quinta-feira, agosto 14, 2025

"Flauta de Luz" 11

 

Cada número que sai constitui uma surpresa pela qualidade, mas igualmente pela insubmissão que espelha em cada artigo que se lê, não fosse ela feita de Luz. Gostaria de aqui destacar um ou outro artigo, mas seria injusto e ostracizaria todos os outros. Arrisco, no entanto, falar do genocídio de Gaza ("Gaza é o destino da Humanidade", de Ognian Kassabov, por exemplo, é arrasador de tão verdade que é), um texto maravilhoso de Christian Bobin, o fim do extractivismo no Barroso, Alfred Jarry, Gunther Anders, Júlio Henriques, Joelle Ghazarian, David Watson, etc...etc...

"Memórias do Subterrâneo", Fiódor Dostoievski

Relógio D'Água, 2017. Tradução de António Pescada
Sabemos que Dostoievski foi um ser atormentado. Foi Deus, o mundo, a sociedade, a educação, a família, ele próprio. O «Subterrâneo» é a vida dele e contou-a aqui, teria 45 anos o que, mesmo no século XIX, seria um pouco prematuro. Não sei se essa tormenta que ele diz ter sido a vida dele, criada numa casa da pequena nobreza russa, não terá sido uma espécie de lampejo filosófico-emocional que levou o homem a fazer chorar as pedras da calçada, mas se assim foi, fê-lo bem melhor que os românticos que acusa de má literatura. Se assim foi, repito, e se estas memórias são mesmo dele e não um mero exercício de estilo, o homem terá sido um canalha para com Liza, para com os amigos, para com o seu criado, foi corroído pela inveja, pelo ostracismo social, pela falta de dinheiro, pela incompetência no trabalho e invectivando-nos a todos a ser como ele. Mesmo que o recusássemos, ele lembra-nos que essa negação é uma forma de aceitar o que para ele é obvio: somos todos canalhas! Ou seja, a dupla negação é uma afirmação. Como matemático supera, em muito, a filosofia. Deixemos Dostoievski falar, por si, acerca deste mesmo livro:

«Mesmo agora ao fim de tantos anos, recordo tudo isto como demasiado mau. Há muitas coisas que agora recordo mal, mas... não será melhor terminar aqui estas ''Memórias''? Parece-me que cometi um erro ao começar a escrevê-las. Pelo menos senti vergonha durante todo o tempo em que escrevia esta narrativa: portanto, isto nem é literatura, mas um castigo correcional. Porque contar, por exemplo, uma longa história sobre como estraguei a minha vida a um canto com a depravação moral, a insuficiência de meios, a desabituação da vida viva e a maldade vaidosa no subterrâneo, palavra, não é interessante; no romance é necessário um herói, mas aqui estão de propósito reunidos todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto causa a mais desagradável impressão, porque todos nós nos desabituámo-nos da vida, todos manquejamos, uns mais, outros menos. (...)» (pág.126)

Talvez subscreva.

alc 

sábado, agosto 09, 2025

"Adém, Arábia", Paul Nizan

 

VS edições, 2020. Tradução de Diogo Paiva 
É pouco, muito pouco, reduzir Paul Nizan à sua frase celebrizada pela crítica, por preguiçosos, ou pela net que, na pesquisa ao seu nome, lá aparece «Eu tinha vinte anos. Não deixarei que alguém diga que é a mais bela idade da vida.» Para além de ter tido razão, Paul Nizan é muito mais que isso. Este «Adém, Arábia», escrito em 1931, é o seu primeiro romance e seria bom que não deixássemos a sua obra por aqui. Traduz a sua experiência em Adém, no Iémen, entre 1926 e 27. Nos tais vinte anos que ele execra, adere ao Faisceau, um partido fascista, mas rapidamente, após conhecer as obras de Lénine, adere ao PCF e chega a ser seu candidato às legislativas. Escreve igualmente «Les Chiens de Garde» sendo violentamente crítico para com os jornalistas que apoiam abertamente ou subrepticiamente a burguesia e o fascismo, uma e a mesma coisa nos anos 30, em que tomava forma a tão vitoriosa, quanto hesitante, Frente Popular. 

Paul Nizan é inconfundível na sua escrita e no seu pensamento mas, por vezes, lembra o existencialismo libertário de Camus, ele que foi colega de Sartre no liceu e que com ele privou toda a vida, sem que, mais uma vez, tenha participado na sua obliteração. Porque este ostracismo político a que foi votado pelo PCF teve como causa a sua recusa em aceitar o Pacto Germano-Soviético de 1939. Aqui os «cães de guarda» de Estaline foram Maurice Thorez que o aponta como polícia ao serviço da Alemanha, o infame Aragon e o não menos infame Malraux. Em «Les Communistes», Aragon chega a caracterizar uma personagem da polícia como Nizan, embora cobardemente em 1966, na reedição da obra, o tenha banido, já com Nizan «recuperado». Por cinismo da História, ele foi morto em Dunquerque, em 1940, com uma bala alemã e ao lado dos ingleses! Sartre, cuidadoso, tentou invectivar o PCF para reverter a sua posição face a Nizan, mas durante tempo demais e previsivelmente, conhecendo a personagem, calou-se. 

Talvez o melhor de Nizan esteja neste livro que Vasco Santos (VS) editou em 2020. Logo nas suas primeiras páginas mostrou o enorme desprezo que tinha pela École Normale «(...) uma das cabeças de França, que é provida de chefes como uma hidra. Ali se prepara uma parte dessa orgulhosa trupe de mágicos que aqueles que pagam para a formar nomeiam de Elite e que tem por missão manter o povo a caminho da complacência e do respeito, virtudes que representam o Bem.» (pág.15) Mas nem só os jornalistas dos anos 30 foram apodados de «cães de guarda»: igualmente os professores. «(...) Os filósofos serão simplesmente os cães de guarda do vocabulário e os historiadores dessa Idade Média em que as palavras tinham vários sentidos. Entretanto, aprenderam a pôr de lado os pensamentos perigosos, até ao dia em que os seus venenos se evaporem: a razão tem tempo, ela terá a sua hora para os reencontrar, que não coincide com a hora dos homens.» (pág.17)
 
E sobre a Europa: «A Europa, com a sua magra conta de terras, a sua pobreza de homens e de petróleo, a sua miséria de acontecimentos, parecia uma velha mulher agonizante entre dois heróis: a Ásia, herói da sabedoria, a América, herói do poder. A África, a Oceânia, ainda não eram senão reservatórios transbordantes de poesia que só as feiras de curiosidades e os poetas utilizavam para a inspiração ressequida. 
Tudo isto simplesmente acentuava a preguiça e a impotência das pessoas da Europa para fazer alguma coisa por si próprias: os outros continentes forneciam alguns dos mundos imaginários que à noite todos os homens inventavam para esquecer as verdades do seu purgatório e decorar de ilusões a sua indigência e esmagamento.» (pág.32). Esta perspectiva sobre a Europa e sobre os europeus permanece sempre em Nizan, quanto mais ele conhece o Mar Vermelho e o Índico. Ele sabe, nós sabemos do que o europeu é capaz: o colonialismo, a extracção, a rapina, a escravatura, a redução de populações inteiras à miséria, à cupidez do lucro que ele odeia, quando não da prática aberta do genocídio que ainda hoje perdura à frente dos nossos olhos. 

