terça-feira, julho 23, 2024

«Tudo Passa», Vassili Grossman

 

D. Quixote, 2013. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
«Vassili Grossman é o Tolstói da URSS.» Quem o afirma é Martins Amis e logo a editora coloca na capa a frase bombástica, junto com a informação sempre oportuna que este é o autor de «Vida e Destino», uma obra inesquecível sobre a guerra de 1941 a 45 na então União Soviética e focada essencialmente no cerco a Estalinegrado pelas tropas alemãs. Li ambos os livros e fiquei-me por aqui quanto à obra deste autor. Talvez um dia volte a Grossman porque é uma referência importante e foi um repórter como possivelmente hoje não há, um jornalista que deve ser ainda um exemplo para milhares de repórteres de guerra que, infelizmente, estão em teatros de uma violência atroz sobre seres humanos. Pior é quando essa violência sem nome recai sobre civis sejam eles homens, velhos, mulheres e crianças. Vimos todos os dias pelas nossas casas dentro imagens dessas, repetidas sem fim. É evidente que Grossman não é o Tolstói da URSS, coisa nenhuma. Martin Amis e a editora quiseram assim nomeá-lo, mas estou em crer que das duas, três: ou Amis quis ironizar a obra de Grossman o que é mau, não o merecia, ou quis apoucar politicamente o estado soviético, o que é lá com ele, ou não sendo nenhuma destas hipóteses, não estava bem em si quando a proferiu e nunca leu Guerra e Paz.

Durante a leitura de «Tudo Passa» nota-se uma tentativa de romancear, através da personagem de Ivan Grigórievitch, uma situação que o escritor nunca experimentou: a de prisioneiro político do estado soviético, através das purgas de Estaline, principalmente a partir de 1953, data da morte deste e da tentativa de reabilitação de milhares de presos encarcerados durante dezenas de anos injustamente, alguns sem culpa formada e sob regimes duríssimos a nível correccional. O tema é esse. No entanto, convém dizer que Vassili Grossman nunca esteve preso, tendo sido o repórter oficial durante a II Guerra do jornal Estrela Vermelha órgão oficial do Exército Vermelho e segundo se pode constatar em «Vida e Destino» (proibido pelo KGB, em 1956) de uma coragem excepcional. Viu coisas, descritas nesse livro, que nenhum homem deveria ter visto. Ora, o exercício de Grossman em «Tudo Passa» sai infelizmente gorado, segundo a minha opinião: não está em causa a denúncia dos crimes de Estaline. Estão lá todos e inclusive a descrição minuciosa de como se faziam as denúncias, as causas de muitas dessas mesmas confissões, as gerações de comunistas, de operários  eliminados igualmente na guerra civil de 1918-20 (talvez os mais esclarecidos e que muita falta farão ao futuro governo soviético e sovietes), de social-democratas, socialistas-revolucionários, mencheviques, anarquistas e populistas de esquerda que perderam a vida. Segundo o autor, a partir de 1924, ano da morte de Lenine, e principalmente a partir de finais dos anos 20, as purgas iniciaram-se e logo em 1931 com o caso dos «médicos assassinos» atribuídos a judeus acusados de ligações aos EUA e aos imperialistas europeus, segundo as acusações. Também a morte de Kirov foi um argumento que levou à existência de um clima de perseguição aos «conspiradores» por todo o lado. Estaline vê assim, e a partir daqui, o caminho a abrir-se para a sua estratégia pessoal. Bastava para ele «arrumar» convenientemente todos os que estiveram na guerra civil entre o Exército Vermelho, liderado por Trotsky e os que, com algumas nuances, ainda eram fiéis à ideia do comunismo internacionalista, e os Brancos de Deníkin, Koltchak ou Wrangel. Quase todo o comité central bolchevique pereceu, então, às mãos de juízes alinhados com Estaline nos processos de Moscovo a partir de 1935: Bukarine, Zinoviev, Khamenev, Radek, etc...,etc..., até ao assassinato, pela GPU, de Lev Trotsky, em 1936, no México.

Onde falha então Vassili Grossman? Não é com a denúncia dos crimes de Estaline. Isso foi feito, e até descrito, num relatório «secreto» ao XX Congresso do Pcus em 1956 e até por Trotsky na sua «Revolução Traída». O que se nota em Vassili Grossman é um amargor que se sente a cada palavra escrita, em que usa e abusa do termo «liberdade» sem que lhe dê um conceito claro. Para ele, Lenine é tão culpado como Estaline e aqui comete um erro que é visível ainda nos dias de hoje e perpetrado por historiadores de extrema-direita, direita conservadora e liberais: o de confundir deliberadamente factores subjectivos com dados objectivos da História. Escrever que, pessoalmente, Lenine era uma pessoa (que se mostrava bondosa e aberta a todas as opiniões) e politicamente um verdugo do pior, estendendo a estrutura do Estado para as diatribes de Estaline é um risco que retira alguma seriedade quer às causas objectivas da revolução russa, quer a qualquer análise séria sobre a edificação do estado soviético e a resistência contra a burocracia nascente que levou ao afastamento posterior quer dos camponeses, quer de largos estratos dos operários urbanos. Nota-se igualmente o horror da descrição das fomes dos camponeses na altura da colectivização dos campos por Estaline e pela nomenklatura nascente a que Vassili Grossman assistiu e há paginas que ultrapassam em muito a nossa imaginação mais escura sobre a humanidade e a possibilidade de a regenerar de todo, tarefa que, hoje, nos parece cada vez mais difícil. Mas, nem uma palavra para os êxitos relativos da NEP que Lenine apoiou e que Bukarine e Kamenev tentaram, sem êxito, seguir. Por outro lado, Grossman tem outro ponto fraco entrando por caminhos que pertencerão à psicologia e que pouco lugar terão na política, muito menos a filigrana em que assentou as variadas correntes comunistas enquanto puderam existir: Estaline era um asiático rude, brutal, dissimulado, enquanto Lenine, um estudante urbano, com laivos e conhecimento do pensamento europeu, bem-educado, mas seguindo a regra terrível de Hegel, «o objectivo não é nada, o movimento real é tudo!»

O livro apresenta estas fragilidades, é certo, mas não deixa de nos inquietar sobre a edificação de um estado totalitário que Arendt, mais tarde, veio a analisar com mais recursos.

Uma palavra para a tradução de Nina e Filipe Guerra: tudo muito bem, mas 86 notas de rodapé em 240 páginas? Algumas dessas notas dão-nos demasiados adjectivos e opiniões pessoais que os leitores dispensarão num tradutor: por exemplo, que a «Proletkult», um movimento claramente futurista dos anos 20, em que pontificaram dos melhores poetas e pintores russos, prejudicou a cultura na URSS, é para esquecer, não é?

alc

sexta-feira, julho 19, 2024

«Limpa», de Alia Trabucco Zerán

Alia Trabucco Zerán
Elsinore, 2023. Tradução de Isabel Pettermann
Já aqui falámos da jovem chilena Alia Trabucco Zerán quando lemos «A Subtração» e a força da sua narrativa. Arriscou-se bastante com este seu «Limpa». Começa por invectivar o/a leitor/a directamente, iniciando um diálogo aparentemente próximo com ele/a. Digo «aparentemente» porque esse diálogo em literatura é uma impossibilidade natural, como sabemos. Quem lê, não tem hipótese de dialogar o que quer que seja e muito menos com a autora. A literatura não é, nem poderá ser nunca, um diálogo. Era o que faltava tornar-se igualmente uma rede social. Mas não é só por causa dessa impossibilidade que se converte num monólogo por vezes arrepiante de Alia Trabucco Zerán para com quem lê «Limpa» e dirigido a nós. Há um desprezo calculado quando nos invectiva, como que a convidar-nos para que nos coloquemos no lugar dela, uma empregada subalterna numa casa da classe média de Santiago do Chile para onde Estela, a personagem principal, migra para abandonar a sua aldeia no sul pobre. Mas há outra inquietação neste livro e que constitui o segundo risco da autora: começa a narrativa com uma morte de uma criança que está sob sua protecção. Ou seja, sabemos desde início o que se vai passar através de uma narrativa curta, semeada de tensão e disrupções várias numa casa onde Estela serve durante sete longos anos. O sabermos de antemão a morte da criança não impede o crescendo de violência dentro dos limites da casa e o nosso interesse cada vez maior pela história que nos traz Alia T. Zerán. A escritora ganhou estes dois desafios e não é por acaso que a narrativa termina numa espécie de caos por que passou todo o Chile em 2021, como que a libertar-se da tensão havida durante anos e anos de liberalismo selvagem e de submissão dos mais fracos. Estela apaga-se numa dessas múltiplas revoltas de rua quando pretende voltar ao seu sul. 

