abril, o General Botelho Moniz tenta um golpe de Estado palaciano para retirar o poder a Salazar. A extrema da extrema-direita impediu-o de levar a cabo esta tentativa. Mas a coisa deu frutos. Meses depois, dá-se o ataque do coronel Varela Gomes ao Quartel de Beja, para que se iniciasse um levantamento militar geral. Mal preparado e mal planificado, o golpe morreu ali. Em novembro, um avião da TAP é desviado por Palma Inácio que mais tarde funda um movimento armado – a LUAR. Portugal é, sem dúvida, um pioneiro nos desvios de paquetes e aviões. Em dezembro, dá-se a fuga da prisão política de Caxias, de Álvaro Cunhal e de mais nove camaradas seus do PCP, num carro blindado de…Salazar! Aliás, este partido aumenta os protestos de rua. É ainda em 1961, que Nerhu, da União Indiana, anexa Goa, Damão e Diu, enclaves, até aí, portugueses. É evidente que Salazar tinha tudo para ficar no poder. Ele era um ditador. Portanto, ditava. Reprimia. Tinha tudo para continuar. Que democrata conseguiria, hoje, suster-se assim? Ora, é aqui que me interrogo. Na época da pós-verdade inaugurada por Trump, bastava twittar alegremente, semana sim, semana não, uma espécie de «bad news» desculpabilizantes. «Portugal is attacked by bad guys», «I will build a wall in the Atlantic!» etc. Mas o velho ditador, astuto, sabia o que o esperava: em 1962, em plena contestação académica, perguntou ao então reitor da universidade de Lisboa, Marcello Caetano, se tinha dialogado com os estudantes. Este, mentindo, disse-lhe que não. Responde-lhe Salazar: «Ah, ainda bem, por que se o fizesse, daqui a 10 anos, eram eles que aqui estavam!». Errou por dois anos!

António Luís Catarino, 12/06/2017

quarta-feira, maio 23, 2018

Exposição de desenhos Anjos do Desespero, 14 de Maio de 2018, abertura às 21:30 no Liquidâmbar, Praça da República, 28, Coimbra

Cartaz de Ana Catarino


A exposição Anjos do desespero concebida no Porto e em Coimbra entre 2016 e 2018, contém um conjunto de desenhos que pretende mostrar-nos estes anjos como mensageiros, como diria Llansol, que fizeram a modernidade e a contemporaneidade. A sua existência reflectirá nas pessoas interpretações que só lhes cabe a elas verem. Porque é possível «ver» um desenho colectivamente. Não será possível «ver» um livro da mesma forma. As escritas que enformam os desenhos são a tentativa não de uma explicação obviamente absurda, mas uma recusa da individualização de uma única forma e o desejo de as entrecruzar. Os Anjos do desespero tal como Paul Klee os pintou, como Heiner Müller fez deles poemas, e Wim Wenders os filmou em As Asas do desejo são aqueles que, apesar de tudo, rejeitam a imortalidade porque exigem a Vida total, exaltam uma liberdade pura e tentam enlouquecer-nos, como uma saída possível, para que acabemos com o sofrimento contínuo de uma vida quotidiana sem senso. Müller avisa-nos: Eu sou o anjo do desespero, com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. Substituindo o silêncio e o ruído destes desenhos figurativos a carvão, aguarelados e contornados a tinta-da-china, sobrelevam-se as colagens e as palavras. Porque só as colagens interagem com o impossível, com o absurdo, com o non-sense. Daí a sua importância unificadora e congruente. Produzem todas, no seu cruzamento simbólico, o vácuo. Esse grande vácuo por onde voam estes anjos desesperados, vívidos.