Práticas que Paul Nizan não pretende esconder dos outros e de si próprio. Ele virá para França com um ódio renovado, capaz, legítimo: «É preciso perder o receio de odiar. É preciso perder o rubor por se ser fanático. Eu devo-lhes mal: eles estiveram quase a fazer com que eu me perdesse. O ódio vai aumentar com a cólera de saber que o ódio é uma diminuição do Ser, um estado em que a pobreza como mãe. Espinosa diz que o ódio e o arrependimento são dois inimigos do género humano: ignorarei pelo menos o arrependimento, farei um bom par com o ódio. Bom par com o esquecimento. Os deveres honrados, os dramas mágicos engendrados nos corações não são mais do que símbolos de jogos mortíferos para os homens.» (pág.146)

«Farei um bom par com o ódio» poderia ser a frase que poderia substituir aquela dos tais vinte anos que no início referi. Mas o ódio é por sua vez odiado. Quem o usa mais, quem proclama mais o vigente «discurso de ódio» são aqueles que mais ódio têm. Reparem onde ele desagua com uma força imparável: nos comentários dos jornais escritos que, propositadamente, obviam qualquer «regulação» do tal ódio que todos os dias enxameiam as redes. Porque o ódio lhes convém sob aquela forma que é a propaganda. Até á proibição final. O ódio perante os criminosos de hoje que provocam genocídios e criam autênticos calígulas e neros, esses tem uma vida assegurada. Por mim, faria igualmente um bom par com o ódio, sim. 

Paul Nizan deveria ser mais lido e estudado.

alc

domingo, agosto 03, 2025

«Casa de Barcos», Jon Fosse

 

Cavalo de Ferro, 2025. Tradução do norueguês de Liliete Martins
Será que a prosa tem métrica? Parece que para os entendidos, não, não terá. Mas é inegável que Jon Fosse escreve como respira. Cada período parece ter em atenção a nossa velocidade de leitura em períodos pequenos, dialogantes, ritmados, com palavras escolhidas não por acaso e com ausência quase total de parágrafos que só existem nos poucos diálogos existentes. O nosso pensamento voa com a impressão das letras e das palavras por ele expostas, adivinhamos que profundamente reflectidas, rasuradas, novamente aduzidas. Reedificadas para nosso prazer de leitura. Se a iniciamos é impossível de parar, não só pelo estilo literário, mas pela trama aparentemente repetida, mas com algo de novo em cada situação que decorre.

Jon Fosse é norueguês, de Hausegund, nascido em 1959. Dele, já li com igual alegria a sua «Trilogia». Deram-lhe o Nobel em 2023 o que não o prejudicou em nada, diga-se em abono da verdade. «Casa de Barcos» é dos primeiros dele, de 1989 (!!) e não houve alma editorial que o descobrisse ou agente que o propusesse a esta santa terra lusitana! Adiante, que exemplos destes temos muitos. Pelo menos, Jon Fosse escrevia desde 1983, estreando-se com «Raudt, svart» (Vermelho, preto). Voltarei a ele, ameaça que cumprirei.

A narrativa passa-se numa pequena aldeia norueguesa, junto a um fiorde onde a personagem principal pouco faz além de pescar, tocar guitarra em bailes aos fins-de-semana e, embora trintão vive ainda com a mãe (atenção, que estamos em países nórdicos. Para eles trata-se de um escândalo!). Não trabalha e passa o tempo na Biblioteca a requisitar livros que lê de supetão no sótão da sua casa. A partir de um certo momento inquieta-se e deixa de ler, sai pouco de casa e escreve por necessidade quase física. A chegada de um amigo da sua adolescência, Knut (e não Kurt como vem na contracapa do livro!), vem agravar mais essa tensão interior. Recorda-lhe pequenas, muito pequenas coisas, factos quase irrelevantes, acontecimentos a que não daríamos muita importância, mas que o tempo resolve tornar vívidos. Isto também acontece connosco, e, com a idade, muito mais memória que achamos residual vem à tona, o que confere toda a verosimilhança ao romance. A atracção, o amor, a sedução, a incomodidade, são narradas magistralmente. Até ao final, que me abstenho de contar aqui, como me parece de bom senso. 

«Já não saio de casa, uma inquietação apoderou-se de mim e deixei de sair de casa. Foi no último Verão que esta inquietação se apoderou de mim. Voltei a encontrar o Knut, que já não via há uns dez anos certamente. O Knut e eu andávamos sempre juntos. Uma inquietação apoderou-se de mim. Não sei o que é, mas esta inquietação afecta-me o braço esquerdo, os dedos. Já não saio de casa. Não sei porquê, mas há já diversos meses que não ponho um pé fora de casa. E é só por causa desta inquietação. Foi por isso que decidi escrever, vou escrever um romance. Tenho de fazer qualquer coisa. esta inquietação é insuportável. se escrever talvez isso me ajude. (...)» (pág.7)

alc

sábado, agosto 02, 2025

sexta-feira, agosto 01, 2025

"O Medo do Céu", Fleur Jaeggy

 

Alfaguara, 2025. Tradução de Ana Cláudia Santos 
A escrita de Fleur Jaeggy continua, e creio que continuará, a constituir uma surpresa sempre renovada. Extremamente contida nas palavras, usa-as como facas, como uma seta apontada aos nossos sentidos. A imprevisibilidade, o choque, a relação agressiva e distante para quem a lê são constantes na leitura de Jaeggy. Cumpre, portanto, o papel da Literatura. «A viagem de núpcias dos senhores Ruegg durou poucos dias. Otto Karl estava inquieto, queria ter regressado a casa após a primeira noite. Com a mulher ao lado da cama, considerava os abraços um sinal de preguiça. A mulher dormia agora, ele tinha a mão pousada sobre a nuca que pouco antes tinha mordido. Fazia projetos. Queria um matadouro.» (pág.25)

Li todos os livros de Jaeggy editados em português, através do trabalho da tradutora e escritora Ana Cláudia Santos e este é muito diferente de «Felizes Anos de Castigo» e de «Viagem no Proleterka». São sete contos dedicados à morte física ou mental ou muito perto dela e cuja presença se faz sentir de múltiplas formas: ou afastada de nós sem esperarmos nada dela, violentamente presente desde o início dos contos ou, até, insinuante. Mas sempre connosco. Daí, o medo do céu, porque nunca saberemos de que é feito, de que matéria química é sustentado e que gases edénicos envolverão os corpos para além dos vermes ou do fogo terreno. Assim é a escrita de Fleur Jaeggy. Cruel, desprovida de qualquer empatia para quem a lê, mas certeira pelo incómodo gerado, pelas verdades que perpassam as relações humanas e principalmente as familiares, sempre abertas aos piores ódios. Ela sabe escrevê-los como é raro encontrar na literatura contemporânea. 

Sei muito pouco sobre a vida de Fleur Jaeggy. Não será a nuvem digital que me vai revelar alguns aspectos que gostaria de saber mais desde que li «Felizes Anos de Castigo» sobre a vida de um colégio interno onde ela passou vários anos da sua adolescência e que, julgo, a marcaram para sempre. Mas há outro mistério que se adensa: tendo nascido em 1940, em Zurique, vive hoje quase reclusa em Milão e conviveu com Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard, Joseph Brodsky, Italo Calvino que se referiram a ela como uma escritora excepcional. Na minha opinião, é-o, e não se compreende que fosse traduzida tão tarde aqui. E, conhecendo pouco a pouco o estilo inconfundível de Fleur Jaeggy, percebemos por que razão ela estudou e escreveu sobre o enorme Robert Walser e também sobre o escritor maldito Thomas de Quincey. 

