Amélie Nothomb. (1966). Foto da editora Anagrama
Completamente desconcertante e de uma ironia ímpar, esta escritora belga a viver em Kobe, no Japão onde nasceu, é igualmente prolixa. Quase um livro por ano, desde 1990. Li agora este «Stupeur e Tremblements» guardado há muito na estante, porque entretanto me debrucei sobre outros dela. Tenho-a seguido regularmente e a sua escrita prova que a sua qualidade literária não é incompatível com o riso. Devo dizer-vos, contudo, que o li em francês. Desconhecia que tivesse tradução portuguesa mas, sim, tinha: foi a Asa que lhe deu o título «Temor e Tremor» com a informação adicional que está esgotado; também no Brasil foi publicado, pela Record como «Medo e Submissão». Já o filme de Alain Corneau, em 2016, apresentou o título de «Medo e Tremor»! Visto isto, espero que quem me leia me perdoe eu ter optado pela edição francesa, duvidando mesmo que alguma vez conseguisse a sua edição esgotada na língua nossa. Acresce que Amélie Nothomb, no próprio livro, expõe a razão do título: é que o «stupeur e tremblements» faria parte do protocolo aos visitantes físicos do imperador japonês. Era deste modo, humilhante e vexatório, que se obrigavam os nipónicos a curvarem-se sob a presença imperial. Por isso, não entendo por que razão não se escolheu o título tão português de «Estupor e Tremor». Bastava o dicionário e a própria ironia das palavras e os subentendidos que provocavam.
A narrativa é delirante. Amélie Nothomb, como já se disse, conhece bem o Japão, tendo nascido em Tóquio e vivendo neste momento em Kobe. Sendo belga não deixa por isso de olhar para o Japão com os olhos tão críticos, como legítimos, para a vida no país do Sol Nascente. Seja ela a vida «pessoal», individual de cada japonês ou japonesa, e aqui a condição feminina não é ignorada, como a empresarial - chega a dizer que a existência dos japoneses é vivida para a ideia de empresa - que é descrita de modo magistral por Amélie Nothomb quando trabalhou sete meses na multinacional Yunimoto. Amélie-san é uma subordinada que não tem ninguém para mandar. Acima dela há toda uma hierarquia de autoridade cuja acção é tão completamente kafkiana, como verosímil. “O Sr. Haneda era o superior do Sr. Omochi, que era o superior do Sr. Saito, que era o superior da Srta. Mori, que era minha superiora. E eu não era superior de ninguém.” Conhecendo nós como trabalham as multinacionais, sejam elas japonesas ou não, temos a certeza que tudo aquilo que lemos, com um sorriso nos lábios ou mesmo com riso desbragado, é replicado por todas as pequeninas empresas, imitando os grandes Ceo's e ajustando o que aprenderam nas praxes universitárias para com os colaboradores subordinados, porque isso de trabalhadores já nada tem a ver com as novas e perecíveis startups.
Se puderem não percam este livro, ou filme, ou ainda na versão esgotada do português de cá (cuidado com o olx e com o marketplace, optem sempre pelos alfarrabistas) ou do outro lado do Atlântico (tendo atenção ao valor dos reais e às taxas de encomendas).
Albin Michel, Livre de Poche, 1999
alc