quarta-feira, novembro 27, 2024

«Cinco Suicídios», João Damasceno

 

Tipografia Damasceno, Coimbra. 2024.
Mais uma reedição de um livro de João Damasceno que nos deixou em 2010. Após a excelente publicação de «Corpo Cru», em Maio deste ano, surge agora «Cinco Suicídios» pela chancela da Tipografia Damasceno dirigida pelo Rui, seu irmão. O cuidado é de um grande primor: desde as duas qualidades do papel, da cartolina da capa, dos desenhos belíssimos do João, da capa cosida à mão e de um prefácio vivo de Carlos Braz Saraiva, só se poderá questionar às pessoas que se interessam por estas coisas da poesia, tendo conhecido ou não o João, quanto tempo falta para ter este livrinho nas mãos.

Os poemas são acompanhados por extractos do clássico «Guia de Perícias Médico-Legais» do médico Carlos Ribeiro da Silva Lopes. 

Empresto-vos um soneto:

Revólver

No espelho o meu rosto que me observa surpreso
O olhar fixo, cru, gélido, duro, homicida
Os lábios áridos num esgar de menosprezo
Premeditara há muito meu rosto suicida

Ergo o braço rigoroso num gesto largo
O revólver dirijo ao ponto que me alarma
Projectei-me irónico, quero ser amargo
Ser solene, grave, sensualmente amar a arma

Comtemplo da janela o sol no horizonte
esta derradeira memória havia previsto
deste mundo queria decisivo registo

A mão indiferente é próxima da fronte
O corpo muito rígido, no olhar um brilho
Meu dedo frio, carrega, lento no gatilho

Desenho de João Damasceno

Os pedidos podem ser feitos para o Rui Damasceno e/ou tipdamasceno@gmail.com e o preço é de 15 euros.

alc

Islenha 74. Uma revisitação a António Barros

Revista Islenha 74
A revista Islenha lançou este número semestral (de Janeiro a Junho de 2024) quase inteiramente dedicado a António Barros. Extremamente bem elaborada,  belíssima graficamente, com dados importantíssimos sobre o trabalho do autor ao longo de mais de 50 anos e que (nos) chama a atenção para um percurso singular que remete António Barros para um dos mais construtivos e provocadores artistas que está connosco. Baseado no seu trabalho «Florigen, 2005» escreve o autor/artor logo no início da revista:

«A escultura - em modo de objecto-livro - «Florigen,2005», elege o florescimento das plantas como pólo de reflexão sobre a conjugação: electricidade_energia_luz, e o seu caminho recíproco: luz_energia_electicidade. (...)
«Florigen, 2005» teve a primeira apresentação pública em What is Watt?, edição de 2005, no Museu de Arte Contemporânea Fortaleza de São Tiago, no Funchal. Depois em Coimbra na Casa da Escrita; no Círculo de Artes Plásticas_CAPC; e finalmente em: «da flor, esse rosto de esGrita», na Casa Museu Bissaya Barreto em 2024, enunciando-se como elegia ao museófilo, coleccionador de orquídeas, Alfredo Gomes de Barros, na celebração do centenário do seu nascimento.»

Explica-se que Alfredo Gomes de Barros é o pai de António Barros, como, aliás, é explicado por Isabel Santa Clara e Augusta Villalobos nas páginas que se seguem a esta apresentação tão clara, quanto necessária e global sobre o trabalho do autor. Aí, lê-se em alguns extractos que vos dou a conhecer:

«O conceito científico de florigen [António Barros cita o trabalho, de 1937, do cientista russo Mikhail Chailakhian] remete para o florescimento, metamorfose e maturação das plantas, em resposta à luz. Longe de ser um processo solitário, propaga-se, em convivialidade, gerando, em múltiplo jogo de espelhos, todo um jardim florido, pleno de vida. Uma festa para os sentidos e para a alma. Expandindo este conhecimento e esta sensibilidade, numa abordagem humanista percebemos florigen como uma metáfora da Vida, e da Arte. De uma Arte-Vida-Arte para a Elevação da Pessoa-Natureza. logo, da Sociedade e do Planeta. Tal é o desígnio de António Barros.» (pág.10)

Sobre o processo de construção das exposições de António Barros, Augusta Villalobos e Isabel Santa Clara apresentam-nos a seguinte ideia que, para quem já presenciou as exposições de António Barros, não pode deixar de se rever nestas palavras:

