domingo, novembro 29, 2020

«Do Desaparecimento dos Rituais», de Byung-Chul Han

 

Por vezes há autores que nos desiludem. Mas creio que isso fará parte de quem segue desde há anos o percurso singular do filósofo coreano Byung-Chul Han, como é o caso. Não exijo que todos os filósofos contemporâneos deixem de interpretar o mundo e comecem a querer transformá-lo, mas há pequenas nuances que gostaria de maior clarificação. O título do livro leva-nos à questão central: serão os rituais necessários perante uma sociedade que rapidamente os está a esquecer? Depois de um ataque ao ritmo neoliberal e ao trabalho/descanso da contemporaneidade como facto maior da alienação, o autor define rituais como actos simbólicos que transmitem e representam os «valores e os regimes que tornam coesa uma comunidade» gerando uma comunidade sem comunicação, enquanto que hoje, o que existe é uma comunicação sem comunidade. Parece-nos pois natural que o filósofo parta para a crítica aberta e, por vezes, violenta à mercadoria. Essa mercadoria, que foi classificada por Marx como fétiche, como alienação do capitalismo é, todavia, objecto de crítica ao neoliberalismo, pelo autor. A diferença é clara e entendida por todos nós: o capitalismo não é colocado em causa como sistema, mas sim os regimes que dele transpiram como o neoliberalismo culpado de todos os exageros e exploração desenfreada, tal como o capital e o dinheiro. Até aqui tudo conforme, embora já duvidoso. Mas Byung-Chul Han inicia pois o seu ataque concertado, e até certo ponto sintetizado e estruturado, ao smartphone, ao pensamento dático (baseado na quantidade de dados), à deslocalização - a ausência de lugar fruto da falta de identidade de um ritual que nos coloca no mundo - , à emocionalização da mercadoria e à estetização ligada a esta que obriga a um consumo de produção que coloniza o ego cada vez mais narcisista e, por isso, fora da comunidade. As pessoas, por isso, isolam-se, como nas redes sociais, mas construindo um ego em comunicação constante, falando para si próprias. A palavra «ritual», hoje, é vista com repugnância porque está ligada ao silêncio - cada vez mais impossível de atingir -, ao lugar, à pertença a um comum, à reflexão. O narcisismo e o egotismo estará assim associado à ausência de conclusões, ou da procura da verdade assente em factos observáveis, mas num continuum de updates, que nos desligam (relegere) do mundo sensível e nos fazem entrar numa roda de hiperactividade e de défice de atenção. Mais do que o conteúdo de um post necessitamos de likes, friends e followers como um campo de ressonância. O eco do eu. Leiamos o filósofo: 

«Na busca de novos estímulos, excitações e experiências, hoje perdemos a capacidade de repetição. É intrínseco aos dispositivos neoliberais, tais como a autenticidade, a inovação ou a criatividade, coagirem-nos permanente ao novo. Mas, no final de contas, a única coisa que geram são variações do mesmo. O antigo, o passado, o que permite uma repetição satisfatória, é eliminado, porque se opõe à lógica de aumento de produção. No entanto, as repetições dão estabilidade à vida. A sua característica é a sua capacidade para nos instalarmos num lugar».

Para o pensador coreano a autenticidade é inimiga da comunidade porque narcisista. A partir daqui inicia a crítica à produção neoliberal, visto que a pessoa passa a ser um produto, uma mercadoria, tal como o tempo de trabalho e de descanso que faz parte do ritmo produtivo. A teoria de alienação de Marx? Não. Byung-Chul Han passa não só para a crítica de Marx, como para o seu antecessor Hegel, enquanto ao mesmo tempo abre uma nesga de crítica ao capitalismo como fenómeno contrário a um outro fenómeno: o da religião (a tal relegere) porque este sistema económico impede a ligação comunitária, entrando e promovendo um inferno do igual porque tudo (as mercadorias como objectos e como pessoas, dizemos nós) pode ser comparável em dados. É a ditadura dática. 