Levanto um pouco o véu dando a palavra à personagem principal:
«As coisas, naquela altura, começaram a falar por mim. Não havia em cima nem em baixo. Antes nem depois. Sem palavras, o tempo fica sem começo, percebem? E é quase impossível contar o que não tem um começo. A água a ferver foi o meu relógio, o fogo foi fogo sem ter um nome e o pó continuou a delinear o contorno das coisas.
Não, não. Assim não me vão perceber. Tenho de tentar de outra forma.
Quantos mais dias passavam, mais o silêncio se afundava na minha garganta e mais palavras endureciam. Enchi-me de pensamentos e de perguntas novas. Se, por exemplo, as coisas se transformariam ao perderem os seus nomes, tal como se transformam quando os ganham. Dizer patroa, dona, dizer chefe, proprietária. Dizer empregada, babá, serviçal, criada. Ou não dizer, sabem? Isso, sem dúvida transforma as coisas.(...)» (pág.252)

alc

quinta-feira, julho 18, 2024

«Révolution», Enzo Traverso

 

La Découverte, 2022. Edição francesa. Traduzida do inglês por Damien Tissot.
Capa de Ferdinand Cazalis
Numa época de triste recuo histórico das esquerdas mundiais, nunca é demais um exercício de memória sobre as revoluções passadas. Não se pense, contudo, que este livro se baseia numa melancolia revolucionária de quem pensa que a revolução é letra morta, que numa sociedade de capitalismo de vigilância e nas tecnologias avançadas, as experiências insurreccionais (sejam elas revoltas ou motins e revoluções) estarão necessariamente votadas ao fracasso. É exactamente o contrário. Ler este livro é uma lufada de esperança para quem acredita que a vida, a verdadeira vida, residirá numa saída única da catástrofe anunciada a que o sistema de exploração sistemática dos recursos do planeta e do trabalho alienado humano nos votou. Ler este livro de Enzo Traverso é tão-só analisar, pelas suas 450 páginas que se lêem num ápice de entusiasmo, as grandes derrotas históricas, as vitórias «dos assaltos aos céus», o «tempo das cerejas» ou dos «enragés» e sans-culottes que só exigiam governar-se a si próprios. É revisitar a vitória libertária de 1917, também sob o prisma tanto dos derrotados de Cronstadt como, ironicamente, a de Trostsky. É conhecer melhor Marx e Engels, Blanqui e Fourier, Bakunine e Proudhon, Walter Benjamim, Fanon e Constant, Lenine, Estaline e Mao e tantos outros; foi com muita atenção que o historiador referiu a grande massa de revolucionários anónimos e que pereceram numa aura de heroísmo e de «santidade» nas barricadas de 1830 e 1848, já em desuso e criticadas em 1871, mas nem por isso menos simbólicas no Maio de 68 francês, na Alemanha e Hungria de 19 ou na Espanha em 1936. Ou revisitarmos igualmente os vitoriosos de Sierra Maestra, o Vietname, o Laos e o Camboja, a China da grande marcha ou Tiananmen de 90. O século XX foi farto em dar-nos essas experiências, muitas delas afundadas em sangue e em experiências que melhor fora não terem tido lugar. O que não retira uma vírgula, à vontade de mudança radical que é aposta numa revolução e à sua carga utópica. 
Por isso há uma impossibilidade clara de haver um compromisso entre revolução e contra-revolução seja ela legitimista, conservadora ou fascista. Esses perigosos compromissos dar-se-ão, como demonstra Enzo Traverso, na social-democracia e no socialismo democrático. Mesmo que, entre as duas guerras, se tentasse fazer essa síntese, foram todas votadas ou ao esquecimento, muitas delas junto com esses autores, ou ao fracasso. Essa força, a força revolucionária, nada tinha a ver com a autoridade legitimada das classes subalternas no poder, e a vontade ilegítima (porque pessoal) de um qualquer duce ou führer. A revolução, as revoluções, são sempre a consequência de causas de injustiças e de exploração insuportáveis para os seres humanos. Que elas sejam mais ou menos violentas ou que as instituições mudem de mãos sem um único tiro (lá vem o caso português de 74 e a Checoslováquia de 89!) as revoluções mostram sempre as suas particularidades e igualmente as suas idiossincrasias. Criticadas e temidas por muitos, até por aqueles que delas beneficiariam, retiram-lhes quase sempre as suas causalidades e as conjunturas históricas em que explodem. 

Vejamos ao que vem Enzo Traverso logo no início do livro na página 25: 

«O objecto deste livro é a revolução, para o melhor e para o pior. Ele não opera nenhuma selecção entre as boas e as más revoluções, distinção tão difícil quanto estéril visto que as revoluções não pedem para serem idealizadas ou diabolizadas: elas são experiências vivas que se transformam em permanência e cuja dinâmica é imprevisível. Mais do que um julgamento moral, uma idealização ingénua ou uma condenação intransigente, merecem uma compreensão crítica. É ainda a melhor maneira de compreender o seu significado histórico e transmitir a sua herança. Numa passagem célebre, Marx escreveu que as revoluções modernas ''não retiram a sua poesia do passado'', enquanto que Benjamin vê o seu motor escondido num desejo de redenção dos vencidos que não é mais do que ''o compromisso tácito entre as gerações passadas e a nossa''. É muito provável que as revoluções oscilem entre estas duas temporalidades: elas salvam o passado inventando o futuro, mas podem incluir os dois.»

Mais à frente:

«Contrariamente à maior parte dos trabalhos sobre as revoluções, este ensaio não consagra um capítulo específico à questão controversa da violência. Há várias razões para esta ausência, que não resulta de maneira nenhuma de uma estratégia de fuga. A mais importante prende-se com o facto de a violência revolucionária atravessar esta obra, de maneira explícita ou subterrânea, duma ponta à outra. Com algumas excepções as revoluções são erupções, pontos de viragem traumáticos. A violência pertence à sua estrutura ontológica. As revoluções pacíficas são excepções, não a regra e, em muitos casos, elas não não mais do que arautos de explosões do futuro. Em 1974, a «revolução dos cravos» em Portugal foi pacífica porque foi desencadeada por uma parte do próprio exército e se, quinze anos mais tarde, as «revoluções de veludo» na Europa central se desenvolveram sem efusão de sangue, é porque as forças repressivas foram provavelmente neutralizadas na URSS. (...) 
A segunda razão pela qual esta obra não conta com um capítulo sobre a violência é mais especificamente historiográfica. Os historiadores conservadores escrevem à maneira de promotores, que estigmatizam as revoluções não como uma, mas mais especificamente, a fonte do totalitarismo moderno. Eles repartem-se em geral em duas categorias: de um lado os apologistas astutos do fascismo, do outro, os pregadores de uma sabedoria política solidamente amarrada aos postulados do liberalismo clássico. (...)» 

«Assim, esta obra junta fragmentos intelectuais e materiais dum passado revolucionário impulsivo e bastante esquecido, com o fim de re-articular uma composição com sentido, elaborada por imagens dialécticas: locomotivas, corpos, estátuas, colunas, barricadas, bandeiras, sítios, pinturas, pósteres, datas, ruas singulares, etc. De uma certa maneira, os conceitos, eles próprios, são tratados como imagens dialécticas, na medida em que emergem nos seus contextos próprios, como as cristalizações intelectuais de necessidades políticas e do consciente (ou do inconsciente) colectivo. (pág.31).

Um livro que devemos ter sempre em conta e nunca desfazê-lo num alfarrabista, até pelas imprevisibilidades várias que podem vir a existir no futuro. Sabe-se lá.

alc

sexta-feira, julho 12, 2024

«A Subtração», de Alia Trabucco Zerán

Elsinore, 2024. Tradução de Isabel Pettermann
O Chile está cheio de fantasmas. Desde o 11 de Setembro de 1973, este país acompanha-me num exemplo demasiado tangível sobre o horror do fascismo e do que é capaz como regime em grau de eliminação em massa de homens e mulheres que, de alguma maneira, pretendiam uma sociedade mais justa. Foi o que aconteceu com o golpe de Pinochet e da Junta Militar que o conservou no poder durante perto de 15 anos. Vi, antes e depois do 25 de Abril de 1974, muitos refugiados a chegarem cá, desenraizados, alguns com uma tristeza irrecuperável que lhes levou literalmente a vida. No próprio dia da nossa libertação do fascismo salazarista e marcelista a experiência do golpe chileno sobressaltou-nos logo de manhã, porque não queríamos acreditar que era um golpe para repor a democracia e acabar com a guerra colonial. Ainda por cima, os capacetes dos soldados portugueses nos camiões que subiam a Lourenço de Azevedo, ao lado da Sereia, eram incrivelmente parecidos com os dos soldados chilenos. Ainda me lembro como, cautos e algo apreensivos, escondemos os comunicados de mobilização estudantil para o 1º de Maio, no jardim, sob uns arbustos. O nome de Kaúlza surgia-nos até percebermos o alcance libertador naquela mesma manhã. O Chile teve a ver com isso, digo-o sem grandes problemas em errar.

Ora, este livro traz-nos duas grandes novidades do Chile contemporâneo: Alia Trabucco Zerán, nascida em 1983, uma escritora de uma nova geração, essa que nasceu de pais perseguidos, torturados, presos sem culpa, desaparecidos e mortos em valas comuns e que não esquece 1973. Para que os assassinos não se sintam totalmente incólumes dos seus crimes, as gerações seguintes farão, como prova este livro, as resenhas necessárias para que o mundo não os esqueça. E aos seus cúmplices também, visto que a libertação de 1988, referida no livro, não os levou definitivamente a tribunal e Pinochet morreu na cama; a outra novidade é a qualidade literária de «A Subtração» (infelizmente temos o AO90 a chatear um bocadinho) que é uma verdadeira surpresa na escrita de Alia Trabucco Zerán. 