António Luís Catarino
Coimbra, 27 de abril de 2018

domingo, maio 20, 2018

Converter, ou a aventura dos portugueses no Tibete 7

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No século XVII, quase dois séculos depois da inicial «descoberta» das Índias por caminho marítimo, os portugueses depois de consolidado os negócios de «cabedais» entre a Ásia e a Europa, nos quais incluía ainda o Japão e a China, enveredaram pela não menos aventurosa causa da conversão dos infiéis. Coube aos Jesuítas essa missão não isenta de alguns pecados e violências como atestam alguns documentos coevos e uma epistolografia que tem sido objeto de estudo. António de Andrade deve ser particularmente estudado, até porque foge ao cânone. Nascido em Oleiros, em 1580, início da União Ibérica dos Filipes, faleceu em 1634. Entretanto, depois de estudar em Coimbra, vai para Goa, então capital do Império português do Oriente e entre 1626 e 1633 escreve quatro cartas sobre a sua procura de Cataio, região utópica que povoava as mentes conversoras de um reino longínquo que seguiria o cristianismo. Estamos a falar de um jesuíta que, com o irmão, Manuel Andrade, chegou ao Reino do Tibete primeiro que qualquer outro ocidental. Quem estudou a história dos jesuítas saberá que esta procura do Cataio, tal como o do Reino de Prestes João, não era mais do que uma quimera. Não existindo Cataio, António de Andrade empreende a viagem para o Tibete, a partir de Agra e é o primeiro a passar a cordilheira dos Himalaias, não sem agruras várias que quase o levaram à morte. Não se intimida e escreve que foi a fé que o salvou, assim como salvará todos os indígenas que encontrará à sua frente. Entrará no Reino do Tibete disfarçado de peregrino hindu. Em 1624 chega a Chaparangue, onde faz amizade e converte o rei do Guge, Tashi Drakpa De. As suas cartas transpiram um desprezo enorme pela religião budista e hindu e um ódio figadal aos muçulmanos, fonte de todas as intrigas contra os cristãos. É aqui que reside alguma diferença para com outros jesuítas. Numa das cartas, exulta pela tortura de um homem santo hindu a quem, por castigo e com a sua concordância, lhe cortam o longo cabelo e as unhas, sinal exterior da pureza. Consegue transformar, por conversão do rei e da rainha de Guge, a maior parte dos lamas dos mosteiros do Tibete em seculares e não está isento (aliás, está bem presente) nas guerras então travadas com os exércitos vizinhos e rivais e que levarão à derrota impiedosa do reino de Guge. António de Andrade é o rosto da intolerância religiosa bem soletrada nas cartas que envia ao Provincial da Companhia de Jesus em Goa. Razão pela qual, depois dele, todas as missões falharam. É o que dá. Este jesuíta morrerá nesta cidade indiana, envenenado… por um seu fiel criado.