Mas porque Byung-Chul Han critica, então Hegel? Porque na sua dialéctica opta pelo servo e não pelo senhor. Decide-se não pelo ócio do senhor, mas pelo trabalho do servo. A sobrevivência contra a vida! Ou seja, Hegel seria incapaz de entender o ponto de vista do jogador, do ócio, do amante da vida. E nessa esteira de pensamento, leva-nos à negação de Marx, cuja filosofia e teoria se centra no trabalho, louvando, um tanto puerilmente, o seu genro Paul Lafargue que escreveu o famoso «O Direito à Preguiça». Sabemos que Marx centrou toda a sua filosofia no trabalho, para o desconstruir  como trabalho assalariado e alienante no capitalismo, decompondo o valor da mercadoria e explicando o valor do trabalho e principalmente da força de trabalho. Não irei ao ponto de sugerir que na Coreia não haja uma tradução de «O Capital», embora o coreano viva na Alemanha e saiba correntemente o alemão, o que lhe permitiria ir à fonte...

A dúvida adensa-se quando se começa a entrar por caminhos estranhos na leitura de «Do Desaparecimento dos Rituais»: o Japão como futuro dessacralizado do capitalismo, pela imposição de signos e território ritualizado do capitalismo? A mercadoria no Japão perde o seu real valor pela importância do invólucro, muitas vezes mais rentável que a mercadoria em si? E a superação da guerra inumana de drones ou pela internet, dando primazia ao jogo da guerra de olhos nos olhos, no duelo entre pares? Outra vez os samurais de Mishima? 

Isto tudo poderia ser uma leitura interessante se não estivéssemos atentos às «pequenas» pesquisas de Byung-Chul Han. Não é só a tentativa (falhada quanto a nós) de superação de Hegel e  Marx - e logo, neste, pelo valor das mercadorias! - nem também pelos laivos situacionistas e libertários de quando fala do ócio/trabalho ou da crítica ao digital e ao poder dático, mas já nos causa perplexidade a utilização e referência do nazi Carl Schmitt para a superação da guerra digital online, ou pela superação do Iluminismo através da assunção de sociedades ritualizadas pelo sentido comunitário dando o exemplo do Japão. 

Como gostaria de estar errado sobre ele. Sim, o Iluminismo morreu, mas não creio que seja pela perspectiva do devir filosófico de Byung-Chul Han. Fico-me cá pelo Adorno e basta!

António Luís Catarino

29 de Novembro de 2020

«Imagine: Reflections on Peace»

 

Foto de Ron Haviv: os Tigres de Arkan em acção na Bósnia Herzegovina


Um livro sobre a paz mostrando-nos a guerra. Fotos duras estas, como a que escolhi para ilustrar a brutalidade e a desumanidade, mas imperioso conhecê-las. Nesta, um «arkan» sérvio pontapeia uma mulher bósnia prostrada junto a dois cadáveres, um dos quais teria sido atirado de uma janela de interrogatórios em andares superiores do edifício. Nada que o paramilitar que a agride na cabeça o faça sequer apagar o cigarro que segura na mão esquerda. Um pequeno pormenor que nos transmite o horrível da situação. Ao lado, nenhum dos outros dois se vira para observar a cena. Possivelmente saberão o epílogo do que vai seguir-se que é a morte certa das vítimas. Este livro Reflections on Peace é por isso feroz, mas não só. Ajuda-nos a perpectivar uma paz necessária em todo o mundo onde ela não existe ainda. A construção da paz é muito mais honrosa e difícil do que a cobardia da guerra. Bater em mais fracos não segura a mão vitoriosa de quem se julga forte. Neste livro viajamos pelo Líbano, Camboja, Ruanda, Bósnia, Irlanda do Norte, Colômbia, Iraque e Síria regiões martirizadas pelo poder do dinheiro, da ganância, do capitalismo neoliberal e do imperialismo, mas que teima em atingir uma vida digna de ser vivida.