Deixo-vos com um extracto da sua escrita neste «O Medo do Céu»:

«Verena sentia-se jovem e calma. Só tinha curiosidade pela sua velhice, tornara-se vaidosa. Nunca o fora, então. Tinha sido modesta, na juventude. E tinha notado que também os outros velhos tinham ficado inchados de vaidade. É a idade, aquela idade teimosa, avessa à morte, em que nos sentimos vaidosos. Ela tem a certeza disso, a vaidade não pertence aos jovens. Não pertence às belas mulheres nem aos rapazes. Não, essa não é senão um subproduto da vaidade. Ela observara-os, aos jovens, quando saía de casa, fizera até uma comparação entre si e eles. Está decrépita, teriam dito aqueles jovens. Agora, andava sempre tão bem arranjada, não apenas por causa daquela ideia tola de a polícia dizer, se a encontrasse morta: ''Mas que limpa que está a sua casa.'' Isso era uma desculpa. Uma desculpa para a polícia. Só o céu podia saber quanto ela era realmente vaidosa. É uma coisa que vai além do físico, uma coisa profunda, terrivelmente profunda. Nem o desespero poderia ser tão profundo. Mas, pensando bem, Verena tem um sobressalto. Talvez seja desespero, a vaidade dos velhos. Os seus cabelos vaporosos vão de azul ao cinza, os seus olhos azuis são entre o cinza e o amarelo, os olhos que observam o marido com desafio e supremacia celestial.» (pág.111)

Provavelmente desenhá-la-ei.
alc

quarta-feira, julho 30, 2025

"O Sentido do Fim", Julian Barnes

Quetzal, 2011. Tradução de Helena Cardoso
Este é dos tais livros que me convidavam a lê-lo desde há muito, não sei ainda hoje porquê. Uma extrema desilusão. Barnes sabe do negócio da literatura levezinha, pós-moderna, caduca desde que apareceu nos anos 80 e que não saiu desse registo. Se vende bem é para continuar. A fórmula, tão eficaz, quanto desonesta aí está: uma grupo de amigos em Cambridge que mantêm contacto. Desses quatro, um suicida-se quando estava com uma ex-namorada da personagem principal, um tal Tony. O suicidado era Adrian. A culpa, porque há sempre culpados, ou a percepção da culpa, vá-se lá saber, foi dessa namorada meia louca. Mas veio a lembrar-se de uma carta tramada que lhes mandou a vingar-se da traição. Depois, é a descrição dos pais de cada um deles, quase todos alcoólicos. Sexo, cancros a esmo, drogas que prescreveram, aproximação da morte, sem que a finitude seja de facto uma constante do livro. Solidão, expulsões, indiferenças, filosofias baratas daquelas que não cansam muito a cabeça e Cambridge lá tão longe... A reforma vazia de sentido, uma olhadela ao tempo que se esvai numa biblioteca pública, para o solitário se entreter porque a vida é mesmo assim. Um tédio igual ao do livro.

Julian Barnes é, contudo um vencedor de prémios. Ganhou tudo (menos o Nobel, mas ainda vai a tempo) e casou-se com uma agente literária que lhe vai informando, certezinha, qual o gosto do público hodierno (o Saramago também casado com uma agente literária, nada tem a ver com isto, entenda-se. A comparação morre aqui!). Também a Quetzal sabe da poda. E o «crítico» José Mário Silva idem, idem, aspas, aspas, que diz da sua escrita, na própria capa do livro, que «raia o sublime». O sublime foi o aviso do sentido do fim: não me parece voltar a ler Barnes. Fim.

alc

sexta-feira, julho 25, 2025

"Cossacos", Lev Tolstói

 

Relógio D'Água, 2010. Tradução e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra
Continuo no registo de Tolstói sobre o Caúcaso e, ao mesmo tempo, assinalar um apontamento sobre a tradução de Filipe Guerra, muito recentemente falecido e que, juntamente com Nina Guerra fizeram um trabalho notável directamente do russo.
É um lugar-comum dizer-se que a literatura de Tolstói é universal, sendo que este parte de uma dada realidade, aparentemente localizada, para descrever todas as misérias, vaidades e realizações humanas (sejam elas boas ou más). Daí que George Steiner tenha comparado «Cossacos» às obras de Homero. Não me choca a afirmação, sinceramente. Depois de o lerem, caso o não tenham feito ainda, terão o mesmo sentimento de uma humanidade registada nas letras inconfundíveis de Tolstói. E, sim, lembrei-me várias vezes de episódios da Odisseia, pelo desregramento, abusos de todos o tipo, assassinatos cruéis, liberdade total das acções humanas que sabendo da ira de deuses castigadores, tentavam ser maiores do que eles. 

Tolstói escreveu «Cossacos» em 1952. Ora, foi um ano antes que se juntou ao exército russo contra todas as opiniões de amigos e familiares (não por integrar o exército, mas por causa da fama do Caúcaso). Sendo que, para um junker como ele, a comissão era de quatro anos, podemos afirmar, com alguma segurança, que Lev Tolstói, o escreveu ainda durante a comissão militar, mesmo que tenha acabado este romance, dez anos depois. É importante fazer estas contas para entender as descrições muito vívidas do Cáucaso e da «sua» Tchetchénia enxameada de guerreiros independentistas, cossacos que lutavam com os russos e os desprezavam simultaneamente, mulheres que tinham um poder efectivo nas aúns (aldeias) vazias de jovens e homens em permanente guerra, caçadas ou negociações tribais, bebendo vinho quente, vodka e infligindo ao inimigo castigos cruéis. Podemos supôr que o jovem Tolstói, saído da Moscovo cosmopolita e de amizades fictícias, se tenha apaixonado vivamente por esta «verdade» tão real, como atractiva pela liberdade que demonstrava. As relações humanas eram nítidas, vivazes, sem pinga de fingimentos, frontais. Por vezes, violentas. A personagem central tomou o nome de Olénin, certamente o alter ego do escritor.

Tolstói percebeu, no século XIX, que não se pode subjugar o Cáucaso. E, a menos que o consigam, os custos seriam enormes para o agressor. Os russos entenderam-no só em parte e, pelo que lemos em «Cossacos», só com um enorme tabuleiro de xadrez, em que as peças eram mudadas constantemente, se poderia permanecer como ocupante numa Tchetchénia ou em todo o Cáucaso. O que percebemos é que os exércitos russos sabiam ao que vinham e ao assinar tratados, muitas vezes só a palavra bastava, tinham a percepção que seria por pouco tempo. Mas mantinham-se apesar do desprezo enorme que Tolstói reservava para com o Estado-maior, príncipes e o próprio Czar Nicolau I, que reverteu a abolição parcial da servidão de Alexandre I. O retrato que dá dele é uma peça literária inesquecível. 

Foi com amargura que Olénin (Tolstói) pediu a transferência de local, abandonando a sua aldeia cossaca e a mulher tchetchena por quem se tinha apaixonado sem que houvesse qualquer correspondência da parte dela. Tarde, percebeu que não sendo um deles, apesar de provas reais de amizade de alguns dos seus habitantes, se tornaria um viajante, um nómada que em breve sairia do território livre das montanhas e das estepes. Acredito que lendo o final deste «Cossacos», nunca mais o esquecerão.

alc

quarta-feira, julho 23, 2025

"Khadji-Murat", Lev Tolstoi

 