António Luís Catarino
4 de junho de 2017

Doce Helena 6


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Maria Helena da Rocha Pereira (MHRP) era catedrática de Cultura Clássica na Faculdade de Letras em Coimbra, para além de tradutora de grandes obras diretamente do grego e do latim. Foi minha professora dessa disciplina durante dois anos. Faleceu a 10 de abril obrigando Portugal a múltiplas homenagens. Senti um profundo incómodo pelo seu desaparecimento. Maria Helena era uma professora invulgar, rara. Com uma aparência frágil, dobrada sobre si própria, embrenhada em pensamentos, passava por nós com um sorriso estampado no rosto. Foi a primeira professora catedrática da Universidade. Preparou a tese em Oxford, em 1949, ainda com a Grã-Bretanha a senhas de racionamento da guerra. O seu saber era profundíssimo e o legado que nos deixou inesquecível. A questão final e habitual em MHRP, quando nos encontrávamos com ela nos exames, era esta: «qual o legado que nos deixou a cultura grega para as nossas culturas ocidentais?». Nos finais de 70 e inícios dos 80, não éramos muito afins à dita «civilização ocidental». Mas tentávamos, na nossa arrogante e eventual sapiência de estudantes, ligarmos Aristóteles à democracia (de preferência, direta), Platão ao autoritarismo, procurávamos Nietzsche, citávamos Goethe, transpirávamos o tardio Luciano, destacávamos a fraturante Safo, entrávamos felizes pelo etéreo das pitonisas de Delfos e pelas neves do Olimpo, replicávamos as Bacantes; contudo, MHRP, nas aulas, tinha-nos avisado: «Não vão só por aí!». A cultura grega, afirmava, deixou-nos alguns momentos marcantes à nossa cultura europeia: a despedida de Heitor de Andrómaca «…pôs nos braços da esposa o filhinho; ela recebeu-o no seio perfumado, entre risos e lágrimas; condoeu-se o marido ao vê-la, acariciou-a e dirigiu-lhe (…) palavras, chamando-a pelo nome…», o pedido de resgate do cadáver de Heitor ao brutal Aquiles pelo pai, Príamo, na Ilíada «…Colocando-se perto, abraçou-se aos joelhos de Aquiles e beijou-lhe as mãos terríveis, assassinas, que lhe mataram tantos dos seus filhos…», e o gesto arrependido de Aquiles que manda alindar o corpo de Heitor. Na Odisseia, o choro de Ulisses quando ouve uma canção que lhe lembra a saudosa Ítaca e o reconhecimento e morte do seu cão quando lá chega «...Mas a Moira da morte negra se apossara de Argos, assim que vira Ulisses, ao cabo de vinte anos.» Segundo Maria Helena eram estes, também, os momentos da matriz ocidental. Ficávamos dececionados, é certo, mas hoje, passados mais de trinta anos, percebemo-la…este é o nosso cimento: ódio, amor, arrependimento, sangue, suor, lágrimas, alegria, vida e morte. A Moira que a todos espera.


António Luís Catarino
24 de maio de 2017

sábado, abril 28, 2018

Raul Brandão (nos 150 anos do autor) 5


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Raul Brandão com a sua mulher, Maria Angelina

«A vida é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro.» Esta frase é de Raul Brandão, que se pode ler na sua obra extraordinária, Húmus. Faz, este ano, 150 anos do seu nascimento e 100 da publicação desta obra, razão mais que suficiente, em Portugal, para se multiplicarem os debates, colóquios, reedições e ensaios mais ou menos esdrúxulos. Mas não nos enganemos: Raul Brandão é ignorado olimpicamente por quase todos, incluindo leitores, críticos e a maior parte dos académicos. Não fossem estas datas «redondas» e o homem já não constaria sequer de uma nota de rodapé, para onde, desgraçadamente, remetemos os génios. Nascido em 1867 e falecido em 1930, podemos dizer que o leitmotiv de Brandão não se limita a saber da existência ou não de Deus, a relatividade do conceito do mal e do bem, ou o da liberdade dos instintos humanos oprimidos pelas instituições, os tais «muros» que deviam ser derrubados para se usufruir da plenitude da vida. Fortemente crítico da sociedade da sua época e das hipocrisias de uma burguesia finissecular, Raul Brandão era um libertário que convivia com os melhores do seu tempo como Teixeira de Pascoaes, Guerra Junqueiro, Gomes Leal ou Fialho. Mas consegue-se perceber que vivia na sombra, isolando-se literariamente. Chamam-lhe decadentista. Revoltava-se, contudo, com a sorte dos miseráveis, dos que nada tinham, esperando deles uma revolta social profunda. Em Húmus, ou no Pobre de Pedir, ou mesmo no prefácio belíssimo das suas Memórias, mostra uma profunda humanidade para os que sofrem. Raul Brandão persiste na existência da simulação da vida, no sem-sentido que ela nos apresenta em cada gesto quotidiano. Decadentista? Este autor singular viveu a queda lenta da monarquia constitucional, assistiu à ditadura de João Franco, aos gastos sumptuários da família real, ao vergonhoso Ultimatum inglês a Portugal, à bancarrota de 1891, à revolução republicana de 1910 e aos seus 48 governos em 16 anos e, ainda por cima, já doente, assiste ao advento do salazarismo, imposto pela Ditadura Militar. Decadente, depois disto tudo? Seríamos, hoje, todos assim, acreditem. «Um país de suicidas» como lhe chamou Unamuno. Mas, mais suicídio ou mais saudade, prefiro Brandão quando escreve no Húmus «O que eu quero é tornar a viver. A minha saudade é esta. O que eu quero é recomeçar a vida gota a gota, até nas pequenas coisas. Não reparei que vivia e agora é tarde. Sinto-me grotesco. Recomeçá-la nas tardes estonteadas da Primavera e na alegria do instinto.»