O título do livro é mesmo um processo de subtracção. De mortos, principalmente. De inumações e exumações, como se refere à de Neruda. Nem os mortos ainda têm descanso no Chile de hoje. Sucedem-se as valas comuns, as descrições dos verdugos que torturaram desaparecidos, a procura dos pais que ainda restam e têm forças para identificar as valas comuns onde poderão estar os seus filhos e filhas; também os hangares do aeroporto de Santiago cheio de caixões ainda não reivindicados (haverá alguém, ainda?) de exilados que preferiram deixar, nos seus países de acolhimento, uma última vontade de serem enterrados ou cremados no Chile. E sobre a cremação, ou a falta dela, em toda a narrativa cai uma chuva fininha de cinza, oriunda de um vulcão da cordilheira que nos faz aproximar ainda mais de uma realidade obscura e pesada, sufocante que hoje se vive naquele país com memória viva: 

«... é melhor ter mortos obedientes, preparados para atravessar em fila indiana a cordilheira e para que eu [Iquela, a personagem principal] os subtraia às mãos cheias; menos três, menos seis, menos nove mortos que tenho de subtrair e depois contar separadamente cada um dos seus ossos, sim, embora para mim tantos ossos sejam uma confusão. Incomoda-me a quantidade de mortos de Lisboa e da Catalunha, de Leninegrado ou Estalinegrado, porque no pretérito imperfeito viajaram para o Chile  e não chegaram, não chegaram, por isso tenho de me acalmar e respirar fundo, inspirar e reter o cheiro e a calma, embalsamar a calma com formol e só depois atravessar a cordilheira, atravessá-la e trazer comigo a própria morte...» (pág.306 em ebook de 345)

Não termino esta ficha sem dar-vos a conhecer um dos melhores momentos que este livro nos deu na percepção do que são os efeitos do LSD com uma particularidade: é Paloma, uma alemã filha de uma exilada chilena que morreu com um cancro, e de pai alemão, que «subtraiu» essa droga na clínica onde aquela faleceu. A metáfora é essa: para esquecer a morte, recorre-se à parafernália de alívio da dor através de substâncias alucinogénias (que também eram usadas pelos torturadores sobre as vítimas antes de as lançarem ao mar de helicóptero). Nem Burroughs ou a literatura beat (daquela que conheço) nos dá essa sensação de verosimilhança que esse capítulo nos empresta. Sobre as características psicológicas das personagens não acrescentarei muito. Só direi que elas são completamente livres. É a vingança máxima deste livro.

alc

sexta-feira, julho 05, 2024

Jornal Mapa 42 nas ruas!

A solidariedade que se possa impor ao racismo interessa-nos mais do que o dó ou a caridade. E disso damos conta numa grande reportagem feita com migrantes que estão há mais de um mês acampados nos Anjos, em Lisboa, pessoas que conseguiram passar pelos poros das cada vez mais violentas fronteiras externas da UE. As lutas pelo território continuam também a interessar-nos mais do que as eleitorais e, mesmo saídos dum desses exercícios, decidimos lançar um olhar à «voragem energética» que a nova vaga industrial trouxe para Sines e também para as ocupações, despejos, resistências que se dão em tecido mais urbano.

Tudo como cama para um composto que possa ajudar a criar uma vida de outro modo, como nos lembra Carmen Staats. Uma vida que, para ser atingida, necessita de lutas ecológicas pensadas também a partir dos Soulèvements de la Terre, um movimento nascido em 2021 numa assembleia da ZAD de Notre-Dame-des-Landes (França) na qual participaram duzentas pessoas de diferentes coletivos de agricultores, ambientalistas, sindicais e autónomos. Interessa-nos ainda relembrar o Unabomber mais do que o Manuel Fernandes, ou Varela Gomes mais do que o Camões, e apoiar o esforço financeiro da Disgraça mais do que o do crescimento orçamental para a defesa.

Jorge Valadas, continua a iluminar-nos com o seu luar que, desta vez, nos deixa ver uma América onde «o sonho» se desfez e onde a pobreza branca também se generaliza. A série «25 de Abril – outros 50 anos» continua neste número, permitindo um olhar para essa espécie de turismo revolucionário que foi a vinda de muita gente de fora do país para participar na revolução, nas palavras de Joëlle Ghazarian.

Tudo isto e ainda outras notícias, crónicas, entrevistas, poesia, literatura, ilustração e BD, no número 42 do Jornal MAPA, que podes adquirir em qualquer dos pontos habituais de venda ou, melhor ainda, assinar, ajudando assim à continuação sustentada deste projeto voluntário de informação crítica.

quarta-feira, julho 03, 2024

«Novo Iluminismo Radical», Marina Garcés

 

Orfeu Negro, Out. 2023, Tradução de Helena Pitta
Conheci brevemente a filósofa catalã Marina Garcés em 2010 quando acompanhou Santiago López-Petit nas II Derivas de Maio que a editora organizou sob o tema «Com uma Faca nos Dentes: Educação, Revolução, Realidade». Aí, Santiago López-Petit apresentou o seu livro «A Mobilização Global, seguido de O Estado-Guerra», com tradução e prefácio de Rui Pereira, que a Deriva publicou. Ambos pertenciam ao grupo de pensamento «Espai en Blanc» sediado em Barcelona. O Ípsilon, do Público, entrevistou-a há umas semanas devido à publicação deste livrinho pela Orfeu Negro. Não cheguei a ler. De qualquer modo, as intervenções que Marina Garcés protagonizou no espaço do então Esmae do Porto, onde decorreram as II Derivas de Maio já apontavam para claras alternativas ao capitalismo e à (sobre)vida.

Seja como for, «Novo Iluminismo Radical» é composto por intervenções em conferências que, penso, foram obviamente reescritas pela autora na edição deste livro, de modo a ajustá-las à expressão escrita. Num mundo como o que observamos e sentimos na pele, hoje, Marina Garcés arrisca-se a ter razão na descrição e nas metástases que o corroem. Como diz Marx, que ela cita também, descrever o mundo todos os filósofos o fazem, transformá-lo é do que necessitamos. E quando falo em «razão» o termo foi usado propositadamente, como que a dizer ao que vem. Voltar a Kant? Nem tanto assim, mas voltar talvez ao Kant crítico de Kant, ao Hegel crítico de Hegel, ao Voltaire e a Rousseau, críticos igualmente deles próprios. A receita, não sendo nova e não constituindo qualquer novidade em si, contém um conceito entretanto perdido nas sociedades pós-pós-modernas, a que Garcés chama de «condição póstuma», em que o passado (defendido pelos saudosistas e retrotopistas que Baumann já tinha identificado) e o futuro são uma e a mesma coisa. Interessante é referir-se a Chernobyl como marca deste presente através da nobelizada Alexandra Alieksevitch quando afirma que as imagens daquela catástrofe não indicam claramente se é o passado ou o futuro. 

Sabemos igualmente que a crítica ao Iluminismo já foi elaborada pela esquerda nomeadamente desde 1949, com Adorno e Horkheimer, ou Braudillard, Agamben e outros, mas Marina Garcés propõe-nos ir mais longe, partindo do princípio que é possível um outro mundo que falhou todas as utopias a que se propôs levar a cabo, como, e cito, o anarquismo, o socialismo e o comunismo. O que ela vê de interessante e revolucionário é a luta pela vida digna, por um decolonialismo horizontal e universal, a crítica do homem branco, imperialista e colonialista, racista e eurocêntrico, ocidentalizado, patriarcal. Afirma mesmo que os verdadeiros revolucionários, nestes tempos sombrios e violentos, são os que salvam vidas no Mediterrâneo ou em Gaza, ou onde há guerras, valorizando a Vida que entretanto se volatilizou na educação e na formação dos homens actuais. Diz ela no seu Preâmbulo:

«O mundo contemporâneo é radicalmente anti-iluminista. Se, em 1784, Kant anunciava que as sociedades europeias de então eram tempos iluministas, hoje podemos dizer que estamos, em todo o planeta, em tempos de anti-iluminismo. Ele usava o termo com um sentido dinâmico: o iluminismo não era um estado, era uma tarefa. Nós também: o anti-iluminismo não é um estado, é uma guerra.
As faces desta guerra anti-iluminista são muitos e multiplicam-se todos os dias. No domínio político, cresce uma apetência autoritária que faz do despotismo e da violência uma nova força mobilizadora. Podemos chamar-lhe populismo, mas esse é um termo confuso. Do que se trata é de um novo autoritarismo que permeia toda a sociedade. No plano cultural triunfam as identidades defensivas e ofensivas. A cristandade branca e ocidental refugia-se nos seus valores, ao mesmo tempo que se desencadeia uma revolta antiocidental em muitas partes do mundo, mesmo por parte do pensamento crítico ocidental, que rejeita a sua própria genealogia.(...)»

Partindo da premissa que hoje é o tempo onde tudo se acaba, tudo morreu ou está em vias de morrer literalmente, a nossa espécie e um planeta feito à nossa medida, Marina Garcés descreve onde se encontram esses perigos e aponta como o alfa e o ómega da morte programada o capitalismo, o pós-humanismo que lhe está associado e a inteligência «delegada», num mundo cada vez mais ignorante e estupidamente indiferente, o que é distinto do conceito socrático do «não-saber» como forma inicial de atingir a «emancipação pelo saber». Baseada em Agamben e Antonio Negri afirma:

«Actualmente, a biopolítica está a mostrar o seu rosto necropolítico: na gestão da vida, a produção de morte já não é vista como um défice ou excepção, mas como normalidade. Terrorismo, populações deslocadas, refugiados, feminicídios, execuções massivas, suicídios, fomes ambientais... a morte não natural não é residual ou excepcional, não interrompe a ordem política; colocou-se no centro da normalidade e capitalista e das suas guerras não declaradas.(...)» 