Cavalo de Ferro, 2014. Tradução de Olga Solovova 
«Khadji-Murat» chega-nos do Cáucaso onde Tolstói esteve quatro anos a cumprir serviço militar como junker, após ter desistido da vida «dissoluta», como gostam de afirmar os seus biógrafos, que mantinha em Moscovo. É evidente que não vou classificar esta novela, porque seria de uma arrogância extraordinária tentar falar de Tolstói literariamente. É, tão-só, um dos maiores da literatura que escreve sobre um povo e com ele, um dos chefes carismáticos que se vê enredado em valores familiares e tribais que irão chocar com os motivos independentistas que o fazem lutar pela liberdade face aos russos. Ou, talvez, pelo que entende ser a liberdade e continuidade dos seus costumes ancestrais de um povo guerreiro da montanha. Tolstói, como génio que é, não se compraz em dar a sua «opinião» sobre o que vê, sente ou observa com atenção peculiar. Simplesmente, descreve o comportamento altivo de um homem que aparentemente trai um outro chefe que lutava contra os ocupantes e se passa para o outro lado - o dos russos. Isto é o que vemos, objectivamente. Mas, para lá, desta história, há uma outra e outra e outra. Tal como sucessivas camadas vemos que Murat é fruto de de uma situação que não tem saída e, como se comprova no final que escuso de desvendar aqui, nem a Rússia constitui qualquer liberdade, nem qualquer dos chefes tribais da Tchetchénia consentem que tenha acesso à sua e à dos seus. A Rússia oitocentista estava longe de o entender, mesmo que o tenha usado. O mundo de Hadji-Murat soçobra com ele, mantendo a sua altivez e orgulho intactas.

alc

sábado, julho 19, 2025

«Criador de Estrelas», Olaf Stapledon

 

Editora VS. 2024. Tradução de Carina Correia. Prefácio de Tiago Pires Marques

Na contracapa deste livro Jorge Luís Borges e Arthur C. Clarke avisam que se trata de «uma novela prodigiosa», escreveu o primeiro, e de «a mais poderosa obra de imaginação alguma vez escrita», afirmou o segundo. Assino por baixo, evidentemente. No entanto, devo dizer que tanta imaginação levou-me a prescrutar a net sobre a biografia deste homem procurando, em vão, algum fio condutor que me levasse à constatação, um pouco voyeurista, que terá abusado de drogas, mescal ou álcool em abundância. Nada disso. Olaf Stapledon, inglês bem-comportado, escreveu esta obra em 1937 e foi, pelo que observei, um tipo de gentleman admirador das ideias marxistas, adepto do materialismo histórico, não sem que transpareça nas suas páginas um certo incómodo pelas possibilidades de aparecimento de totalitarismos através das utopias bem intencionadas como foi a da construção da URSS. Se nos ativermos às datas da publicação de «Criador de Estrelas» observamos que foram escritas logo após os processo de Moscovo e, sem o referir explicitamente, ele dá-nos a percepção dessa incomodidade que atravessou toda a intelectualidade da esquerda inglesa dos anos 30. 

Essa incomodidade não se vislumbra no claro darwinismo de que foi absolutamente adepto. Ou pelo pacifismo que abraçou desde a objecção de consciência que proclamou na guerra de 1914/18 tendo servido o exército inglês no salvamento e tratamento dos feridos da frente. Em 1940, contudo, já não o encontramos envolto nos movimentos pacifistas e atacou claramente o nazismo e o fascismo. Morre em 1950 e ficou com o apodo de «pai da ficção científica» moderna e contemporânea. Este conhecimento da devastação que traz a guerra, por quem a viveu de perto, transparece em cada página.

Sobre o livro em si, será difícil descrever a sucessão de acontecimentos e viagens quer interplanetárias, ou mesmo intergalácticas. Tudo é possível em «Criador de Estrelas»: a possibilidade de viajar a uma velocidade superior à da luz, quer através do processo mental, quer de outras, muitas, viagens do próprio planeta com um sol artificial, irradiando a energia necessária para encontrar outros mundos, também eles inteligentes, ou puramente sencientes que ia encontrando, juntamente com um outro habitante de Outra Terra. A sua «imaginação prodigiosa» levou-o a prever aterradoras alterações climáticas na Terra (é evidente que é tudo imaginado!!) e a solução para o que observamos com a deslocação gradual do eixo da terra: nada como uns foguetões atómicos que seriam colocados nos pólos e, se ligados continuamente, colocariam o nosso planeta nos eixos, ou melhor, no eixo inicial. Sinceramente, adoptei este método como meu, se disso tivesse hipótese! Já com a eugenia, desgraçadamente em voga à época, Olaf Stapledon via-a como tendo uma marca positiva, como melhoramento da inteligência humana que levaria as sociedades ao entendimento e paz globais. Creio que sobre a «inteligência humana» e o seu desenvolvimento posterior a 1950, estamos conversados. Sobre a paz, idem. Sobre o fim do racismo, aspas, aspas!

Fiquei com um travo amargo após a leitura de «Criador de Estrelas». Em primeiro lugar, a própria imaginação do autor limita-me a esmo: não consigo idealizar um planeta inteligente submerso pelas águas de um oceano em que os seus habitantes tinham uma vela na crosta das suas costas, que se locomoviam com o vento e que comunicavam entre si através de sinais acústicos. Como se poderia ler Heidegger com estes sinais tão básicos? Olaf Stapledon não explica esse verdadeiro impedimento social. Vida inteligente nas plantas, sim, conheço muito bem e algumas delas existem na política portuguesa. São uma espécie em absoluto desenvolvimento até pelas lianas que se reproduzem em movimentos sexuais através do pólen e do perfume que lançam. Por que não? De resto e em segundo lugar, cada página, uma novidade, até ao cansaço final que nos tolhe o pensamento diminuído já pela impossibilidade manifesta em acompanhar o autor. Finalmente, a leitura era-me seguida de imagens contínuas de seres extraordinários, mas sómente nas gravuras e na banda desenhada dos anos 30 e 40 do século XX e que eram a maravilha dos miúdos dos anos 60 nas páginas de domingo de «O Primeiro de Janeiro», d'«O Século» e do «Diário de Notícias», com mulheres poderosas de revólver à cintura fina e de guerreiros «armários» de collants vestidos. Ambos os sexos em procura constante de glória eterna em planetas desconhecidos. Não se diga que não os amámos.

alc

Annemarie Schwarzenbach. Estudos 5


Anne Marie Schwarzenbach. Estudos 5
com a Galeria/Atelier Ícone

segunda-feira, julho 14, 2025

"Abrandar ou Morrer - A economia do decrescimento", Timothée Parrique"

 

Livros Zigurate, tradução de José Mário Silva, Maio de 2025. O Público de 7 de Julho de 2025 publicou uma entrevista com Timothée Parrique.

A leitura deste livro fez-me recordar uma célebre frase de um ex-jogador de futebol que analisou a sua época ganhadora com «...estivemos à beira do abismo, mas demos um passo em frente!». Não estou a ironizar e esta frase vai direitinha para aqueles que pensam que o capitalismo pode renovar-se por si só, tornando-se «verde», «solidário», «amigo da natureza», «socialmente justo», «democrático», etc. Não, não vai, porque a o seu adn é o lucro acumulado e o crescimento contínuo até ao infinito, se possível fôra e existindo, ou não, um abismo à sua frente. Pouco lhes interessa, aos mais ricos do mundo inteiro (os tais 1%), que o planeta se exaure, que as alterações climáticas façam soçobrar povoações ou países inteiros, que a percentagem de pobres no mundo inteiro tenha aumentado exponencialmente, ou que o Sul ande afogado em dívidas impagáveis aos países do Norte desenvolvido, extractivista, imperialista, neocolonizador, que lhes impõe as emissões de carbono em deslocalizações de empresas tóxicas. Pouco lhes interessa, igualmente, que exista uma panóplia imensa de «trabalhos de merda» (David Graeber), inúteis e tóxicos, que não sem alguma lógica capitalista e especulativa, são os mais bem pagos.