António Luís Catarino
15 de maio de 2017

Mixofobias - (Sobre a morte de Zygmunt Bauman) 4

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Zygmunt Bauman

Zygmunt Bauman morreu este ano. Sociólogo, fundador do conceito da «sociedade líquida» foi também ele um refugiado. Judeu antissionista, comunista desencantado, humanista crítico do Humanismo, criou uma forte descrença na sociedade consumista em que (sobre)vivemos. Lembra-nos, no seu «Amor Líquido», que em 1784, Kant já observava que o planeta Terra, sendo uma esfera (helàs!), obrigava-nos ao encontro bastando, para isso, movermo-nos. Segundo Bauman, o filósofo advertia-nos que, cedo ou tarde, não haveria um só espaço vazio a que nos apegar ou fugir. Quase dois séculos e meio após estas palavras e a aprovação da Declaração Dos Direitos do Homem e do Cidadão, o Iluminismo está em crise, moribundo, devido a essa mesma contradição nos termos: «do Homem E do Cidadão» como se um conceito pudesse divorciar-se do outro. Conquistaram-se «espaços vazios» e «interditos» em nome do Humanismo. A emergência da regra trinitária Estado/Nação/Território observada por Bauman, tornou o mundo num enorme «espaço incivil». Os refugiados (económicos, políticos ou de guerra) vêm daí, desse espaço de violência instalada e permanente. Quando nos chegam, cara a cara, encontramos as causas das mixofobias de Bauman: incapazes de assegurarem as suas diferenças, seguem rapidamente os costumes ocidentais, consumindo como tais, não dando oportunidade ao encontro real das diferenças culturais. As cidades tornam-se explosivas, por falta também da observância diferente do outro, da possibilidade da diversidade e vivência criadoras. O «nós» esvai-se, esbate-se. Por estranho que pareça, cresce um fenómeno paralelo às mixofobias – o das mixofilias, que carece da verdadeira construção de uma «comunidade de semelhança» assente na riqueza das diferenças. A violência contra os refugiados é um fenómeno dessas sociedades líquidas que rejeitam os resíduos. Bauman avisa-nos que já Carl Schimtt determinava a soberania de um Estado na distinção que ele faria entre um valor e um não-valor. Ora, um refugiado, um apátrida, não tem valor de troca, é um não-valor. Os «espaços interditos» tornaram-se agora as infames terras devastadas. Lévi-Strauss, nos seus «Tristes Trópicos», apresentava-nos formas alternativas das sociedades primitivas lidarem com o estrangeiro: uma, antropofágica, seria a de «comerem os estrangeiros até ao fim». A segunda, antropoémica, a de «vomitar os estrangeiros», recolhendo-os e expelindo-os para longe. As nossas sociedades líquidas adotaram as duas.