A descrição de Marina Garcés, até agora, não constitui novidade por aí além na crise do planeta e do capitalismo global que lhe é inerente. O mais interessante do livro são as suas Cinco Hipóteses no ponto 3, «Humanidades em Transição». Fiquemos pela Hipótese 1 de ultrapassagem do capitalismo por essa humanidade em transição e isto no campo da educação e do projecto educativo actualmente em curso por todo o mundo:

«O projecto educativo que o capitalismo actual desenvolve situa-se nesta moldura epistemológica. A escola do futuro já começou a construir-se e não está a ser pensada pelos estados ou pelas comunidades, mas pelas grandes empresas de comunicação e pelos bancos. Não tem paredes nem muros mas plataformas online e professores durante vinte e quatro horas. Não será necessário ser-lhe excludente, porque será individualizadora de talentos e de percursos de vida e de aprendizagem. Praticará a universalidade sem igualdade: uma ideia na qual temos de começar a pensar, porque há-de ser, se não o é já, a condição educativa do nosso tempo.(...)» 

E assim por diante passando os olhos pelas outras quatro hipóteses finais de suposta transformação da humanidade «em transição». Não tenho o direito de discordar inteiramente de Marina Garcés, mas tenho-o em ser menos optimista que ela. Custa-me acreditar numa exaustão universal contra o(s) Estado(s) e na criação de bolsas autónomas e libertas da escravatura do trabalho cada vez menos pago e trabalhadores em depressão que, para fugir dela, criam contra-alienações. A História prova-nos que é numa situação de escravidão com um bem-estar pouco digno, é certo, mas ainda assim bem-estar, que não há oportunidade de revolta e muito menos de hipóteses revolucionárias que Marina não aborda, assim como só muito superficialmente toca na questão da produção alienada e do lucro e valor. É que isso tem tudo a ver com as hipóteses futuras de uma insurreição mundial, mesmo que a vejamos muito longínqua e os gérmenes tenham aparecido e desaparecido muito depressa. Mas que existem, existem. Por agora, resistiremos ao neofascismo mundial vindouro, esse sim, igualmente e violentamente anti-iluminista como o foi contra a modernidade do século XX, o que retira, por recuada, qualquer hipótese de luta insurrecional, mesmo que seja para nos salvarmos como espécie. 

Mas a Orfeu Negro tem razão quando apresenta esta colecção onde se insere este livrinho: «Microleituras - Efeito prolongado».

alc

segunda-feira, julho 01, 2024

«O Caderno Proibido», Alba de Céspedes

 

Alfaguara, Maio de 2024, Tradução de Ana Cláudia Santos

Livro datado de 1952 e um dos mais importantes de Alba de Céspedes, pelo que li sobre ela. Antifascista, conheceu as prisões de Mussolini e foi fundadora da revista Mercurio. A autora opta por uma epistolografia imaginada em torno de um diário escrito em sobressalto e cuja personagem, Valeria, esconde da família. Um género que se vai perdendo com o tempo, mas que acolhe sempre uma grande intimidade, cumplicidade com o leitor e lança a denúncia de um quotidiano do que julgamos ser uma simples dona de casa romana, na Itália do pós-guerra. Não é só um quotidiano marcado pelo tratamento dos outros, da casa, isso seria muito pouco; a verdadeira perturbação deste livro vem da emergência do desejo de alguém que é sistematicamente secundarizado c obrigado a marcar o ponto das obrigações de uma família pequeno-burguesa em que Valeria é tratada de «mãe» pelo marido, como para sublinhar a sua condição reprodutora, e ostracizada pelos filhos adolescentes que a observam como uma «velha» de 43 anos, salva de qualquer arrobo amoroso ou de fuga daquela vida de cansaço que é, paradoxalmente, a sua libertação:
 «Devo reconhecer que, se calhar, a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de descansar não é senão o medo de perder esta única fonte de felicidade que é o cansaço.» 
A perturbação deste livro extraordinário reside aí. Mas não só. Somos obrigados, na sua leitura, a pôr tudo em dúvida em relação a nós próprios e à nossa própria família e eis onde Alba de Céspedes triunfa neste «Caderno Proibido». A crueldade e a afectividade de que se alimenta um grupo familiar de personalidades obviamente distintas e que se magoam, mais do que provam o seu amor senão através de glosas e metáforas maldosas, daquelas que deixam um rasto de mágoa e de ódio tantas vezes camuflado:
«Tenho de destruir o caderno, destruir o diabo que nele se esconde entre cada página, como entre as horas da vida. À noite, quando nos sentamos todos juntos à mesa, parecemos claros e leais, sem insídias; mas sei agora que nenhum de nós se mostra como verdadeiramente é, escondemo-nos, camuflamo-nos todos, por pudor ou por despeito.»
A questão que antes se colocava, após o conhecimento atento de todo o diário de Valeria, a tal «velha de 43 anos» é exactamente aquela que perturba quem o lê. Valeria tem um caso fora da família que não chega a ser consumado, mas intenso. E damo-nos a pensar que atrás da cozinha em que cada mãe nossa, porque o pai nos anos 50 e 60 tinha todo o direito a ter «casos» ou amantes, se deslocava para fazer a comida, ir para o trabalho, vir à pressa, passar a ferro, aconselhar os filhos e vigiá-los, teria ela, perguntar-se-á, o direito de amar alguém nos intervalos da sua vida de cansaço? Teria ela, a «mãe», a veleidade de sonhar com uma fuga de casa com um amor dissimulado e que se desenhava um desejo sexual óbvio por outra pessoa fora da família? E teria ela o direito de nos odiar, por vezes? De nos olhar como empecilhos para uma liberdade coartada? Por mim, tenho uma resposta clara. Mas que este livro nos perturba, sem dúvida que sim. 
alc

domingo, junho 23, 2024

«Le Vagabond Américan en voie de Disparition», Jack Kerouac

 

Gallimard, col. Folio à 2€. 2002, trad. Jean Autret
Este livrinho comprado no já aqui citado melhor alfarrabista do mundo sito em Moutier, no País d'Oc, não por 2€ como diz a colecção da Folio na capa, mas sim pela soma abracadabrante de 1€, tem outro conto «Grand Voyage en Europe». O primeiro, «Le Vagabond américan en voie de disparition» foi escrito em 1957, o segundo em 1956. 

Não esperem neste livrinho uma escrita frenética como em «Pela Estrada Fora» (On the Road) editado pela primeira vez em Portugal pela Ulisseia em 1960 (somente três anos após a edição nos EUA) e agora disponibilizado pela Relógio D'Água. Fui um dos que comprou o da 1ª edição, para que conste!
Comecemos pela «Grand Voyage en Europe» e nota-se que Jack Kerouac já não é o mesmo de «On the Road», embora a distância cronológica entre este e os contos que vos apresento seja só de dois anos. A viagem não se inicia na Europa, mas em Tânger, onde vive um misterioso Bill que só depois de algumas desconfianças minhas e algumas páginas depois, se verifica que é William Burroughs com quem partilha algumas noites e tardes loucas com muito álcool, haxixe e kief à fartazana. Parte para Marselha num barco cheio de soldados, o que não o entusiasma por aí além, tal como o barco jugoslavo que o levou de Nova Iorque a Tânger e que ia afundando numa tempestade. Ele era mais comboios, autocarros, a pé ou à boleia, o que na Europa era quase impossível com o ar de vagabundo que tinha. Depois de Marselha, Lyon, Dijon, Arles, encontra-se finalmente em Paris onde permanece algum tempo em Montmartre, frequentando o Café Voltaire. O que nos conta Kerouac? Sendo budista zen, é com surpresa que o vemos a visitar, até à comoção, igrejas católicas e os quadros e esculturas que são parte integrante da arquitectura e decoração dos edifícios. Não sendo católico, vê-se aí a influência da mãe franco-canadiana. Demonstra conhecer bem os evangelistas nomeadamente S. Mateus e tem uma fixação pelos anjos, escrevendo, aliás, «Anjos da Desolação». No Louvre, anda quilómetros seguidos e mostra uma verdadeira paixão pelos impressionistas Cézanne e Van Gogh e menos por Gauguin. Visitando antes de Paris, o campo francês e as pequenas aldeias modorrentas compreende o desespero de um Flaubert, de um Rimbaud e ou de um Balzac que, quando se puseram ao fresco realizaram obras imaginárias e sonhadoras (palavras suas). Parte para Londres e aí permanece, sem grandes descrições, a não ser a espera por receber o pagamento pelos direitos de autor de «On the Road» e andar de novo para os EUA. Como disse no início, nada de frenetismo, de hiperactividade literária, de experiências com drogas ou álcool, numa Europa que, convenhamos, nada tinha de parecido com os EUA e que, segundo Pascal Quignard ocupava literalmente a Europa Ocidental (ver «A Ocupação Americana») até a aculturar até aos nossos dias.