«Nos diversos momentos de mostra do seu trabalho num registo de fisicalidade - coisas reais, pessoas reais - António Barros proporciona uma vivenciação do espaço expositivo convertendo-o num lugar habitado, e habitável, convidando a que seja habitado em convivialidade: um muSeu que seja seu.
O próprio processo de construção de uma exposição constitui uma temporalidade privilegiada de diálogo com o Outro, sejam referentes de contaminação mais distanciados, sejam presenças próximas que o acompanham e contribuem directamente para a criação, ou - e de modo particular - o público, conceito que procura desconstruir e reinventar. Muito na linha Fluxus, a Arte como Processo. Para a universalidade.
O autor, que prefere assumir-se como artor, sempre captou a importância do lugar habitado numa exposição, e do modo de dar a ver, procurando através da semiótica da instalação e do rigor na montagem valorizar a especificidade e a densidade de cada peça, as afinidades e os confrontos. Os actos performativos encarnam de modo mais premente a delicadeza e a mutabilidade dessa habitar.» (pág.18)

O preço desta revista é de 15e e podem pedi-la para 

alc

domingo, novembro 24, 2024

25 Novembro. Il Grande Conduttore

 

Il Grande Conduttore
É quase comovedor assistir ao afã popular para que as comemorações dos 49 anos do 25 de Novembro tenham o prestígio e a adesão que a data obriga! Ele é roulotes de farturas e coiratos, minis em baldes de gelo, preparação de grandiosos bailes e bandas de coretos, fadistas, toureiros, pegadores de cernelha, fachos encartados, ex-terroristas e bombistas, ex-tropas saudosistas, almirantes de branco brio fardados... Eanes ajudou a acabar com o Prec, o «Grande Cagaço», e a reconduzir, tal como um Conduttore político as antigas elites de uma classe possidente, inculta, nova rica, burgessa, mais que empenhada na continuação do fascismo e da guerra. Hoje, resta-lhes o 25 de Novembro, porque o 25 de Abril sempre foi considerado uma excrescência, uma «balda» de soldados desobedientes das hierarquias, uma «tropa macaca» que, juntamente com um povo mal adestrado, tiveram a coragem de exigir talvez uma outra vida, desta vez digna, que valesse a pena ser vivida. O que o Conduttore conseguiu, ao lado de um militar intelectual da estirpe de um Jaime Neves, foi a conquista de uma «normalização» política, castigando-nos à sobre-exploração, e ao olvido de quase todos os direitos de um povo que teve a noção de dever erigir o «Grande Cagaço» nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos locais de trabalho e nas escolas e que nunca mais vão esquecer, que perdurará sempre no tempo comum deles e no nosso. 

Na «comemoração» dos 49 anos anos vai ouvir os discursos cheios de ódio e rancor à liberdade e à dignidade de um povo. Fica-lhe bem. esqueçam o 25 de Abril e, já agora, o 25 de Dezembro que isto de ter messias que apaguem o generalíssimo busto pode ser um arrepio para um ego de vaidade escondida, uma falsa humildade com que esta gente gosta de se vestir. 

alc

quarta-feira, novembro 20, 2024

«Visitar Amigos e Outros Contos», de Luísa Costa Gomes

 

D. Quixote, Setembro de 2024
Dos melhores contos de Luísa Costa Gomes. Diz a contracapa que não terão um fio condutor, mas logo a seguir coloca-se a hipótese de existir «uma certa homogeneidade nos temas e nas abordagens» que serão «o tempo, a História, e a acção que por acaso ou por necessidade vamos tendo nela.» Este acaso e necessidade sente-se em todo o livro e principalmente nos seu último conto em forma de um diálogo, «Rotas», em que a fé, a providência, o determinismo e o acaso são os caminhos que levam à despedida do livro e com ele alguma sensação de vazio ao fechar a última página. Dizer que anda «tudo ligado», é demasiado cliché para a autora que foge deles a sete pés, como sabemos. O livro prende-se a nós, sendo que o contrário é igualmente verdadeiro. Não é fácil isto acontecer no processo de leitura, porque tudo o que se passa naqueles contos já o experienciámos verdadeiramente num momento especial e que se torna elementar, num local que conhecemos ou noutro qualquer. Ou seja, em todos os contos que lemos o protagonista é o leitor. Seja pelo sarcasmo e ironia de Luísa Costa Gomes ou pela capacidade quase obsessiva de observação dos outros (nós, pois claro!) os contos, todos eles, vão direitinhos para o que já presenciámos, que vivemos ou estamos em vias de o viver. Poderia ter acontecido connosco, já teria acontecido, irá acontecer, conhecemos alguém que... a comédia do quotidiano, as pequenas e grandes tragédias sociais e familiares, as vaidades e discricionaridades que aguentamos diariamente, os poderes fátuos mas omnipresentes, a informação, a formação, a deformação. Um cansaço, pois.