«Comércio com História», Ministério da Economia


Desenho de Paulo J. Mendes

Este livrinho editado pelo Ministério da Economia e recebido por mão amiga não é pretensioso como é comum em livros oficiais de divulgação de projectos. Aqui, trata-se tão-só de dar conta aos cidadãos dos «critérios de classificação da Lei 42/2017 que estabelece o regime de reconhecimento e protecção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local». Este «Comércio com História» é, para além de um lado pedagógico e de levantamento histórico inquestionável, um livro que tem a particularidade de conhecermos os melhores urban sketchers de Lisboa e Porto. Com qualidade muito variável de desenhos e textos, a verdade é que o folheamos com prazer nas variadíssimas lojas comerciais que nos acompanham nas duas cidades mais populosas do país. Assim se faz a história de um modo simples, sem grandes gastos e com grande eficácia.

Como urban skecther que pretendo ser, e só de vez em quando, não quero deixar de realçar o nome de Paulo J. Mendes que, no Porto, nos deu os melhores desenhos do livro principalmente da Pérola do Bolhão (na imagem), mas também da Casa Crocodilo, do Guarany, do Majestic ou da Livraria Lello. De Lisboa, a quantidade de desenhos de estilos diferentes dispersam-nos e alguns pecam mesmo por pueris, mas gostamos e se contribuir para que estas lojas não acabem para darem lugar a «guest houses» ou motéis manhosos, tanto melhor.

sábado, novembro 21, 2020

«Contos Arrepiantes da História de Portugal» de António F. Nabais e Rui Correia. Ilustrações de Hélio Falcão

 


Pode-se brincar com a História de Portugal? Pode e deve-se. São dois livros com um sentido de humor impecável e sem uma preocupação desmesurada pelo politicamente correcto. No entanto, há uma atitude pedagógica que não se pode ignorar e que pode levar os nossos jovens a iniciar-se na História ou na leitura. Os autores são António F. Nabais e Rui Correia que publicaram dois livros dentro da série «Contos Arrepiantes da História de Portugal»: a «Idade Média Medonha» com episódios da formação do Reino de Portugal e do seu quotidiano e «Descobrimentos Desgraçados». Dois volumes ilustrados por Hélio Falcão. Nos tempos em que vivemos relembrar a História deste modo é uma mais-valia, tanto quanto a língua portuguesa. Necessário que os mais novos conheçam estes livros e, desconfiamos, os que lhes seguirem.
É Rui Correia, professor de História, que numa entrevista ao DN em Agosto deste ano, diz 
«É bom que se perceba que nenhum de nós leva anedotas para dentro da sala de aula, não há aqui a ideia do infoentretenimento. A aula é uma coisa, o livro é outra, mas pretende-se nas duas formas que aluno e professor, leitor e autor, estejam juntos no mesmo sorriso e, assim, poder fazer que as mensagens sejam mais facilmente transmitidas. No ato de aprender, o humor é fundamental. Ninguém aprende sem estar bem-humorado, ninguém aprende de mau humor. Portanto, aprender com um sorriso nos lábios é mil vezes melhor do que aprender com um esgar de horror ou qualquer coisa do género. O humor é uma excelente calçadeira para podermos entender os momentos mais difíceis da história e isto funciona também como uma filosofia de vida. É como aquele momento em que alguém conta a anedota no funeral.» 
António F. Nabais:
«Com o decorrer do processo, encontraram histórias que ainda não conheciam ou que viram confirmadas?
António F. Nabais - Isto foi também um processo de aprendizagem para mim e é um prolongamento daquilo que a minha profissão me dá. Obviamente, aprendemos sempre muito durante uma licenciatura, mas eu nunca aprendi tanto desde que dou aulas. A simples necessidade de investigar aquilo que se vai ensinar obriga-nos a investigar e a encontrar coisas que não sabíamos. Um desafio destes é algo semelhante. Fiquei a saber coisas que também não sabia. Gosto especialmente da história da ribeirinha que tramou o seu próprio raptor.»
ALC
21 de Novembro de 2020


sexta-feira, novembro 20, 2020

Colaboracionismo

Tenho uma ligação distante para com os escritos de Rui Tavares. No entanto, leio-o. Hoje de manhã, ao ler o Público e a sua crónica, lembrei-me do peso das palavras, das memórias e como elas se nos infiltram na pele. Rui Tavares usou a palavra «colaboracionista» como um objecto cortante. E tudo aponta para eu começar a usá-la para aqueles tipos de direita que acordaram com o Ch3g4. Rui Rio é um colaboracionista. Os militantes do PSD e CDS que, como carneiros, não se rebelarem contra as direcções são colaboracionistas e com este adjectivo arrastam atrás de si toda a ignomínia, a indignidade e o opróbrio de se verem aliados aos neofascistas e que a História registou como sendo das mais baixas acções políticas. São colaboracionistas. Vou usar muito esta palavra no futuro.