Se hoje compreendemos muito bem que a sociedade e principalmente a polícia não suporta nómadas e vagabundos (será necessário, hoje, acrescentar os sem-papéis, os sem-abrigo e imigrantes) já em 1956, Kerouac conta-nos que o vagabundo americano, extremamente reconhecido na conquista do Oeste e no trabalho errante no Leste, está em vias de extinção. Assim ele nos conta. Era normal, antes de meados do século XX, ver grupos de vagabundos calcorreando toda a América, mas a polícia e a própria sociedade acabou por persegui-los de um modo por vezes até violento sem que a razão última não fosse o horror ao nomadismo e à recusa do trabalho alienado. No entanto, Kerouac sabe qual a sua situação particular:
«Eu próprio sou um vagabundo, mas de uma espécie particular, como acabaram de ver, porque eu sabia que um dia os meus esforços literários seriam recompensados pela protecção da sociedade - Eu não era um verdadeiro caminhante que não alimenta nenhuma outra esperança que essa esperança eterna e secreta que se pode conceber quando se dorme em vagões de mercadorias vazios que voltam ao vale de Salinas, por um dia quente de sol de Janeiro. pelo de uma Eternidade Esplêndida, em direcção a San José onde vagabundos de aspecto cansado vos observarão, rosnando e oferecer-vos-ão de beber e de comer - ao longo do caminho ou na margem do rio em Guadalupe.» (pág.74, trad. minha)
Portanto, Kerouac sabia perfeitamente qual o seu papel na história que foi a sua vida, destruída aos 47 anos em S. Petersburgo, na Flórida, em 1969. Nada demais para quem soube de início que as coisas de abusos acabam (gloriosamente?) assim. No entanto, deixou-nos registos incríveis de quem nunca se habituou ao rame-rame social do trabalho/casa. Ele foi um dos últimos nómadas da América. Deixo-vos com um poema de Dwight Goddard que, segundo ele, melhor exprime o «sonho original» do caminhante:

«Oh sim, para este único e raro acontecimento
Com alegria oferecerei dez mil moedas de ouro!
Um chapéu na cabeça e uma mochila às costas,
O meu bastão, o fresco vento, a lua o céu.»
(pág.75, trad. minha)

Pois é. Kerouac fazia este exercício teórico: numa sociedade que endeusa e promove até ao infinito a vida saudável, tentem pegar numa tenda e numa mochila e acampar onde bem vos apetecer, cozinhar ao ar livre, fazer uma fogueira à noite e caminhar no dia seguinte sem destino algum. Essa experiência durará uma tarde e parte da noite...

alc

«Os Perseguidores», Ana Teresa Pereira

 

Relógio D'Água, Dezembro de 2020
Um livro de 2020 de Ana Teresa Pereira, cuja obra foi já aqui referida várias vezes. Há aqui uma espécie de impossibilidade: por mais que tentemos conhecer a autora e a seguirmos regularmente, mais se torna um mistério insondável. Essa estranheza reside no grande depuramento das palavras que a autora nos apresenta, mas que é inversamente proporcional aos sentidos de quem a lê. Tento explicar melhor se me for possível: neste livro, tal como em outros, existem odores que advêm das flores de jardins sempre presentes, cultivados com um rigor impressionante, à inglesa, e que é impossível ignorar. Sentimos esses cheiros em cada página dos seus livros e particularmente neste. Realizamos as imagens dos móveis, das toalhas, das janelas abertas para dias luminosos ou para os lúgubres. Sentamo-nos a ler durante uma tempestade com o odor da terra molhada. Isto não é para todos os autores, daí a particularidade das leituras fantásticas em Ana Teresa Pereira. O ambiente também nos chama para o interior de cada conto ou cada frame aposto numa longa película, porque a sua leitura é claramente cinematográfica e musical. Daí os westerns sempre presentes, os policiais de John Dickson Carr ou de S.S. Van Dine (Ana Teresa Pereira recusa, e muito bem, ser uma literatura menor), as charnecas nevoentas de Sherlock Holmes, o olhar, o corpo e os olhos de Audrey Hepburn, uma senha quase presente para o desejo sexual oculto ou real, o jazz de Art Pepper ou de Charlie Mingus e o maravilhoso Kind of Blue de Miles Davis. 
Não se pense, contudo, que há uma leveza no ar dentro destes contos (alguns aproximam-se mais da prosa poética, mas isso é outro assunto). Antes pelo contrário: existe uma carga erótica intensa que se pressente pela presença constante dos corpos, da cor dos cabelos, da expressão dos olhos dos protagonistas, das formas coladas aos vestidos, das mãos que se podem transformar em garras, nos diálogos tão curtos como intensos, como também há igualmente na crueldade das canções das crianças (não é por acaso que ela chama Lewis Carroll) ou na constante impossibilidade de amor destes perseguidores ou perseguidoras ao procurar uma felicidade que afinal se encontram perto de nós em tudo o que tocamos, solitariamente, em objectos ou em pessoas. Não é por acaso que o toque sensorial é tão importante nos livros da autora e a que este não foge à regra.

«Como é possível amar tanto e estar tão sozinho?» é a pergunta que se nos arremete, uma verdade que já vem do princípio dos tempos (lembro-me de Dante e Camões) e que nos acompanha desde sempre, presente na literatura e na poesia, mas da que nos rasga, que não nos deixa indiferente. Com Ana Teresa Pereira, esta pergunta some-se, em ondas, no fim de termos lido um livro dela. Aparentemente, desaparece. Mas não.

alc

terça-feira, junho 18, 2024

«Velhos Supérfluos-Teses sobre o Capitalismo e a Velhice», Andreas Urban

 

Antígona, Maio de 2024. Tradução de Boaventura Antunes
Comecemos pelo jovem autor austríaco Andreas Urban. Aliás, é significativo que existam cada vez mais autores jovens que consulto, o que me faz cada vez mais velho e, concomitantemente, um ávido consumidor sobre o tema. Isto anda tudo ligado. O autor, nascido em 1982, pertence a um grupo marxiano, com evidentes ligações a teorias situacionistas e que desenvolvem as suas teses de superação do capitalismo na sua fase actual, em torno de revistas e plataformas digitais como a Krisis, Exit!, a wertkritik.org., para além de várias obras publicadas. A sua influência teórica é marcada pelos trabalhos de Robert Kurz (já desaparecido) e de Roswitha Sholz, mas eu acrescentaria mais uns como Anselm Jappe, Norbert Trenkle e evidentemente, Marx. Todos eles (excepto Trenkle, onde assisti a uma palestra dele na antiga Ler Devagar) foram editados pela Antígona. 

«Velhos Supérfluos-Teses sobre o Capitalismo e a Velhice» é divido em três partes, todas elas importantes. O primeiro capítulo é a explicação teórica óbvia para o tema da velhice que leva o autor a explicar a superação da síntese marxista do livro I do Capital em que Marx desenvolve a teoria do valor de uso e de troca das mercadorias, do lucro e da mais-valia, assim como a criação do fetichismo dessas mesmas mercadorias levado ao extremo. Sem colocar em causa a teoria, o Grupo Krisis e o autor que claramente se revê nele, aponta uma outra visão que é o desenvolvimento dessa mesma teoria, mas num capitalismo que evoluiu para o absurdo do valor e da «dissociação do valor-compulsão» através do aumento exponencial da produção de mercadorias baseadas num «trabalho-abstracto» que visa o lucro e a multiplicação do lucro até valores estratosféricos (riqueza abstracta) e o «trabalho-concreto» que produz os alimentos e os produtos que necessitamos (riqueza concreta). Este último é claramente secundarizado em detrimento do primeiro que leva à desvalorização (igualmente exponencial) do trabalho, visto que o lucro deste último é residual. Sem esta explicação o trabalho não se entenderia mais à frente.

Ora, é aqui que entra a questão da velhice e do envelhecimento, desenvolvida no capítulo II. Do supérfluo que é criado pela ausência de produtividade e do trabalho-concreto pelos velhos e que, para além do capitalismo que o chuta para o lado ao mesmo tempo que o endeusa através de técnicas de active-aging onde vai sacar ainda alguma produtividade e ganhos dos velhos através das políticas sociais do Estado Social e do capitalismo que lhe é associado, em indústrias multinacionais cada vez mais prósperas. É a contradição, quase esquizofrénica, do capitalismo actual no referente ao envelhecimento. Contudo, este facto visível para todos com a glorificação do «jovem-idoso» não impede que se construa obscuramente o anti-aging já numa fase mais avançada da velhice (a quarta idade) em que será impossível a produção de qualquer mercadoria ou actividade lucrativa por evidente incapacidade física. É a ocasião de (re)entrarem as teses de Foucault sobre os lares de idosos no III capítulo do livro de Andreas Urban. Aqui, se dá a custódia observável por todos e que nos levará necessariamente a uma reflexão crítica, embora a análise de relatórios, todos eles sombrios, se centre sobretudo na Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Chéquia. Não será muito difícil, em Portugal, revermo-nos nesses relatórios que levam a um aprisionamento dos velhos em lares que impedem a liberdade que podem e devem ter os velhos. Claro que o autor sabe do que fala e aponta para uma crítica que pode ser-lhe formulada e que não deixa de ser venenosa, visto que pode reverter-se contra ela: ou seja, que os ritmos de trabalho de hoje não permitem à família tratar dos velhos como no pré-capitalismo. Estamos a falar de trabalho e de ritmos de trabalho, a maior parte dele, abstracto em termos marxianos, que já vem sendo denunciado desde os anos 60. Lembram-se?