«Abrandar ou Morrer - A economia do decrescimento», de Timothée Parrique, não é somente, um manifesto ecologista. Certamente ecossocialista, certamente anticapitalista, mas eivado de um optimismo que até nos pode irritar, pela apresentação tão desconcertante, como sustentadamente viável, dos pressupostos do decrescimento, movimento que tem vindo a alargar-se, cada vez mais, na opinião pública e desde os inícios dos anos 70. Podemos situá-lo num anticapitalismo, mas não deixa de ser sintomático, os ataques que lhe são arremetidos, quer pelos ecologistas, quer pela esquerda parlamentar europeia, ou que está em vias de o ser, que se recusam a apresentar aos seus eleitores propostas sólidas e congruentes de transição pelo decrescimento e reformulação dos itens do PIB, alfa e ómega do capitalismo e indicador de um crescimento enganoso.

Se o decrescimento, segundo os seus detractores, não resolveria nada, antes enterrando as pessoas na pobreza e na desregulação social, no desemprego, perguntar-nos-íamos por que razão o «crescimento» capitalista não teria já resolvido a equação da desigualdade e, pelo contrário, a tenha aumentado exponencialmente, com o aparecimento de fortunas colossais nunca antes visto, mesmo no liberalismo puro e duro do século XIX. As críticas ao decrescimento são de tal modo desproporcionadas e violentas que chego a admitir que talvez Timothée Parrique tenha razão na apresentação deste livro/manifesto. Sólido nos argumentos e dados no ponto de vista económico e social, é contudo, no plano político onde alguma hesitação se faz sentir. É evidente que o processo de decrescimento (volta-se a sublinhar o aumento de pessoas que investem no «ter menos, para ganhar mais vida») está ligado ao aumento da democracia e do movimento cooperativo e autónomo, municipal até, reconfigurando as empresas, tornando-as não lucrativas e proibindo e criminalizando, por exemplo, a obsolescência, entre perto de 380 itens que se cruzariam na proposta ecossocialista. Sintomática foi a resposta de Michel Rocard um peso-pesado do «socialismo» francês que ao ouvir, pela primeira vez, estas propostas, imaginou de imediato uma «guerra civil», como se essa realidade não existisse já e promovida pelos mais ricos e pelos estados que desmantelam os serviços públicos e descartam qualquer hipótese séria de uma economia socialmente útil. 

O decrescimento torna-se assim a única saída para uma fase de transição que espolete para uma realidade-outra que pode ser o que quisermos, desde que o capitalismo morra de vez. Exemplos de verdadeiras alternativas não faltam.

«Termino com o meu livro preferido, ''The Future is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism'' (Junho de 2022), de Matthias Schmelzer, Andrea Vetter e Aaron Vansintjan. Verdadeira enciclopédia do decrescimento, encontramos nele a integralidade da literatura (quase uma centena de conceitos) cuidadosamente organizada em tipologias: ste críticas do crescimento económico (ecológica, socio-económica, cultural, anticapitalista, feminista, anti-industrialista e internacionalista), cinco correntes de decrescimento consideradas de diferentes ângulos (as instituições, a suficiência, as economias alternativas, o feminismo, tal como o pós-capitalismo e a alter-globalização), três princípios do decrescimento (justiça ecológica; justiça social; autodeterminação e a vida boa; independência em relação aos imperativos do crescimento) e seis famílias de propostas (democratização, economia solidária, e bens comuns; segurança social, redestribuição e limites quanto à acumulação de riqueza; tecnologias conviviais e democráticas; revalorização e redestribuição do trabalho; democratização do metabolismo social; solidariedade internacional). este livro, por si só, resume perfeitamente o vasto campo de estudos em que se tornou o decrescimento.» (pág.163)

alc

quarta-feira, julho 09, 2025

"Intelectuais Portugueses e a Ideia de Esquerda num Tempo de Transição (1968-1986)",João Moreira

 

Afrontamento, 2025
Um dos mais estimulantes ensaios sobre a Esquerda e o seu passado, não tão distante assim quanto o título supõe, tendo em conta que alguns dos pressupostos e ideias das três personagens, aqui retratados na capa do livro, ainda continuam vivos, mesmo com outras linguagens e propósitos. Deve-se isto a João Moreira que, antes, já tinha prefaciado um livro de João Martins Pereira «Portugal e a União Europeia» e que aqui demos conta ( Deriva das Palavras: Resultados da pesquisa para João Martins Pereira ); este estudo debruça-se sobre o caminho teórico e ideológico percorrido por Eduardo Prado Coelho, António José Saraiva e João Martins Pereira entre 1968, início da tão fugaz como enganadora «primavera marcelista», e 1986, data da nossa entrada na União Europeia, no fundo, o corolário da normalização capitalista e democrática. 

O que torna ainda mais interessante este estudo é propormo-nos, ao mesmo tempo da sua leitura, um exercício subjetivo e individual de  colocarmo-nos (a nós que vivemos na adolescência a revolução de 1974-75) sob o olhar de um jovem investigador que observa criticamente o percurso, nem sempre óbvio ou muito linear, das esquerdas a que estes pensadores deram forma e que, de uma certa maneira, pertenciam. Resultado deste teste: nós estamos todos lá e são centenas de milhares os que sentiram politicamente o tapete fugir-lhes debaixo dos pés, os que procuraram sofregamente alternativas que muitas vezes se transformaram em fugas para a frente ou becos sem saída. A(s) Esquerda(s) ainda hoje paga a tergiversações a que foi sujeita após os anos 80 proclamarem o «there is no alternative» de Thatcher e Reagan e o liberalismo subsequente. Dá vontade de dizer que nós somos eles, mesmo que por pouco tempo ou em alguma circunstância que vivemos intensamente e que já reservamos para nós próprios em memórias fugidias.

Profusamente anotado e com transcrições de cartas e artigos de opinião de António José Saraiva, Eduardo Prado Coelho e João Martins Pereira, João Moreira consegue, de um modo notável e fruto de um trabalho meticuloso, dar-nos uma perspectiva clara de percursos extremamente difíceis de distinguir no campo da esquerda e que só revelados com citações e influências, muitas das vezes exteriores, como, aliás, é uma constante do intelectual português. A conjuntura sócio-política quer no mundo, quer em Portugal, também aqui não é esquecida o que esclarece, sem alguma dúvida, algumas das posições mais problemáticas assumidas por alguns dos protagonistas.

Não se pode imaginar a esquerda em Portugal sem o manto protetor da PCP. Em 1968, ainda pontificava a sua influência nos intelectuais portugueses, não sem que o maoísmo, o trotskismo, a onda libertária do Maio 68, ou a luta armada, lhe tivesse corroído os seus alicerces ideológicos. Quer António José Saraiva, quer Eduardo Prado Coelho foram militantes do PCP, embora em períodos diferentes, até pela diferença de idades entre um e outro. O primeiro foi, talvez, o que deu a maior volta na sua vida política, principiando na ortodoxia pura para um apoio tardio à política autoritária de Salazar. Pelo meio, atravessou várias fases, como João Moreira demonstra principalmente nas cartas ao seu amigo e militante comunista Óscar Lopes e na revista Raiz e Utopia, só para utilizar dois exemplos dos muitos que o livro nos dá. Eduardo Prado Coelho, inicia o seu militantismo no PCP já após a Revolução e mostra-se sempre anti-estalinista e heterodoxo, o que não deixa de criar alguns escolhos em camaradas de partido e mesmo no sector intelectual. Em 1976 já não se encontra militante do PCP, enveredando pela construção de uma alternativa entre o PC e o PS e levando-o ao MES, à FSP, ao GIS, à UEDS e, talvez já cansado, ao eanismo e, finalmente, ao PS. Não deixa de ser importante verificar que os quatro primeiros partidos referidos tiveram a coragem de se autodissolver pelas impossibilidades práticas de continuarem o seu caminho. No meio desta viagem, o debate e as ideias que eram uma constante dentro das esquerdas, foram apresentadas de uma maneira primorosa pelo trabalho de João Moreira. Verificamos, nesse estudo, o verdadeiro vigor intelectual das esquerdas e, paradoxalmente, a sua própria fraqueza organizativa. E é aqui que entra João Martins Pereira, o único que embora não pertencesse ao PCP e nunca tivesse sido seu militante, foi secretário de estado da economia do IV Governo Provisório, tendo-se demitido alguns meses após a experiência. É também ele que apresenta uma lucidez e uma crítica que o coloca entre os maiores intelectuais portugueses desde os seus escritos em «O Tempo e o Modo», passando pela redacção da «Gazeta da Semana» e «Gazeta do Mês» até à publicação do arrasador «No Reino dos Falsos Avestruzes» em 1986, data-limite deste ensaio. Nunca deixou de ser marxista crítico, a forma mais óbvia e honesta de ser «marxista». 