António Luís Catarino

20 de Novembro de 2020

domingo, novembro 15, 2020

«A Mulher como campo de batalha», de Matéi Visniec. Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite

 


                                                                 A Mulher como campo de batalha, de Matéi Visniec. 
                                                                         Encenação de Sofia Lobo. Escola da Noite

É evidente que saímos incomodados. Mas quem quer teatros levezinhos vá a outro lado. Este espectáculo encenado por Sofia Lobo constitui a 70ª sessão de teatro da Escola da Noite o que não deixa de ser significativo numa cidade cuja maioria dos habitantes são culturalmente neutros (o que é pior do que serem incultos). Mas depois dos parabéns vem o tal murro no estômago apontado com mestria pela encenadora e por uma dupla de excelentes actrizes que deixo aqui os seus nomes: Ana Teresa Santos (Dorra) e Paula Garcia (Kate).

Os figurinos, adereços e imagem gráfica é de Ana Rosa Assunção que teve um trabalho importantíssimo na atmosfera fria de um hospital e ao mesmo tempo violentamente intimista com que seguimos a narrativa.

Sofia Lobo e Ana Teresa Santos traduziram a obra do romeno Matéi Visniec que não conhecia. Aliás, creio que li uma obra dele, depois de olhar para a folha de sala deste espectáculo. Se não me engano veio ter-me às mãos, há muito, «Cuidado com as velhinhas carentes e solitárias» de 2003, que um amigo ligado ao teatro tentou encenar em Leiria. Não creio que alguma vez tivesse sido apresentado.

E chegamos ao texto em si. Nascido em 1956, um rapaz da minha idade portanto, cursou Filosofia na Roménia de Ceausescu o que equivale a estudar a influência dos pinguins nos desertos do Saara! É evidente que se exilou porque assim teve de ser, não fosse o grande Conductor ver nas múltiplas personagens do autor, uma imagem dele próprio. Cremos todos que o seu objetivo foi o de seguir o seu rumo, já que se tornou uma figura incontornável da dramaturgia mundial. A Escola da Noite e a Sofia Lobo escolheram bem.

Fotografia de Eduardo Pinto

                                                                 Fotografia de Eduardo Pinto

Cito de cor: «A Europa é um monte de pedras», «Tem tantas que um dia se afundará com o seu peso», «A Irlanda? Um monte de pedras!», «Os Estados Unidos? Pedras, pelo que me tornei pedreiro, quando emigrei para lá». Estas frases de uma personagem que não está fisicamente na peça são ditas pelo avô, de ascendência irlandesa, de Kate uma psicóloga que acompanha os que levantam centenas e centenas (milhares?) de valas comuns nos Balcãs. E quem cuidará depois dela? Compreendi que aquelas pedras são uma metáfora dos seres humanos. E então poderemos concluir que as pedras não existem somente naquela península. Aliás, o abjecto, o horror e a violência demente que são as violações em massa nos Balcãs, não residem só nos Balcãs. A mulher torna-se então um campo aberto de batalha. Porque através dela se pode abater mentalmente o soldado da frente. É uma guerra de rectaguarda. Como todas, cobarde e terrível pelo que tem de sórdido. Mas da batalha dos múltiplos nacionalismos! E, por favor, não me venham com o duplo adjectivo do «nacionalismo exacerbado». Digam só «nacionalismo». Basta para desencadear horrores e atitudes demenciais, inumanas, quase que diria, simiescas, se não estivéssemos a insultar os nossos primos. O diálogo entre dois «homens» balcânicos que são imitados por Ana Teresa e Paula podemos ouvi-los em qualquer café de Lisboa, Coimbra ou Vila Nova de Tázem: os «mas» eternos com que se generaliza um povo constitui o nacionalismo seja ele «exacerbado», «radical» ou «soft». Isso não existe. Existe o nacionalismo, tout court, antecâmara do fascismo: «Os judeus? Tenho amigos judeus. Até são cultos…mas, puderam-se a jeito na Alemanha!», «Os ciganos? Cantam e dançam bem…mas, por vezes, são dados ao roubo!», «Romenos? Gente boa, alegre, mas preguiçosos e têm a mania que não são eslavos!». E continua…digam-me se já não ouviram isto vezes demais.