Disse Luísa Costa Gomes, numa entrevista ao jornal Público, antes da apresentação de «Visitar Amigos», que se via como uma anarquista que clamava por mais Estado. E, reivindicando-nos ácratas ou cedendo uma ou outra costela dos ditos em nosso próprio corpo, quem não? Lembrei-me, ao ler a entrevista, do soixante-huitard que escreveu que perante a morte de deus, talvez fosse melhor pensar bem quem o substituiria! Contudo, não deixa de ser um sintoma destes tempos estranhos que correm, em que se desmantela uma instituição tão antiga, quanto a guerra de massas e das edificações religiosas. Tudo então é posto em causa e é isto que estes contos nos dão. A nossa própria contradição perante a ruína em que se transformou a nossa casa, a nossa rua, os nossos amigos, o nosso amor e até o nosso ódio de estimação. Presente: um nico de esperança, ainda assim.

Treze são os contos de «Visitar Amigos». Já cá cantam todos, mas não percam nem um: o primeiro, «A Ditadura do Proletariado», nome que não sei se será censurado pelas redes sociais por incentivo ao ódio, é o começo da aventura de quem se meteu em obras em casa e está sob o domínio de um grupo de operários que, de camartelo em punho, dão conta da destruição de paredes a eito sem que se saiba ao certo se se construirão outras tantas. Se me ri? Claro que sim, e depois? «(...) A primeira etapa cumpre-se, portanto, com a violência de um furacão: um magote de operários escavaca paredes, lança nuvens de poeira sobre os próprios bens. Armários são despejados sem piedade, mostrando o sóbrio tesouro de pratos desemparelhados, restos de colecção, vindos de gerações que há muito despacharam esta parte. Vivemos, operários e sua clientela, em consonância; quanto mais se deita abaixo, mais vejo que é possível deitar mais abaixo. É a vertigem. Começa-se numa ponta, vai tudo raso. Não é possível destruir por fracções. Não há reforma que possa acalmar a sede do novo. Ou tudo, ou nada. (...) (pág.18)» Isto é todo um programa sem metáforas ou alegorias, bem-entendido, sem necessidades de prolegómenos ou ademanes. Para votação imediata. De resto há reencontros memoráveis em outros contos; reparem neste extracto «(...) Passaram quarenta anos. Mas agora reencontrámo-nos e vamos encontrar-nos. As fotos de vida que ela envia são daquela uma e mesma pessoa, olho vivo, o pé ligeiro, rodeada de dinâmicas, apenas submetida à pressão da passagem do tempo. Vem de iate, vem de parapente, trepou montanhas, amarinhou às gáveas dos navios, todos esses nomes perigosos da navegação, os portalós, os traquetes, as retrancas, o mastaréu de joanete, a verga alta! A bujarrona! (...) (pág. 67)» A forma como a autora escreve «A bujarrona!» faz com que não saia tão depressa da nossa cabeça. Nem sequer o meu computador reconhece a palavra bujarrona! Imaginei-me a levantar-me num café, num debate, num colóquio ou até numa aula em anfiteatro e clamar bem alto «A bujarrona!». Talvez não morra sem o fazer. A toada continua com gatos imperiais, heranças tramadas, viagens fabulosas, visitas turísticas a campos de concentração alemães e pesquisas academicamente sustentadas a campos de reeducação chineses, ao conto voltairiano «O Bem de Todos». Mas há lugar, igualmente, para a emoção e em forma de  despedida: «(...) Apanho o voo nocturno. No aeroporto, na fila, à porta do voo, nos atrasos do voo, sorrio a tudo. O caminho para casa tem destes escolhos. Depois do jantar, no avião, enquanto eles dormem, subo discretamente a persiana. Espreito a noite e sou avassalada. Colo o nariz ao vidro da janela e esforço os olhos para verem o mais que podem. O bafo embacia o vidro, limpo-o com a mão, ele embacia-se de novo. Acabo por suster o fôlego. É sem respirar que admiro e desejo essas estrelas, ordem e ornamento da Terra. Siderada, estou noutra imensidão. Entre o embaciar e o desembaciar do vidro da janela, peço aos olhos que vejam o mais que podem e eles, amigos, recolhem a luz de todas as coisas apagadas. (pág.215)» Quem não se emocionar ao ler isto é porque...

alc

segunda-feira, novembro 18, 2024

Celeste Caeiro

 

17 de Novembro de 2024
Celeste Caeiro, a mulher que distribuiu cravos pelos soldados a 25 de Abril de 1974, faleceu a 16 de Novembro deste ano. O 25 de Abril, o povo que aderiu a esta ideia, a esta luta, vai construindo os seus anti-heróis, aqueles que sem quaisquer objectivos pessoais, deram simbólica, material e espiritualmente o que souberam oferecer de melhor. Os símbolos da Revolução aí ficam. Os cravos, que Mário-Henrique Leiria não gostou que entupissem os canos das G3, sobrepuseram-se numa outra poética, tal como a coragem de Salgueiro Maia frente a uma pistola encravada de um coronel fascista ou a corajosa recusa de José Alves Costa, soldado que, no alto do tanque, desobedeceu a uma ordem assassina.