Gostaria de focar mais dois pontos (há muitos mais, neste livro de 169 páginas e vasta bibliografia) que gostaria de relevar: o «active-aging» não deixa de ser o pior e mais visível da relação entre o capitalismo e da velhice. Esta negação do «não fazer nada» «ou fazer o que se gosta, recusando a produção de capital alienado» é recusado liminarmente pelo capitalismo na sua última fase. Pior do que isto, só a cumplicidade da sociedade perante esta proposta obscura. Pessoalmente, ainda não consigo ver imagens de velhos a «abanarem o capacete» em discotecas, à tarde bem-entendido, por cuidadoras vigorosas entusiasmadíssimas ou ver caras completamente desfeitas por cirurgias plásticas multiplicadas por correcções intermináveis defendidas por quem aposta num futuro transhumano ou lares de idosos tratados por robots, tipo Autoeuropa. A segunda questão, terá a ver com a repressão existente nos defensores por agora silenciosos no anti-aging que leva a colocar tudo no mesmo cesto da exclusão. Os velhos são velhos, onde cabem mulheres (geralmente mais frágeis em lares), racializados, queer, migrantes, com desejos sexuais, que aliás são proibidos nos lares sob custódia e cujos cuidadores podem ser postos em tribunal pela família se vier a acontecer, tal como com jovens sob custódia que empreendem contactos sexuais em visitas de estudo!!

No capítulo III, ainda se levanta um tema polémico, nomeadamente quanto à eutanásia e suicídio assistido; no plano do envelhecimento não estaremos muito longe de o ver aprovado por alguns países europeus, livrando-se a UE de se meter em trabalhos que podem levar a extrema-direita a subir ainda mais, mas que podem servir como porta-giratória para esse fim a preços exorbitantes. Extrema-direita que sabe do que fala porque os seus antepassados o fizeram sem qualquer rebuço aos que consideravam supérfluos. E não foi só na Alemanha e na Áustria, convenhamos. Mas não teremos nós uma percepção que nos leva a crer que existe já como prática escondida relativamente aos velhos? É que as taxas de suicídio dos idosos em terceira e quarta idade na Europa são assustadoras.

alc

terça-feira, junho 11, 2024

«Caruncho», Layla Martínez


Antígona, Março de 2024. Tradução e posfácio de Guilherme Pires
Há quem ache que já não há luta de classes. Há quem pense que sim, que existe. Há quem admita que, no futuro, a luta de classes será entre robots e humanos numa cena qualquer trans-humana, pós-humana ou essencialista. Vão por mim: ao acabarem de ler este «Caruncho» (o castelhano «Carcoma» é muito mais expressivo que o português «caruncho»), de Layla Martínez, podem ter a certeza que a luta de classes é muito mais profunda do que se pensa, agora que o liberalismo a conseguiu apartar das mentes democráticas e transformar-nos a todos em colaboradores, empreendedores, masters, prontos a fundar uma startup de gabarito muito multinacional, porque o espaço português será pequeno demais para as expectativas e consequentes posses advindas do lucro que cairá aos roldões nas contas bancárias com juros bonificados para ex-trabalhadores. Hoje, o horror dos trabalhadores é sê-lo. 

Só que não. Layla Martínez é espanhola, madrilena e com raízes em Cuenca, Castela La Mancha. Nascida em 1987 é ainda muito novinha para se meter nestas coisas ditas e reditas nos 60 e 70. Mas meteu-se e bem. Com violência, com frontalidade, sem peias, veio repor a família no lugar que lhe pertenceu desde sempre numa pequena aldeia onde a Guerra Civil foi mais intensa e mais cruel. Os espanhóis não brincam à política, como se sabe. Muito menos com a questão social. Não esquecem, nem perdoam. E a vida de quatro gerações é perpassada a pente fino, com uma síntese literária notável, um apuramento difícil de conseguir mesmo em escritoras/es mais experimentadas/os (alguns e algumas tornaram-se insuportáveis). Uma neta madrilena (ah, talvez da classe média, diz-se agora), com estudos, estabilizada, indaga a vida de uma bisavó e tem uma relação muito chegada à sua avó que ama e odeia, esquece-se da mãe por vezes, é acusada de um crime que possivelmente não cometeu e a luta brutal de quem viveu humilhado durantes séculos vem ao de cima como gasolina numa fogueira, metáfora para este livro incrível. A violência de uma guerra difícil de esquecer, os cadáveres ainda em valas que alguns sabem ainda existir, mas que se calam em silêncios cúmplices, com o ódio comum, colectivo e individual. Inultrapassável. Entra-se pela pele de cada personagem numa casa que se desfaz aos poucos, que não se quer reconstruir para que a memória não se perca. Dos vencedores e dos vencidos. A luta de classes por osmose, de geração para geração, e que não se dá por ela. E isto nada tem a ver com a guerra por que passou Espanha entre 1936 e 39. Tem, isso sim, com a humilhação, violência, prepotência generalizadas dos mais poderosos sob os mais fracos que se defendem, nem que seja com rezas e santos sacrificados também eles violentamente. E também com armas. Mas que no momento vital do confronto entre classes vem à tona com um ódio inusitado, sem qualquer freio. As pessoas, nas nossas sociedades contemporâneas, passam, cruzam-se entre elas em grandes cidades, talvez como Madrid, e nem pensam que algumas (talvez demasiadas) carregam histórias terríveis de antepassados mortos ou desaparecidos que teimam em viver ainda com os netos e bisnetos e que isso terá necessariamente consequências de todo o tipo. Essa «passagem» deixa marcas e elas permanecem como cicatrizes prontas a abrir, ou a esconder como se fosse uma tatuagem mal feita.

Ainda falta muito para acabar o ano de 2024, anos de todos os perigos como sabemos. Mas talvez seja este um livro que não quero esquecer.