António Luís Catarino
1 de maio de 2017

Los Angeles.pt 3


Angelus Novus, de Klee

Literalmente, Os Anjos. Mas PT é para poetas e pintores. Há semanas atrás vi, no Porto, uma retrospectiva da obra de Wim Wenders e o já épico Asas do Desejo. A minha introspecção involuntária e algo dolorosa que se verificou após o filme, levou-me a pensar naqueles anjos de longos cabelos e gabardines, belos e imortais, olhando os homens e as mulheres com a inveja da felicidade de sermos todos finitos. Pensei na presença de anjos nos maiores da poesia e arte mundiais. Em Wenders, os anjos hesitam entre a queda e o voo num mundo realmente invertido. Nunca saberemos a opção real daqueles anjos que nos estudam, atentos, numa biblioteca, tentando adivinhar o Outro, ou seja, nós próprios. Por alguma coisa, o realizador os colocou num ricto nostálgico enquanto deambulam por corredores cheios de livros. Sabemos também que Larkin, Mallarmé, Eliot, Yeats ou Whitman clamavam por anjos e Paula Rêgo os pintou com asas negras, particularmente maravilhosos e provocantes. Mas são os de Heiner Muller que, no seu Anjos do Desespero, nos perturbam. Diz Muller: «Atrás dele (do anjo) o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se acumula o futuro, esmagando-lhes os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas…». O desespero em todo o seu fulgor. Mas é Paul Klee, que, num simples quadro de 1920, nos dá a visão mais abjeta do mundo e que leva Maria João Cantinho, uma escritora e ensaísta portuguesa, a interpretar o Angelus Novus do pintor (podem ver a imagem pela net) desta maneira: «Nessa imagem terrível, o Angelus Novus revê-se num mundo melancólico e triste, horrorizado pela sua visão, com um olhar alucinado perante esse horror e encontrando apenas diante de si, um monte de destroços, que quer reunir e «salvar», mas uma tempestade que sopra do paraíso prende-lhe as asas, arrastando-o, impedindo-o de realizar esse gesto» (in Anjo Melancólico, 2002). É esse olhar, essa impotência nas asas de um anjo que nos comove como seres humanos. E que melhor alegoria para o mundo de hoje, que esse olhar aterrorizado se reverta sobre nós, quando sabemos que esse mesmo quadro de Klee está em Jerusalém, do lado israelita, provavelmente «protegido» por metralhadoras e toda a panóplia de armas de guerra e de homens treinados para as utilizar. Para que o horror continue intacto.


António Luís Catarino
7 de abril de 2017

Almada Negreiros! 2

José de Almada Negreiros

O ponto de exclamação aposto neste título tem tudo a ver com a postura guerreira do poeta, dramaturgo, encenador, contista, pintor e desenhador modernista. Português, «futurista e tudo!», segundo as suas palavras iniciais, foi um verdadeiro tufão, um ciclone, no calmo e obediente panorama das letras e artes pictóricas portuguesas do início do século. Nascido na ilha de S. Tomé em 1893, faleceu em 1970 em Lisboa. Revejo-o, hoje, como um fenómeno ímpar e não repetido na arte portuguesa. Mas não se iludam com os rótulos com que errada e frequentemente se lhe colam à pele. O seu espírito irrequieto e independente recusaria qualquer compartimento artístico ou movimento que lhe roubaria a sua individualidade singular. Foi precoce em tudo e recusou qualquer educação artística. Ligou-se à revista Orpheu juntamente com Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, Mário de Sá-Carneiro ou José Pacheko. A revista Portugal Futurista, apreendida pela polícia logo no seu primeiro número, juntou-o a Amadeo de Souza-Cardozo e Santa-Rita Pintor, falecidos, muito novos, em 1918. Mário de Sá-Carneiro tinha-se suicidado em Paris logo em 1916. O circunspecto e introvertido Fernando Pessoa, dizia-se, não simpatizaria muito com a irrequietude e o hiperactivismo de Almada, mas nunca pôs em causa a sua genialidade. Porque de um génio se tratava. Não se deixava amansar. O facto de ter passado por Paris e por Madrid, juntamente com Sarah Afonso, sua companheira e artista excepcional, não travou o seu encanto crítico a Portugal. Veio para cá. O seu carácter intransigente para com movimentos artísticos levou-o, mais tarde, a recusar ser futurista, nomeando-se interseccionista e sensacionista e chegando a boicotar uma palestra de Marinetti em Lisboa, no ano de 1932, que, descuidado, se juntou a Júlio Dantas ou ao autor da autoritária «Política de Espírito» de António Ferro, e ao que de mais retrógrado se fazia em Portugal. Não conseguiu juntar poetas ou pintores multiplicando-se em revistas efémeras. Abominava a prosápia e a genuflexão política. Como ele disse no seu Manifesto Anti-Dantas «Basta PUM Basta! Uma geração, que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi! É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma rêsma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! PIM!». Olhamos, hoje, à nossa volta, e resta-nos proclamar, algo desconsolados: Almada!