É notável igualmente, observar criticamente o percurso paralelo que muitos militantes da esquerda (hoje muito conhecidos nos media e na política) fizeram diretamente para a direita e para o poder, em pouquíssimo tempo e com os mesmos argumentos da chamada «nova direita» francesa que coincidia com as teses liberais da «nova esquerda» da revista «Risco»: «...a esquerda morreu e tem consigo o germe do totalitarismo». Talvez seja mesmo uma notícia de morte um pouco exagerada.

Não se pense, contudo, que estamos perante datas estritamente limitadas. João Moreira consegue dar-nos uma visão geral do mundo cultural e intelectual envolvente a que Portugal esteve criminosamente alheio durante o salazarismo e o «volte face» do marcelismo optando pela continuação da guerra colonial e a chantagem da extrema-direita, saudosa dos velhos tempos da repressão e terror do salazarismo. Mais uma vez, no campo das ideias, Portugal chegou atrasado, tíbio. E a oposição democrática, a Esquerda e, mais tarde, o período da Revolução de 74/75 vai refletir as divisões, as incompreensões, as tragédias que as esquerdas conheceram até hoje. Talvez conhecer estes percursos nos deem mais uma ferramenta de análise para criar todas as utopias, mesmo que alguns de nós as tenham abandonado, porque a aceitação do real não será muito melhor opção. É isso que faz igualmente a atração pelas coisas novas, pelas tais «novas subjetividades» igualmente referidas neste livro notável de João Moreira.

alc

Heiner Müller. Estudos 5

 

Heiner Müller. Estudos 5. Tinta da china, acrílico e colagem. 
Com a Galeria / Atelier Ícone 

quinta-feira, julho 03, 2025

Camille Claudel. Uma nota sobre biografias


Camille Claudel (1864-1943)
Uma fotografia da jovem Camille Claudel faz-me introduzir uma tema que me é caro: o das biografias. Camille Claudel era uma mulher bonita e, além disso, uma escultora que teve como mestre e professor Auguste Rodin que exerceu sobre ela um poder pessoal e profissional bem comprovado pelos factos. Hoje, chamar-se-ia extrativismo intelectual e artístico a forma como Rodin tratou a sua jovem aluna. Não mostrarei aqui a fotografia, existente na nuvem digital, do estado em que se encontrava após 30 anos (!!) presa num hospício francês e depois de várias missivas a rogar pela sua liberdade. Paul Claudel, seu irmão e poeta católico, não sai bem nesta história. Aliás, sai mesmo muito mal e o filme «A Paixão de Camille Claudel», com Isabelle Adjani e Gérard Depardieu não é suave para com aquelas personagens masculinas. 

É, contudo, uma fuga à regra a que eu próprio me impus. Vi este filme, é certo, mais por curiosidade ocasional que crescia à medida que as imagens e as situações se sucediam, do que saber, através dele, a vida de Camille Claudel de que conhecia, em catálogo, já algumas obras e parte da sua vida coartada inutilmente pelos familiares e por Rodin que invejava o seu fulgor escultórico. 

Não leio biografias por sistema e menos ainda as chamas «cartas de amor» de artistas ou poetas que me foram importantes e, pelo que experimentei, nas poucas que li, souberam-me sempre a pouco, ou achei demasiado tendenciosas ou mesmo inverosímeis. Daí, ter lido com algum tédio misturado as cartas de Fernando Pessoa à Ofélia e nem sequer tive interesse, mínimo que fosse, em ler as cartas de amor entre Paul Celan e Ingeborg Bachmann, entre António José Forte e Amélia Bento, ou as de Proust, de Annemarie Schwarzenbach, de Virgina Woolf, de Oscar Wilde ou as de Nietzsche. 

Agora, surgem-me duas biografias de autores portugueses que requerem algum fôlego para as aceitar e que, por isso, nunca lerei, porque conheci as suas obras, os seus escritos, desde os anos 70. São elas as de Herberto Helder e Luiz Pacheco. Extratos que li, por aqui e ali nos media, dizem-me que será melhor nem iniciar a sua leitura. Não me interessam. Pouco acrescentam e, quando o fazem, é irrelevante para uma ideia, mesmo que irreal, do que deles li. Já antes, tomei conhecimento da existência de duas biografias de Fernando Pessoa me passaram completamente ao lado e assim vai continuar. Mas abro exceções evidentes: ler uma biografia de Camões por Aquilino Ribeiro é outra coisa, tal como as de autores que identificam a época e as geografias em que viveram e que não foi a minha. Aí, concedo o conhecimento dos escritos e tenho revisitado autores comparando a sua vida com o que escreveram sobre o mundo, o mundo dos próprios que, por motivos claros, nos quiseram transmitir, transformando aquilo que seriam meras autobiografias em peças literárias imprescindíveis.

alc

segunda-feira, junho 30, 2025

"Um Quarto só Seu", Virginia Woolf

Penguin Clássicos, 2025. Tradução de Isabel Castro Silva 
Uma das razões, talvez a mais importante mas não única, que me leva a ler Virginia Woolf é a sua escrita. Embora este livro tenha sido a compilação e adaptação de uma conferência de dois dias, em Londres, no ano de 1928, a fluidez do discurso é notável, tal como a inteligência viva dos argumentos que Virginia Woolf utiliza para desmontar uma sociedade patriarcal e catedrática, não completamente diferente dos dias de hoje. O que nos deve preocupar é a actualidade do que ali se afirma e da misoginia que entretanto voltou todas as suas armas, antes escondidas, para um chamado «anti-wokismo» (não gosto da expressão ''woke'') cuja pretensa crítica mais não é do que a tentativa de travar qualquer superação das liberdades conquistadas, séculos fora. Ela dá exemplos dramáticos dos ataques de que eram objecto não só as mulheres, mas igualmente tudo o que não fosse branco, homem e cristão. A poesia e a literatura, tal como nos dias de hoje, também sentiram estas ondas de ódio. E tomar conhecimento das propostas apresentadas pelos seus defensores não deixa de ser uma viagem ao pior dos pesadelos.

«Um Quarto só Seu» não é somente uma vindicação feminista. É muito mais do que isso: é uma lição sobre a seriedade que devemos à literatura. É uma aula extraordinária aos leitores (escrevo isto quando se divulga, publicamente, que 53% dos portugueses não leram um só livro em 2024!!) e uma resenha sobre a necessidade de circunspecção e recolhimento para quem escreve, coisa que para as mulheres era, tão-só, impossível de satisfazer, isto pelo menos até ao século XIX. O facto de Virginia Woolf o fazer, uma coisa aparentemente simples como escrever, era porque uma sua tia, ao cair de um cavalo e morrendo em virtude (!) da queda, lhe deixou 500 libras por mês até ao fim dos seus dias. E não era casada, nem tinha filhos, tendo o privilégio de um quarto sossegado para a escrita e não a sala de visitas ou de estar de uma casa. Percebemos, no final desta leitura extraordinária, que não é de somenos. E ela dá exemplos concretos em frases interrompidas em Charlotte Brontë, em «Jane Eyre», com a desenvoltura literária, ainda que escondida dos seus amigos e familiares, de uma Jane Austen. Já para não falar da proibição de mulheres entrarem em bibliotecas públicas para pesquisarem o que bem entendessem, sem serem acompanhadas por mestres ou professores, como aconteceu a Woolf em Oxbridge [cidade universitária imaginada, mas seria a junção de Oxford com Cambridge].