É Matéi Visniec que diz: «Nas guerras interétnicas, o sexo da mulher torna-se um campo de batalha. Vimo-lo na Europa, no final do século XX. O pénis do novo guerreiro mergulha no grito das mulheres violadas como outrora a espada do cavaleiro no sangue do seu adversário.»

É Kate, americana de origem irlandesa que afirma: «A Europa já se afundou com o peso das pedras!» Saímos daquela peça com a sensação nítida do que já suspeitávamos: como poderá a Europa redimir-se destes crimes, destas chagas deixadas nos Balcãs, que retomou a lógica horrível das primeiras e segundas guerras mundiais? Não pode. Não podemos. Isto terá de viver connosco e extirpar essa memória colectiva vem até aos confins da nossa mente, mesmo daqueles que nada tiveram a ver com a ignomínia das guerras. Ou pensam estar muito longe…

E a gravidez de Dorra, fruto de uma violação colectiva, mostra-nos como o tal murro no estômago de que falava atrás, pode originar um encadeamento de memórias do espectador atento: que culpa? Quem são os culpados? Como Hanna Arendt nos mostrou no julgamento de Eichmann, os soldados estavam somente a cumprir ordens, eram administrativa e sexualmente competentes, para além de saberem matar muito. Os mandantes defendiam a entidade nação e alguns, como lembra Kate, eram até poetas firmados, como o psiquiatra Karadzic.

«Chorar por quem?» questiona Sofia Lobo. «Entre vinte a cinquenta mil mulheres foram violadas nesta guerra (…). Muitas foram obrigadas a parir crianças que não desejaram, para aumentarem o peso demográfico da etnia dos seus agressores, porque, sabemo-lo, na maior parte das sociedades e das culturas quem conta é o pai. Muitas das sobreviventes rejeitaram os filhos que tiveram, abandonaram-nos, deram-nos para adoção. As que os mantiveram inventaram-lhes pais, porque a intimidade violada gera vergonha, medo, silêncio. Só passados cerca de vinte e cinco anos, alguns destes jovens têm a coragem de enfrentar a sua estranha identidade para, ao darem a cara, serem a prova do que aconteceu em território europeu há pouco mais de duas décadas.» …ou o mar de pedras que cobrem as memórias das guerras europeias, os genocídios e os massacres. Pedras, daquelas que não deixam crescer as sementes e, outras, as pedras tumulares. Pedras humanas que são vítimas e perpetradores. Pedras.

Mas há, no mesmo texto da encenadora, uma afirmação que não posso deixar de divulgar aqui nesta nota de leitura. É quando Sofia Lobo lembra a nota esperançosa com que Visniec termina a peça, porque segundo o dramaturgo há que acreditar na humanidade e em que as pessoas poderão ser felizes. «Eu tenho mais dúvidas», diz Sofia. Eu, pessoalmente, também partilho esta ideia. Entre fascismos assumidos e em evolução, entre refugiados tratados como inumanos, migrantes perseguidos e confinados, campos de concentração modernos em que separam pais de filhos, muros nacionalistas, metáfora exacta da loucura confinada e aceite pelos confinados, o racismo, a xenofobia, o assassínio selectivo e diário de mulheres, a misoginia, ou o estado de guerra permanente que se multiplica, como cogumelos, pelo mundo, há pouco espaço para termos uma ínfima esperança na humanidade. Esta desesperança tem vindo a estacionar nos nossos pensamentos à espera de um erro, de um simples erro que nos leve a deixar a luta contínua em que a vida se tornou.