Celeste Caeiro entra neste panteão popular e é isso que faz o 25 de Abril forte, que o torna inesquecível e eminentemente popular. Bem pode a direita ressabiada, vingativa e dissimulada - porque nunca aceitou a liberdade popular, nunca o declarando abertamente - tentar colocar o 25 de Novembro num pedestal de uma possível taça de barro cru, mas essa data nunca será grande o suficiente para abafar estes anti-heróis e heroínas que a historiografia popular vai construindo. Essa interessa tanto ou mais que as enormes manifestações populares que enchem as avenidas todos os anos. E são cada vez mais, para azar deles.

alc

sexta-feira, novembro 08, 2024

«Os Detalhes», Ia Genberg

 

D. Quixote, 2024. Tradução do sueco de João Reis. Segue o AO90.
Livro de 2022 de Ia Genberg, autora sueca em construção, divide-se em quatro capítulos, cada qual com uma personagem. Nem todas femininas. Não são propriamente «detalhes», nem os encarei como tal. Se por detalhes, encontramos o acaso e a necessidade, título de um livro importante de Jacques Monod que talvez venha a falar dele aqui, então estamos cientes que a vida é isso mesmo: um conjunto de pequenos detalhes que nem damos por isso, mas que imprimem uma linha irreparável no nosso percurso individual. Para o bem e para o mal e, sejamos justos, mais para o primeiro do que para o segundo, maniqueísmos à parte. Alegrias, esperanças, desilusões, relações inesquecíveis, equívocos, depressões, doenças, euforias, desejos avassaladores estão em toda a parte variando proporcionalmente na medida das escolhas e caminhos que percorremos. Poderia ser um livro-estucha, moralista, mas não é: Ia Genberg escreve muito bem, recusa a vulgaridade e isso é determinante para o entusiasmo com que se o lê. Tem momentos bons de leitura como estes:

«Eu e Johanna tínhamos na literatura a nossa brincadeira predileta. Apresentávamo-nos mutuamente autores, temas, épocas, regiões, obras individuais e livros antigos e contemporâneos de diferentes géneros. Tínhamos gostos semelhantes, mas opiniões divergentes o suficiente para tornar as nossas conversas interessantes. Não concordávamos em certas coisas (Oates, Bukowski), outras deixavam-nos a ambas indiferentes (Gordimer, fantasia), e partilhávamos alguns favoritos (Östergen, a trilogia Krilon, de Eyvind Johnson, Lessing). Conseguia perceber se a Johanna gostava ou não de um livro com base na velocidade com que o lia. Quando lia muito depressa (Kundera, todos os policiais), sabia que estava a aborrecer-se e a apressar a leitura, a fim de terminar o quanto antes, e quando lia muito devagar (O Tambor de Lata, de Grass, toda a ficção científica), sentia-se igualmente entediada, mas tinha de se esforçar para chegar à última página. Via como sua obrigação terminar todas as leituras, tal como terminava todos os seus cursos, trabalhos e projetos. Havia nela um sentido de obediência profundamente enraizado, uma espécie de respeito pela tarefa em mãos, por mais inútil que esta lhe parecesse.»

Um detalhe último com o qual, por acaso, me identifiquei totalmente. Também o faço. E quem não?

«Em novembro, costumamos comprar velas e ir ao cemitério, onde nos encontramos à entrada com Sally e os seus filhos (a campa do pai dela dista trezentos metros da da Brigitte [a mãe da autora], e, enquanto caminhamos entre lápides, os anos passam em nosso redor atrás de cortinas difusas. Para os mortos, a cronologia não tem qualquer importância, e só os detalhes interessam - o grau de densidade, estes como e o quê, e tudo o que tem que ver com o quem

alc

terça-feira, novembro 05, 2024

«Atos Humanos», Han Kang

 