«Voltei pois à minha pousada e, enquanto percorria as ruas escuras, ponderava isto e aquilo, como se costuma fazer no final de uma jornada de trabalho. Perguntei-me por que razão Mrs. Seton não tinha dinheiro para nos deixar; e no efeito que a pobreza tem no espírito; e pensei nos estranhos velhos cavalheiros que vira nessa manhã com abafos de peles pelos ombros; e recordei como, a um assobio nosso, eles vinham a correr; e pensei no órgão a estrondear na capela e nas portas fechadas da biblioteca; e pensei   como é desagradável ficar trancada do lado de fora; e pensei que é talvez pior ficar trancada do lado de dentro; e, pensando na segurança e prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança do outro e no efeito de tradição e da falta de tradição no espírito de uma escritora, pensei por fim que era tempo de arregaçar a pele engelhada do dia, com os seus argumentos e as suas impressões e a sua cólera e o seu riso, e atirá-la para a sebe. Parecia-me estar sozinha em companhia inescrutável. Todos os seres humanos estavam deitados a dormir - de bruços, horizontais, mudos. Nas ruas de Oxbridge ninguém parecia mexer-se. mesmo a porta do hotel abriu de rompante ao toque de uma mão invisível - era tão tarde que não havia sequer um moço de recados acordado que me alumiasse o caminho até ao quarto. (pags.34/35)

«E com aquela inquietude com que se tiram e se voltam a pôr livros na prateleira sem olhar para eles, comecei a vislumbrar uma era futura de pura virilidade assertiva, uma era que as cartas de certos professores (as cartas de Sir Walter Raleigh, por exemplo) parecem prenunciar e que os governantes de Itália [de Mussolini] já puseram em prática. Pois é difícil não se ficar impressionada com a masculinidade não mitigada em Roma; e, qualquer que seja o valor da masculinidade não mitigada no Estado, podemos questionar o seu efeito sobra a arte da poesia. Em todo o caso, segundo os jornais, há uma certa ansiedade sobre a ficção em Itália. Decorreu um encontro de académicos com o objetivo de ''desenvolver o romance italiano''. ''Homens famosos pelos seus apelidos ou na alta finança ou na indústria ou nas corporações fascistas'' reuniram-se no outro dia e discutiram o assunto e enviaram um telegrama ao Duce manifestando esperança ''de que a era fascista dê luz dentro em breve uma poesia digna do seu nome''. Podemos todas juntar-nos a essa esperança piedosa, mas é de duvidar que a poesia possa sair de uma incubadora. A poesia deve ter uma mãe além de um pai. O poema fascista, receio bem, será um pequeno aborto hediondo, como aqueles que vemos em frascos de vidro no museu de uma qualquer cidade de província. esses monstros nunca vivem muito tempo, ao que se diz; nunca se viu um prodígio dessa espécie a cortar erva num campo. Duas cabeças num só corpo não duram uma vida inteira.» (pág.139)

alc

terça-feira, junho 24, 2025

«Panegírico», Guy Debord

 

Antígona, 1993. Tradução de Júlio Henriques
Um ano após esta edição da Antígona, Guy Debord suicida-se numa casa de campo de Auvergne já afastada da «sua» Paris, segundo ele, e creio que por todos nós, em ruínas amontoadas pelo lucro, pela urbanização precursora de uma alienação sem limites, pela gentrificação contemporânea que ele não veio a conhecer nesta dimensão tão brutal como ela é hoje e que é observada por todas as cidades europeias. 
De qualquer modo, Guy Debord continua irrecuperável pelos media. Este «Panegírico» é de consultar de tempos a tempos, para entender de como é feita essa impossibilidade, baseada no desprezo profundo por uma sociedade que o não soube ser, recusando a felicidade e a deriva da liberdade total. Neste momento, em que as soluções fascistas repugnantes andam de braço dado com a especulação do lucro sobre os nossos corpos, promovida pelos estados e tornando-nos mercadorias para venda e troca, ainda há quem abrace, com denodo incontido, o estado a que se chegou. Um panegírico é livre de toda a crítica ou censura como nos lembra Debord. É ele mesmo, sem quaisquer laivos de interpretação.

«Aqueles que a respeito de nada querem escrever depressa o que ninguém lerá uma só vez até ao fim, nos jornais ou nos livros, gabam com grande convicção o estilo da linguagem falada, por o acharem muito mais moderno, directo, fácil. Mas eles próprios não sabem falar. Os seus leitores tão-pouco, visto a linguagem efectivamente falada nas modernas condições de vida ter socialmente chegado a um resumo da sua representação, eleita em segundo grau pelo sufrágio mediático; somada, dará umas seis ou oito maneiras de falar, incessantemente repetidas, e menos de duas centenas de vocábulos, nestes incluindo uma maioria de neologismos; vendo-se a terça parte deste conjunto sujeita a renovação de seis em seis meses. Tudo isso favorece um certo rápido liame. Por meu lado, e pelo contrário, vou escrever sem afectação e sem canseira, como a coisa mais natural e mais fácil do mundo, a língua que aprendi e na maioria das circunstâncias sempre falei. Não sou eu que tenho de a modificar. Os Ciganos consideram com razão que só podemos dizer a verdade na nossa própria língua; na do inimigo deverá reinar sempre a mentira. Outra vantagem: tendo como referência o vasto corpus dos textos clássicos publicados em francês ao longo dos cinco séculos anteriores ao meu nascimento, mas sobretudo nos dois últimos, será sempre fácil traduzirem-me convenientemente em qualquer idioma do futuro, mesmo quando o francês já for língua morta.» (pág.17/18)

«(...) Todas as revoluções penetram na história, e nem por isso a história está pejada delas; os rios das revoluções voltam aonde começaram, para de novo fluírem.» (pág.32)

«(...) Quando ''ser absolutamente moderno'' se tornou uma lei especial proclamada pelo tirano, aquilo que o honesto escravo acima de tudo receia é que o possam suspeitar de passadista.» (pág.75)

Infelizmente, o aumento de escravos honestos nas sociedades modernas é directamente proporcional ao número das tiranias que surgem por todo o mundo. Sobre a escravidão moderna citarei Agamben que sobre Debord afirmou: «Os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e severa das misérias e escravidões de uma sociedade - a do espectáculo, em que vivemos - que nos nossos dias estendeu o seu domínio a todo o planeta. Como tais, os seus livros não precisam de ser esclarecidos nem elogiados, e ainda menos necessitam de um prefácio.» (Da badana do livro).

alc

domingo, junho 22, 2025

«Não São Para Valsas Todas as Noites», José Miguel Gervásio

 