domingo, junho 09, 2024

Revista Triplov. Deriva



Eis um mapa dos navegantes das Ilhas Marshall. As suas derivas eram cartografadas em rotas apontadas para as estrelas do céu. Nunca se perderam nos mares, ao que consta. A Deriva Editores criou-se em 2003 acompanhada por um mapa que obrigava à atenção inconformada dos que não tinham voz ou era tão ténue que mal se ouvia. Foi assim a partida para o largo: recusa de mais literatura anglo-saxónica já de si excedentária nos escaparates e dar voz às literaturas minoritárias com a Galiza, o País Basco, a Bretanha, a Irlanda, a Catalunha, a Áustria, a Argentina. Foram realidades que nos obrigaram a um equilíbrio onde os factores se cruzavam literariamente do bom ao excelente, da luta política autonómica ou independentista, até à denúncia das majestosas democracias europeias que não escondiam a sua tendência centrípeta de engolirem as incómodas culturas minoritárias e lançarem para o ostracismo as riquíssimas línguas periféricas. Alguns pagaram com encarceramentos duradouros a sua ousadia como o basco Anjel Rekalde (20 anos de prisão) «Dorregarai – A Casa-Torre», o francês Jean-Marc Rouillan, (prisão perpétua) «Odeio as Manhãs», os americanos John Zerzan (organizador das manifestações de Seattle) «Futuro Primitivo», Peter Lamborn Wilson (Hackim Bey, o seu nome muçulmano) «Utopias Piratas», o bretão Patrick Raynal «Ex», o escocês a viver na Bretanha, Kenneth White, este último o criador do movimento geopoético e autor de «O Espírito Nómada», os galegos Antón Riveiro Coello «As Rolas de Bakunine», Xurxo Borrazás «Ser ou Não», Xavier Queipo «Bebendo o Mar» ou Gonzalo Navaza «Erros e Tanatos». A edição de «A Mobilização Global, seguido de Estado-Guerra» do catalão Santiago López-Petit veio apresentar a política notívaga de subversão contra o Estado na senda de uma verdadeira tentativa de propor as várias possibilidades de insubmissão permanente. «O nómada que existe em cada um de nós como uma nostalgia, como uma potencialidade, não tem a noção de identidade pessoal, a «consciência de si» é-lhe estranha. Sem dizer «penso» ou «sou», põe-se em movimento e a caminho faz melhor do que «pensar», no sentido denso da palavra, enuncia, articula um espaço-tempo de múltiplas focalizações que é como que um esboço do mundo. O movimento nómada não segue uma lógica rectilínea, com um princípio, um meio e um fim. Tudo aqui é meio. O nómada não segue para qualquer lugar, e para mais em linha recta, mas evolui num espaço e regressa muitas vezes às mesmas pistas, iluminando-as e talvez, se for um nómada intelectual, com novas luzes.» Kenneth White «Só a rejeição total da realidade no-la pode mostrar na sua verdade. Só a rejeição total do mundo nos diz a verdade do mundo. Mas esse gesto radical de rejeição já não é o gesto moderno que, depois da destruição anunciava e preparava um novo começo. Não há começo absoluto porque a «tabula rasa» não nos deixa diante de nenhuma verdade absoluta. A rejeição total da realidade apenas nos oferece «uma» verdade da realidade. Esta é a nossa verdade.» Santiago López-Petit Antes, em 2006 e 2008, publicou-se com Vicente Romano, «A Formação da Mentalidade Submissa» e «Intoxicação Linguística» dois livros que denunciam os media como o alfa e o ómega na formação do indivíduo amorfo, narcisista, muito bem com ele próprio e com a sociedade que o escraviza e que, como bom obediente, o aceita, feliz. O escravo que tem orgulho em sê-lo: «A consciência indiferenciada corresponde à vida sentimental estereotipada. O pensamento mágico acrítico, gera uma consciência conformista, submissa. O que significa deixar por mãos alheias a solução dos problemas próprios, situação em que tudo pode ser facilmente manipulado por esses interesses estranhos. Aí radica o perigo de passar as rédeas dos assuntos pessoais para as mãos dos especialistas ou do novo credo académico. Autodeterminação significa, antes de tudo, libertar-se da angústia e ganhar consciência das determinações impostas por terceiros, para conseguir ultrapassá-las.» Vicente Romano De resto, as coisas fluíam e mais tarde, em 2014, com a edição de «Manual de Sabotagem – Escritos sobre política, memória e capitalismo», de Elfriede Jelinek, tão nobelizada, quanto esquecida e ostracizada na sua própria terra, a Áustria (em Viena, em três livrarias de referência não encontrei um único livro dela), conseguiu-se dar voz a esta autora única do desencanto germânico, afirmando que nunca a Alemanha ou a Áustria do Anchluss conseguiram ultrapassar o nazismo. Não só a culpa, mas o nazismo tal qual. Ele subsiste ainda, vivo. Nos anos 80, suicidaram-se vários operários na fábrica da Peugeot em Sochaux. Editou-se, em 2014, «Crónicas Peugeot» do sociólogo Michel Pialoux em conversas com o operário Christian Corouge, de modo a denunciar o trabalho demente porque repetitivo, mesmo na cadeia robótica que despontava: «Não sei se algum dia partirei da fábrica. Porque vou contar-te uma coisa perfeitamente parva, mas... há um ano, estivemos uma semana no desemprego, mesmo antes das férias, portanto isto dava cinco semanas. Ao fim de quatro semanas de férias – estávamos perto de Cherbourg – já não dava mais. Estava a bater mal lá. Estava a bater mal, fui obrigado a vir embora. Sabes, uma espécie de necessidade masoquista. Não estava bem. Quatro semanas, tudo bem, vês: recuperas fisicamente, fazes o ponto da situação na tua cabeça, tudo bem, descontrais... e depois, dizes para contigo: ‘O que é que me espera quando regressar? Portanto preciso de voltar. Preciso de voltar para ver, para estar ali porque... começo a estar farto das férias, começo a andar às voltas. Ando aqui a coçar os tomates, tenho que bazar’. E foi o que nos aconteceu. Viemos embora uma semana antes. Demos cabo de uma semana de férias para vir embora. Precisava de ir ver a fábrica durante as férias, vês, quando a fábrica está parada. Ir diante da porta e dizer para comigo: ‘Merda, mas como é que a gente vai fazer para desmontar esta coisa?’ Fazer isto... Crónicas Peugeot, de Michel Pialoux e Christian Corouge. Nesta mesma colecção aparecem nas livrarias pela mão da Deriva uma obra de Wittegenstein, «Observações sobre o Ramo Dourado de Fraser» nunca editado neste canto europeu e outro de Mikhail Bakhtin «Para uma Filosofia do Acto». A poesia e a narrativa acompanharam-nos durante os 15 anos de existência, com resultados tão desconcertantes e algo equívocos, como reveladores. Realça-se somente os que se considera terem sido os poetas verdadeiramente genuínos e que entenderam, desde o início, que um editor não é exactamente um promotor no mercado, muito menos do mercado literário ou de gestão de egos excêntricos. Aqui vão os que de uma maneira ou de outra deixaram registadas as melhores páginas e de doces lembranças em vários livros editados que marcaram uma época própria: José Ricardo Nunes, Ricardo Gil Soeiro, o já falecido Joaquim Castro Caldas com o seu «Mágoa das Pedras», Filipa Leal, Catarina Nunes de Almeida, Marilar Aleixandre, João Pedro Mésseder, Henrique Manuel Bento Fialho, António Alves Martins, Pedro Eiras, Maria Leonor C. Figueiredo, entre outros. A parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa deu-nos livrinhos da colecção Pulsar onde sobressaíram nomes como Sarrazac, Pascal Quignard, Antoine Compagnon, Anselm Kiefer, Carlo Ginzburg, Olivier Py, Jean-Claude Pinson, Stephane Mallarmé com o seu «Crise de Versos», Wyndham Lewis e os Manifestos Vorticistas. Também se editaram estudos literários sobre Annemarie Schwarzenbach, Max Frisch, Kafka, Coleridge ou Stevenson. «G. Agamben assinala que desde Miguel Ângelo o inacabamento é teimosamente exaltado pela arte e que se pode explicar este gosto por uma espécie de prazer derivado do fetichismo. Schlegel mostrava que, como as obras que admirávamos mais - quer dizer, desde a Renascença, as obras da Antiguidade - tinham chegado no estado de fragmentos, as obras dos modernos procuravam assumir esse estado logo ao nascerem, imputando o fascínio que exercem à fragmentação e julgando que estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes ao provocarem o desejo do todo, ampliavam a emoção.» Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos, Pascal Quignard «A autodestruição foi sempre a finalidade mais íntima, a mais sublime da arte, cuja vaidade se torna desde logo percetível. Pois, qualquer que seja a força do ataque, e mesmo que tivesse chegado ao limite, a arte há de sobreviver às suas ruínas. (…) O Colégio de França convidou um artista plástico na esperança, presumo, de que vos fale de arte, vos informe acerca do que é a arte, demonstre a sua origem. Dir-vos-ei que não há definição da arte. Toda a tentativa de definição se desfaz no limiar do seu enunciado, tal como a arte, que não deixa de oscilar entre a sua perda e o seu renascimento. Nunca está onde contamos com ela, onde se espera apreendê-la e, referindo-me ao Evangelho segundo São João, direi: ‘Onde estiver, não o podemos alcançar’.» A arte há de sobreviver às suas ruínas, Anselm Kiefer Seguiu-se, pois, a denúncia com mais parcerias, agora com os livros editados com a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique e com a Cultra, uma cooperativa cultural alternativa do Porto onde se editou Regina Guimarães com um libelo contra as chamadas «indústrias culturais», seja o que isso for. Mas é com uma intervenção, em Julho de 2016, no último livro que se editou pela Deriva, «Cidades Materiais», de António Alves Martins, que talvez esteja plasmada toda a génese, leitmotiv e o fim anunciado da Deriva. Não por acaso, reside nesta declaração tudo o que levou à sua criação e ao fim da editora e que exponho uma parte significativa: «Em meados dos anos 80, tínhamos todos 20 e tal anos. Miúdos da Faculdade de Letras que dizíamos abominar, sob a fórmula de palavrosas parábolas coimbrãs: ‘faça-se luz, incendeie-se a universidade!’. A verdade é que nos foi ensinado muito mais nos cafés adjacentes à Praça da República onde o prazer de falar, de conhecer e de debater era superior a tudo. Com algumas substâncias e segmentos aditivos que o facto de já terem prescrito, e apesar de uma louvável loucura que contrastava por vezes com imprevisíveis depressões, não me fazem aqui desenvolver e muito menos pormenorizar, por irrelevante. O agir concreto apareceu com o convite para fazer parte de um colectivo editorial da Centelha, e, mais tarde, da Fora do Texto. O espírito da revolta. In girum imus nocte et consumimur igni, o último filme de Debord realizado em 1978 e editado finalmente em 1981, com peripécias várias que, mais tarde, inclusive, levaram ao assassinato do editor da Champ Libre, Gerard Levobici (não foi o único), constrói a ideia do consumo e da alienação como alfa e ómega do capitalismo em fase de mutação para a pós-modernidade. Esta frase latina atribuída a Virgílio é a descrição real do que nos levou à deriva nocturna e à necessidade imperiosa de lutar contra a alienação do público que nos olhava de soslaio. Consumimos a noite e pegávamos-lhe fogo mesmo com acendalhas já usadas por outros. Creio não me enganar que entre blusões negros e echarpes negras ou canadianas verdes militares, construímos à nossa maneira um fogo permanente que nos devorou igualmente na ânsia da revolta e na dramatização do sem sentido de uma vida quotidiana que negávamos. Recusávamos o tédio. Recusávamos a mercadoria, recusávamos qualquer valor de troca. Preferíamos a poesia e o pensamento como as únicas vertentes que não se podem domar. E o amor. Esse, sempre presente no fogo quotidiano em que geríamos a noite em chamas. As chamas, essas, devoraram-nos? É possível, mas nas regras do Potlacht primitivo, este com coincidências inquietantes com o cristianismo também ele primitivo, quem perde ganha, quem ganha, perde. A noite consumiu-nos, sim, mas com a voragem da revolta romântica. (…) ‘Numa sociedade invertida, o verdadeiro é o momento do falso’. Isto foi dito em 1967 e corresponde a uma realidade já indesmentível e com contornos que o seu autor, Debord, provavelmente, não imaginaria na enorme dimensão espectacular que nos rodeia hoje. Assim, se nenhum movimento reivindicativo da arte revolucionária foi superado desde 1916 com Dada, esta tornou-se uma mera mercadoria, que vale o que vale consoante o valor das trocas. Nos anos 80, vivia-se por toda a Europa a ressaca dos anos de chumbo criados por Andreas Baader e Ulrike Meinhof que proclamava em livro ‘vocês falam do tempo, nós não!’ e pelas Brigadas Vermelhas de Renato Curccio na Itália, estas últimas teleguiadas, como se soube, pela polícia secreta. Tudo isto gerou uma impossibilidade poética, uma forma de ver a política e de destinar uma vida quotidiana não marcada pelo tédio e pelo aborrecimento, ou, se quiserem, pelas cadeias infernais do trabalho. Mas como promover isto mesmo numa sociedade alienada pelo medo, pela vingança dos anos pós-Prec e pelo espartilho terrorista no Portugal mesquinho dos anos 80 e da recuperação yuppie? Foi a altura também dos anos criadores e libertadores do rock com o aparecimento de Johnny Rotten, dos Clash, de um Lou Reed já sem os Velvet Underground, do Bowie tornado pop, de Ian Curtis dos Joy Division e depois com os New Order, de Iggy Pop, de trautearmos Jim Morrison pelas ruas desertas de Coimbra e aclamando o Jazz, recuperando para nós o be-bop e o free como forma de dizermos: ‘Falem do tempo, falem do tempo, nada temos a ver convosco!’ Aderimos à arte contemporânea e às possibilidades do vídeo, do teatro e da performance sendo que estas foram, exceptuando alguns, poucos, casos rapidamente recuperados. Identificávamo-nos pela música e pela deriva. A deriva consubstanciada todos os dias numa cidade que cada vez mais se tornava um labirinto de cimento corbusiano. A deriva que aqui se fala é a de Thomas de Quincey que, nas suas «Confissões de um Opiómano Inglês», tradução forçada, diga-se, afirmava haver uma rede subterrânea, marginal, na cidade de Londres, não cartografada pela polícia e pelas instituições políticas. Era terreno livre. Os dadaístas, os letristas e os surrealistas e muito mais tarde os situacionistas praticaram-na na forma de desconstrução da palavra e da deambulação livre em corredores libertários. Na construção de situações irreversíveis. Mas sem se superarem. Precisamente: o verdadeiro aqui, não superou o falso. Assim, toda a deriva que realizámos, muitas vezes sem sentido, nas ruas e becos nocturnos, só teve consequências na construção de mercadorias irrevogáveis: os livros e as ideias que eles trazem. O teor do que são feitos. A forma. A cadência e a recusa da «inovação». Até porque, sabemo-lo, quando o patrão exige inovação, o escravo honesto é o primeiro a proclamá-la.» Nunca quisemos aderir à escravatura. António Luís Catarino, Abril de 2024