D.Quixote, 2017. Tradução para o Inglês e Introdução de Deborah Smith. 
Tradução para português de Maria do Carmo Figueira
Estamos demasiado absorvidos pelo que se passará no regime monárquico da Coreia do Norte e do seu apetite termonuclear que esquecemos, muitas das vezes, que a Coreia do Sul teve um dos regimes mais sanguinários de extrema-direita que o mundo conheceu e durante dezenas de anos. Que, neste caso, Han Kang, a autora de «Atos Humanos», conheceu de perto. Só muito poucos dentre nós lembrar-se-ão das verdadeiras batalhas campais que pontificaram, nos anos 80 e início dos 90, nos campus universitários de Seul. A violência que então víamos pelas televisões (que mostravam o que queriam e somente dos correspondentes estrangeiros temporariamente lá sediados) era indescritível e a resistência não ficava inerme: lutava como podia, armada ou não, lutava sempre, respondia ferozmente às investidas da polícia de choque e dos militares. Estudantes de ambos os sexos de viseira, capacetes, óculos de mergulho contra os gases lacrimogéneos e contra os tiros reais ou de borracha. As imagens tornaram-se épicas. Os telhados das faculdades transformaram-se em castelos medievais de cujas ameias eram lançados coktail's molotov, pedras, garrafas, e cartazes enormes contra a ditadura que eram desfraldados com o peso de estudantes que se lançavam, em longos cabos, do alto dos prédios universitários. O que aconteceu no massacre de Gwangju, no sul da Coreia, a 300 km de Seul, foi outra coisa: já não eram só estudantes, como era Han Kang na altura, mas formou-se um âmago de solidariedade combativa com sindicalistas e operárias e operários, trabalhadores e funcionários que se armaram em milícias e responderam a tiro ao exército. Ainda hoje não se sabe ao certo o número de mortes que o exército fez, nem a dimensão da orgia de torturas e violações que então tiveram lugar. Foram muitos milhares. As milícias, embora armadas, hesitaram em usar as armas e foram alvo da sanha da ditadura sul-coreana que arrasaram a cidade, violando direitos humanos mais elementares. Como é apanágio da extrema-direita sempre apta a «atirar a matar».

O nome do seu primeiro ditador era Park Chung-Hee que governou a Coreia do Sul com mão-de-ferro, figura de retórica aplicada a um regime sanguinário e baseado no terror sobre a população. Nunca foi popular, mas os EUA deram-lhe a mão e conseguiu um «milagre económico» à custa, nós sabemos como!, de salários de miséria e de proibições ao nível dos direitos do trabalho, o que não impediu a continuidade de um trabalho sindical com tradições de luta que vinha desde os anos 10 e 20 do século XX. Ainda hoje os sindicatos são fortes na Coreia. Park não durou muito: o seu melhor amigo e braço-direito matou-o num golpe de estado e subiu ao poder. O seu nome: Chun Doohwan. Foi ele o responsável quer da repressão sobre os campus de Seul e do massacre vergonhoso de Gwangju que é narrado de forma magistral por Han Kang. 

Tenho para mim que quando, num futuro não muito longínquo, os historiadores estiverem à volta da avalanche informativa de factos para apurar a sua veracidade na internet e nos media, será a literatura a restituir-lhes a verdade possível. Aquela que seja mais verosímil encontrar-se-á nos livros, sejam os autores quem forem e de que lado combateram. É por isso que devemos ler este livro. Para que a memória perdure e a infâmia não caia no esquecimento. Han Kang também soube ouvir e construir os depoimentos possíveis, já que muitos dos participantes ainda se calam. 

«Descobri mais tarde que, nesse dia, tinham dado oitocentas mil munições aos soldados. Isso numa altura em que a cidade tinha quatrocentos mil habitantes. Ou seja, tinham posto à disposição deles os meios que permitiriam meter duas balas no corpo de cada pessoa. Estou firmemente convencido de que, se tivesse acontecido alguma coisa [uma resistência mais dura], os comandantes teriam dado ordem para as tropas no terreno fazerem exatamente isso. (...) Sempre que me lembro do sangue que corria pelas ruas nessa madrugada - corria, literalmente, descendo pelos degraus naquela escuridão de breu -, penso que aquelas mortes não foram apenas das pessoas que morreram naquele momento. Foram também a representação de muitas outras mortes. Muitos milhares de mortes, sangue de milhares de corações.» (pág.211)

«Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser eduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?» (pág.238)

Quem assistiu a isto tudo, numa Coreia esmagada, a ferro e fogo quando a repressão se tornava insuportável e que «Atos Humanos» nos arremete, duma forma literariamente tão linear e intimista, terá todo o direito, e talvez o dever, de nos questionar deste modo. Não sei se haverá resposta. Saramago, outro nobelizado, tinha e disse-a com clareza.

alc