Esta peça excelente e incómoda que nos atordoa, portanto eficaz nos seus propósitos, não pode ser ignorada sob pena de perecermos todos sob o manto do fascismo.

António Luís Catarino

Coimbra, 15 de Novembro de 2020

sábado, novembro 07, 2020

«Anjos do Desespero», livro-catálogo de António Luís Catarino




A exposição Anjos do Desespero, concebida no Porto e em Coimbra entre 2016 e 2018, contém um conjunto de desenhos que pretende mostrar-nos estes anjos enquanto mensageiros, como diria Llansol, que fizeram a modernidade e a contemporaneidade. A sua existência reflectirá nas pessoas interpretações que só lhes cabe a elas verem. Porque é possível «ver» um desenho colectivamente. Não será possível «ver» um livro da mesma forma. As escritas que enformam os desenhos são a tentativa não de uma explicação obviamente absurda, mas de uma recusa da individualização de uma única forma e o desejo de as entrecruzar. Daí, o processo das leituras que acompanham os desenhos/colagens, realizadas por amigos, que tiveram lugar na apresentação pública da exposição no Liquidâmbar (Coimbra), em 14 de Maio de 2018. Os Anjos do Desespero, tal como Paul Klee os pintou, como Heiner Müller fez deles poemas, e Wim Wenders os filmou em As Asas do Desejo, são aqueles que, apesar de tudo, rejeitam a imortalidade porque exigem a Vida total, exaltam uma liberdade pura e tentam enlouquecer-nos, como uma saída possível, para que acabemos com o sofrimento contínuo de uma vida quotidiana sem senso. Müller avisa-nos: Eu sou o anjo do desespero, com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. Substituindo o silêncio e o ruído destes desenhos figurativos a carvão, aguarelados e contornados a tinta-da-china, sobrelevam-se as colagens e as palavras. Porque só as colagens interagem com o impossível, com o absurdo, com o non-sense. Daí a sua importância unificadora e congruente. Produzem todas, no seu cruzamento simbólico, o vácuo. Esse grande vácuo por onde voam estes anjos desesperados, vívidos.

António Luís Catarino

Coimbra 5de Novembro de 2020

 Texto de apresentação
5.      Cartaz da exposição
7.      Leitura 1 – Heiner Müller, leitura de Rui Damasceno, «O Anjo de Desespero», Relógio d’Água.
8.      Desenho 1
9.      Leitura 2 – Isidore Ducasse / Conde de Lautréamont, leitura de António Alves Marins, «Os Cantos de Maldoror», Antígona.
10. Desenho 2
11. Leitura 3 – Guy Debord, leitura de António Alves Martins, «A Sociedade do Espectáculo», mobilis in mobile.
12. Desenho 3
13. Leitura 4 – Charles Baudelaire, leitura de Maria João Seabra Santos, «O Rapaz Raro», Relógio d’Água.
14. Desenho 4
15. Leitura 5 – Asger Jorn, leitura de Manuel Rocha, «A Roda da Fortuna», Frenesi.
16. Desenho 5
17. Leitura 6 – Alfred Jarry, leitura de Rui Damasceno, «UBU», Campo das Letras.
18. Desenho 6
19. Leitura 7 – Raoul Vaneigem, leitura de João Pedro Gonçalves, «Aviso aos alunos do Básico e do Secundário», Antígona.
20. Desenho 7
21. Leitura 8 – Ulrike Meinhof, leitura de João Moreira, «Everybody Talks About the Weather . . . We Don't: The Writings of Ulrike Meinhof», Seven Stories Press.
22. Desenho 8
23. Leitura 9 – Hanna Arendt, leitura de Sílvia Franklin, «As Origens do Totalitarismo», D. Quixote.
24. Desenho 9
25. Leitura 10 – Wallace Stevens, leitura de Sílvia Franklin, «Antologia», Relógio D’Água.
26. Desenho 10

   O preço da edição de autor é de 12 euros.

NIB: PT50003502390000097490077


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