quarta-feira, agosto 28, 2024

«O Passo da Floresta», de Ernst Jünger

 

BCF Editores, 2021. Tradução de Maria Filomena Molder. Capa de Ana Jotta. Não segue o AO90
Uma edição de 1995 da Cotovia, traduzida por Maria Filomena Molder, já tinha sido colocada nas livrarias. Pelo que entendi, esta é uma excelente nova versão. 
Não conheço suficientemente a obra de Ernst Jünger ao ponto de me alongar muito em qualquer tentativa de interpretar a sua filosofia como um todo. Fico-me por este livro, lembrando-me vagamente que desde há uns anos ter lido apressadamente «Eumeswil», editado pela Ulisseia em 1977 e «Chasses Subtiles», da Christian Bourgois, editado igualmente nesse mesmo ano. Não li ainda «Tempestades de Aço» sobre a sua experiência nas guerras. Ainda os mantenho, apesar das vicissitudes várias da vida dos livros que teimam em acompanhar-me. Sinceramente, nem sei explicar bem por que razão este autor vive comigo há tanto tempo, sendo ele um conservador assumido. Mas não é só por isso que o tenho e o leio de quando em vez, visto que é necessário conhecer o que pensam os conservadores de várias matizes e qual a acção concreta que os faz mover. Vamos a factos: o que me afasta dele é o militarismo e o nacionalismo latente nos seus escritos, mesmo que se esforce em recusar qualquer laivo racista. Sendo difícil esta posição assumida, não é de todo impossível de a concretizar. O que me leva a lê-lo é a sua iconoclastia: amante da natureza, de Nietzsche (do verdadeiro, do que entende que o Super-Homem é o escravizado e que a sua luta constante é o dia em que se libertará), do seu ateísmo e niilismo e, igualmente o facto de duvidar tanto da Humanidade, como da democracia burguesa que, a ser concretizada totalmente, levará inevitavelmente à ditadura baseada, contudo, em eleições. Sendo este livro escrito em 1951, não nos será muito difícil, hoje em dia, concordar com ele; infelizmente, temos conhecimento real do crescimento contínuo do aparecimento de democracias «iliberais» (eufemismo para o fascismo) pelo mundo fora. Afirma neste «O Passo da Floresta» que a um ditador não lhe convém um resultado eleitoral de 100% porque lhe retiraria toda e qualquer hipótese numa existência de oposição; assim, será avisado que se mantenha 2% de votos ou vontades que se oporão à sua governança, nem que sejam teleguiadas pelos estados. 98% seria o ideal, portanto! Essa percentagem residual manteria a possibilidade infinita de um exercício totalitário de sucesso. O que não impediria, simultaneamente, de um «desterrado», uma das «figuras» tratadas posteriormente por Jünger tal como a de «trabalhador», um opositor consciente, em accionar todo um tipo de momentos políticos que levassem ao desgaste do poder totalitário, votasse ou não, participasse ou não nas eleições «democráticas». Não é por acaso que hoje vemos a banalização do acto democrático por Estados que ou não seguem as suas próprias constituições e abastardam os resultados eleitorais ou cometem fraudes cada vez mais frequentes legitimadas por uma nova necessidade de um estado de excepção. Um Carl Schmitt assinaria por baixo, tal como este novo Leviatã protagonizado por Jünger. Exemplos não faltam nos dias que nos passam pelos nossos olhos: Trump, com o assalto ao Capitólio, Macron que não reconhece os ganhos da esquerda nas urnas, Putin, Maduro... De qualquer maneira, Ernst Jünger avisa-nos que o passo da floresta pode ser tanto a liberdade-refúgio para nós próprios como para o outro reconhecível e essencial para uma sociedade livre. Mas, para além desse ethos social, pode ser igualmente o nosso retiro antes da morte, um sentimento de alguma coisa já feita, realizada. Uma necessidade de partir, sem medo de tomar a liberdade em mãos. É um livro vagamente orientalista, mas com uma grande ânsia de liberdade que a Alemanha pouco lhe deu e que a Europa e o Ocidente não cumpriram de todo, restando somente a rebelião como última arma. A única racional, já que o Iluminismo falhou em todo o século XX que ele conheceu bem. Infelizmente, bem demais.

Ernst Jünger morre aos 102 anos, em 1998. Lutou na I Guerra Mundial (antes dela já lutava em África pela Legião Estrangeira, com apenas 15 anos, tendo sido resgatado pelo pai!) e foi ferido sete vezes, tendo recebido os acostumados louvores chauvinistas alemães. Pertenceu a unidades de choque que, pela calada da noite, atacavam as trincheiras inimigas e degolavam as sentinelas com as baionetas. O que não o impediu de amar os insectos, os animais e as plantas ao ser um entomologista, zoólogo e botânico de renome. Perante isto, só me resta desejar que nenhum filósofo tenha responsabilidades governamentais ou desenhe o destino de um país e de um povo! Era, igualmente, um pesquisador sensorial e um opiómano, embriagando-se e experimentando todas as drogas que lhe vinham às mãos, escrevendo num estado de êxtase, o que lhe vinha à cabeça. Muitos dos seus melhores livros estão aí para o provar. Militar exemplar para os cânones habituais das casernas, claro que nos anos 20 e 30, Hitler e os seus meninos de coro andaram-lhe a arrastar a asa, mas Jünger renegou sempre o nazismo, talvez pela sua origem aristocrata, e a partir de 1943 chega a ser vigiado pela Gestapo. O exército, que ele tanto amou, mata-lhe um filho em Itália, obrigando-o a uma missão suicida num batalhão disciplinar e, claramente, por motivos políticos. Deixo-vos com um trecho deste «O Passo da Floresta» sobre a liberdade:

«O verdadeiro problema reside, antes, no facto de uma grande maioria 'não' querer a liberdade, no facto de até ter medo dela. É preciso 'ser' livre, para chegar a ser livre, porque liberdade é existência - é, sobretudo, o sentimento harmónico da existência e o prazer, sentido como destino, em a realizar. É, então, que o ser humano é livre, e o mundo cheio de coacção e de meios de coacção tem de servir, daqui em diante, para tornar visível a liberdade em todo o seu esplendor, do mesmo modo que as massas da pedra primitiva, pela pressão que exercem, fazem germinar cristais.
A nova liberdade é velha, é liberdade absoluta na roupagem da época; pois, conduzir uma vez mais, apesar de todas as astúcias do espírito do tempo, ao triunfo da liberdade: eis o sentido do mundo histórico.» (pág.119)

«O Passo da Floresta» deve ler-se com os olhos de hoje; não perderão nada porque a sua actualidade é impossível de esconder. Pelo medo que as grandes massas mostram ter por essa liberdade posta em causa cada vez mais por pequenos führers que se vão apresentando aqui e ali nas ruínas de uma sociedade verdadeiramente doente em que a guerra permanente, a anomia, a violência destrutiva e a ignorância surgem como um vórtice que nos arrasta para um fim anunciado. Ler Jünger talvez nos aplaque a vontade de mergulhar nesse vórtice. 

alc