Revista Digital Triplov. Este número: «As Vanguardas», sob a responsabilidade de António Barros

https://triplov.com/revistaTriplov/

Este é um dos números da Triplov que devem guardar. Revista de arte e opinião digital, este que vos apresento é da responsabilidade de António Barros. O índice das intervenções estará presente logo de início, mas atentem no cuidado gráfico, nas ilustrações e trabalhos de artistas que povoam este número obrigatório de leitura cuidada. O tema: «As Vanguardas».

segunda-feira, junho 03, 2024

«As Altas Montanhas de Portugal», de Yann Martel

 

Presença, 2016. Trad. de Isabel Nunes e Helena Sobral
Yann Martel é essencialmente lembrado pelo romance transformado num filme de levar às lágrimas ao canto do olho «A Vida de Pi». Ora, este tipo lembrou-se de, aos 20 anos, fazer um livro assim o que, de imediato, isto é, passadas umas largas dezenas de anos, veio a concretizar com este «As Altas Montanhas de Portugal». Li-o, porque cada vez que passava por ele numa livraria perguntava-me a mim mesmo (passe o óbvio da afirmação) onde é que ficariam as tais montanhas, altas a bem dizer, ainda por cima com o nome «Portugal» chapado na capa. Ou seja, desde 2016, que me andava a chatear. E só depois de o ter lido é que me levou a chatear-me ainda mais. Não esperem grande literatura por aqui, farão o favor de acreditar em mim. Por vezes, de tão pueril, sentimos que o Martel está a gozar connosco, o grande macacão! Tantos adjectivos, tanta alegoria, tanta metáfora, tanta elipse, tanta comparação, fogo! Cansa. E aquela de comparar Jesus Cristo a Agatha Christie, S. Paulo a Poirot (como construtores de personalidades, vá!) é de chorar a rir, sim senhor. E já viram que não será por acaso que o Christie da Agatha se chama Christie? É ou não uma ligação óbvia com Cristo, caraças? As descrições de uma viagem de um Peugeot de 1904 pelas estradas portuguesas é uma canseira que raia a exaustão psíquica do leitor. Um tipo que alimenta com moto-nafta o depósito do seu carro e que aproveita para o usar em si por ter tido um ataque de piolhos por, imaginem, ter estado em contacto com o povo numa aldeia perdida, que esmurram o carro como obra do diabo, só mesmo o Martel. Depois, há uma descrição de uma autópsia que evito aqui resumir, sendo mais sensato dizer que são páginas de descrições absolutamente intragáveis e que eu prefiro excluir de todo porque, reconhecendo faltar-me algum bom senso para as coisas práticas da vida, ainda tenho algum de sobra para o bom gosto dos amigos que não quero de modo algum ferir. Tenho contudo de assinalar que o amor de uma mulher por um autopsiado a leva a coser-se dentro dele e... até chimpanzés da barriga e ocarinas no pénis do dito, o médico-legista foi encontrar! É pá, ó Martel, isso nem com cogumelos mágicos!

O melhor fica para o fim. Um senador no Canadá, sente-se deprimido, cansado após a morte da mulher. Decide acabar tudo e (opção muito discutível e bem problemática) ir até Portugal a uma aldeia chamada Tuizelo nas ditas Altas Montanhas de Portugal, que afinal é o planalto de Trás-os-Montes. Era de lá que vinham os seus antepassados. Nada a fazer! O homem pirou de vez só por esta decisão e não por ter comprado um chimpanzé triste de um laboratório e trazê-lo para a aldeia, depois de alugar um 2CV que, pela descrição feita do veículo, deveria levar o autor a tribunal pelos amigos do icónico automóvel cuja mecânica é extremamente difícil de perceber para um cidadão americanizado e habituado em mustangues. Mas isso não é nada. O romance vai de mal a pior à medida que tenta acabar, mas de tão estúpido e incongruente, mete-se pelo nosso hipotálamo e cria ofuscações e, muito mais grave, não nos deixa esquecê-lo de todo, alertando-nos para os perigos iminentes de comprar uma coisa destas igual, embora seja difícil. É esse o objectivo do dito cujo, não é? Do hipotálamo...

Não há nenhum filme disto? É para eu não me enganar e não me levar a vê-lo.

«Trilogia», Jon Fosse

 

Cavalo de Ferro, 2021. Trad. do norueguês de Liliete Martins
Pouco importa se é Nobel e como ouvi dizer com alguma propriedade, há muito tempo, por um amigo, «Para Nobel até escreve bem!» É o caso. «Trilogia», de Jon Fosse, tem um sub-título esclarecedor: «Vigília. Os Sonhos de Olav. Fadiga.» O tempo e o espaço alternam-se segundo uma narrativa tão bem construída como bela. Com uma pontuação «saramaguiana», se assim se pode dizer, ou não a utilizando de todo. não deixa de ter uma cadência firme que leva o leitor a imaginar as falas muito dramatizadas, quase teatrais, e os espaços visualmente críveis, quer se trate de um barco ao largo do mar da Noruega ou na entrada por entre fiordes, ou, ainda, a atracagem de um barco à vela numa cidade costeira. As casas de madeira e os seu interior são descritas em poucas palavras, mas que se revestem igualmente de um grande rigor visual. Este livro, esta «Trilogia» cheira a mar e sentimos o vento nórdico gelado nas nossas caras, para além da rudeza da terra e do gado que alimenta uma população norueguesa, no século XIX, marcada pelo protestantismo e, concomitantemente, pela ética do trabalho duro e honesto, pela culpa e castigo.

E é nesse caldo que cultura que jovens como Asle e Alida cometem crimes terríveis de que não sentem a mínima noção do mal. É aqui que reside toda a liberdade do livro. Eles cometem crimes para se apoderarem de bens materiais que os levariam a uma paz exigida por e para si próprios. Não se julgam, nem julgam, nem pedem perdão. Agem somente na ânsia de serem felizes. Se cometem os crimes é para atingirem esse desejo de amor, fosse ele o roubo de um barco, o assassinato de uma mulher e de uma idosa, ou de um velho. Para isso, usam subterfúgios e mudam quer de nome, quer de origem ou família de modo a não serem encontrados; a fuga torna-se constante, o mar e a estrada a sua morada contínua. Por fim «Fadiga», e Alida desiste após o desaparecimento de Asle (não cometerei aqui a indelicadeza de dizer como) e entrega-se, por cansaço, a uma nova realidade que, simultaneamente, a ameaça e a recolhe.

Mesmo muito bom.