António Luís Catarino
29 março de 2017


sábado, abril 07, 2018

Das Indústrias Culturais 1


Das Indústrias Culturais
As principais cidades portuguesas estão gentrificadas, ou seja, turistificadas. Quando olhamos, hoje, para o Porto e Lisboa, vimos uma massa de turistas, geralmente em grupo, que passeiam, por vezes à pressa, pelas suas ruas. O debate está em aberto na sociedade portuguesa e nas suas instituições políticas. Estas últimas tentam desdenhar o problema, porque de um problema se trata. O dinheiro não é despiciendo para os impostos e já se fala em impor ao Porto uma taxa turística de dois euros por cada dia que um turista passa na cidade. Em Lisboa basta um único euro que reverterá, dizem, para a recuperação do património nacional. O problema para a sociedade civil é outro. Os centros esvaziam-se das suas populações sendo substituídos por hostels e comércio de duvidosa qualidade e as chamadas indústrias culturais multiplicam-se. São os museus e a cultura que servem de «menu» aos turistas. Mas cuidado, gente boa que nos vem visitar! No Porto, o Museu de Serralves tem abandonado devagarinho os seus objectivos primordiais de expor a sua colecção per
manente, para nos dar pintura e instalações de gosto duvidoso. A própria mostra das 80 obras de Miró, que o Estado se apropriou, quando da falência do Banco Espírito Santo, não têm qualquer coerência quer cronológica, quer conceptual. São quadros «a monte» comprados por especuladores e que nem a boa vontade do seu curador, Siza Vieira, conseguiu dar-lhe a tal coerência expositiva que lhe falta. As Indústria culturais de grandes empresas multiplicam-se para dar conta do aumento de turismo. É o MAAT um museu de arte contemporânea ligado à EDP (empresa de electricidade ligada a capitais chineses), o Museu Joe Berardo (outro banqueiro falido) que mais não é um amontoado de obras compradas avulso e espectáculos teatrais, de moda e musicais que se desdobram para gosto dos «turistas». Claro que há quem resista e tente expor e trabalhar com base numa escolha artística séria como, por exemplo, a exposição de Amadeo de Souza-Cardozo ou de Almada Negreiros esse «futurista e tudo», mas são efémeras e repartem-se rapidamente entre as duas cidades mais importantes de Portugal. As indústrias culturais estão aí para dar e vender. Literalmente. Mudam as populações originárias dos centros urbanos, aumenta-se o preço numa gastronomia que pouco tem de autóctone, o barulho de DJ’s nas ruas retira-nos o silêncio necessário da cidade, as árvores são arrancadas para alargar os passeios das ruas. Só me resta um apelo, a vós, turistas: salvem-nos das indústrias culturais. Exijam genuinidade!



António Luís Catarino
Publicado em 14 03 2017
Suplemento Cultural Taboa Redonda do El Progreso e Diario de Pontevedra

quinta-feira, março 08, 2018

Tudo se poderá reduzir a pouquíssimas palavras: a Deriva terminou a sua viagem de 15 anos. Criada em 2003, publicou mais de duas centenas e meia de livros onde se contam vários géneros como a poesia, romance estrangeiro e português, sociologia, história, filosofia, arte, antropologia, literatura infanto-juvenil e intervenção política, colaborando com várias instituições no domínio jornalístico, social, político, universitário e cultural. 
Junto com o cansaço de lutar contra tempestades donde não perspectivámos sequer bonanças próximas, acompanhavam-nos igualmente as impossibilidades burocráticas e as diversas austeridades económicas que, para as pequenas editoras, nunca deixaram de existir. Agradecemos sinceramente aos leitores e autores que nos acompanharam desde sempre. 
Autor do logo. Gémeo Luís

António Luís Catarino
Porto, 8 de março de 2018