Língua Morta, Outubro de 2022
«(...) Ríamos para afastar o mal que o destino podia fazer às pessoas felizes. Felizes como nós, filhos da revolução e, sem sabermos, de nós mesmos. Por vezes, debaixo do sol tórrido, sem mais nada para fazer, observávamos o tempo a chegar. Bastava-nos isso e a hora de ir comprar gelados ao minimercado Europa que ficava do outro lado da rua. O pequeno entreposto comercial era palco de grandes ambições. Um projecto familiar trazido de uma aldeia do interior do país que pertencia a um tempo não muito distante. Pois ali vivia o homem concreto no seu verdadeiro habitat. as tarefas diárias limitadas ao tempo, ao horário do expediente e ao plástico colorido gerido por um afável capitalista do bairro cujo propósito era o do enriquecimento rápido, de modo a aspirar a todos os prazeres que o dinheiro pudesse dar. Os raciocínios de vinha-d'alhos de uma filistina fé não apresentavam o menor desvio ao conservadorismo judaico-cristão. Ali não houve revolução nenhuma. Todo o animal procura o seu sentido de viver, é verdade. De que valem as grandes filosofias da existência se o conforto do plástico é superior à alienação que o trabalho fomenta? De que vale a máquina que libertou o homem da escravatura da labuta se o atirou para um mundo de fumo onde apenas se vislumbram sombras e silhuetas? A mercadoria confunde-se com o trabalhador, tudo tem um preço. Sem exploração não há lucro. E o lucro que vem a ser? Palavras supostamente sábias, ditas vezes sem conta pelo pai do Quirino em palestras gratuitas à porta do minimercado Europa. O pessoal mais novo à volta dele, a chupar Olás, a ouvi-lo. (...)» (págs.54,55)

E o romance de José Miguel Gervásio continua nesta toada. No final, todos nós achamo-nos como os putos a ouvir o comentador Quirino à porta de minimercados em fervorosos raciocínios em vinha-d'alhos. É o que mais há por aqui, ainda com o nome faiscante de Europa à nossa porta, entretanto escancarada para todas as soluções mirabolantes que a sociedade nos impingiu de grosso modo. Para consumir, de preferência, frescas. Como os gelados que chupamos em frente a televisores. 
Uma leitura a não perder.

alc

sábado, junho 14, 2025

«A Estação da Sombra», Léonora Miano

 

Antígona, Outubro de 2015. Tradução de Miguel Serras Pereira
Não é um livro qualquer, este «A Estação da Sombra», da camaronesa Léonora Miano. A sua obra baseia-se na tradição oral africana, talvez situada no século XVI ou XVII, que ainda sobrevive sobre o terror da escravatura a iniciar então a sua acumulação primitiva de lucros baseada na extracção violenta de homens, mulheres e crianças. Essa tradição oral foi estudada não só pela memória existente através de gerações, e, felizmente, bem viva nas sociedades africanas ainda hoje, mas também pela acção da Société Africaine de Culture e da Unesco conduzida principalmente no Benim, no Gana e nos Camarões. Mas poder-se-ia alargar a todas as zonas onde o comércio escravo prosperou. 

O romance leva-nos a uma realidade esmagadora: o sofrimento indescritível das pessoas apanhadas nas teias (literalmente, em redes) da escravatura e do aprisionamento, e igualmente na desconstrução das estruturas políticas africanas baseadas quer em monarquias hierárquicas com as Bwele que aumentaram o seu autoritarismo e discricionaridade desde que iniciaram os contactos com os brancos que exigiam um comércio de captura de inimigos que até aí não o foram nunca, como os Mulongo onde, embora existindo um chefe, o conselho de anciãos era o que detinha efectivamente o poder. Na destruição completa deste último povo centra-se o romance de Léonora Miano em páginas de grande beleza mística que se intercala com um horror sentido por quem não compreende o que se desenrola à frente dos seus olhos, destruindo a unidade familiar, social e económica de comunidades que se julgavam seguras e em paz. Esse horror que vinha em grandes velas brancas sopradas pelos ventos de pondo (norte) num oceano indescritível e terrífico, fim do seu mundo conhecido.

No entanto, a esperança residia, talvez metaforicamente, num povo que se reconstituiu nos confins de um grande rio, cercado por pântanos inacessíveis e onde se encontravam todos os povos fugidos da escravatura e da captura humanas para serem vendidos em hasta pública em países longínquos onde se dizia habitarem homens brancos sem alma, visto que só viam a riqueza no ouro, na violência e no comércio: era a povoação recém-formada dos Bebayedi. Povos em fuga, sem história, mas resistente nas suas múltiplas tradições, solidário, compreensivo para com as múltiplas línguas e falas que se fixa, nas margens de um grande rio que lhe traz a riqueza que necessita e nada mais do que isso.

«Não foi unicamente por cima da cabana daquelas cujos filhos não foram encontrados que a sombra se suspendeu por um tempo. A sombra está por cima do mundo. A sombra impele as comunidades a enfrentarem-se, a fugirem da sua terra natal. Quando tiver passado o tempo, quando as luas se tiverem sucedido às luas, quem guardará a memória destas dilacerações? Em Bebayedi, as gerações por nascer saberão que fora necessário fugir para escapar às aves de rapina. Ser-lhes-á dito o porquê destas cabanas levantadas sobre as águas. Ser-lhes-á dito: 'A desrazão apoderara-se do mundo, mas alguns recusaram-se a habitar as trevas. Vós sois a descendência dos que disseram não à sombra.'» (pág.135)

alc

domingo, junho 08, 2025

"Electra 28"



Costumo comprar a Electra de um modo intermitente mas não podia faltar a este último número, o 28, o da Primavera de 2025 (assim dito é muito mais apelativo). António Guerreiro conduz-nos pela história e perspectivas actuais e futuras do livro: o de papel e também o digital e a (im)possibilidade deste constituir uma verdadeira substituição ao velho fólio. Para quem gosta de livros e não pode viver sem eles, eis um número da revista que não pode perder.

Embora os artigos sejam muito díspares relativamente à sua qualidade, há alguns, dir-se-ia na sua grande maioria, que vale a pena ler, sublinhar, guardar e memorizar como argumentos necessários à conservação do livro tradicional, ainda assim, e até hoje, mais rápido de consultar do que o digital. Aliás, coisa que nenhum artigo do "Assunto" da Electra 28 releva é o paradoxo do livro digital copiar, no ecrã luminoso, a textura do papel, a passagem visual de uma página para a seguinte ou, até, o som de uma página a ser voltada por dedos inexistentes. Toda uma retro-tecnologia, pelos vistos! E o valor do preço dos livros digitais é tanto mais caro, quanto maior for a imitação do velho livro em papel. 

Sobre a indústria livreira actual com a série interminável de títulos que nos afogam em espaços comerciais que vendem toda a parafernália electrónica (já vi um carro eléctrico da Citroën e batedeiras para sumos à venda junto aos livros de Valter Hugo Mãe; mas, pensando bem, por que não?) é analisada com algum pormenor, principalmente nas entrevistas a John B. Tompson e a Roger Chartier. Este último afirma na entrevista, o seguinte:

"A originalidade radical do mundo electrónico foi o de estabelecer uma separação drástica entre o suporte e o discurso. O ecrã é o suporte de todos os textos que o seu utilizador convoca ou produz. Não está de modo algum ligado a um discurso particular, como acontece com os livros. Um 'livro electrónico' não é verdadeiramente um livro, uma vez que a identidade do seu discurso já não é materializada pelo objecto que o contém e transmite. No mundo da textualidade digital, os discursos já não estão inscritos em objectos que permitam reconhecê-los na sua identidade própria. O mundo digital é um mundo de fragmentos descontextualizados, justapostos, passíveis de serem indefinidamente recompostos, sem que seja necessário ou desejável compreender a relação que os inscreve no livro de onde foram extraídos". 

Entre mais considerações que aqui se poderiam plasmar, vale a pena ler os artigos sobre o que se entende pela novíssima "leitura acelerada" dos dias de hoje e da profusão de temas 'invasores' com que nos deparamos todos os dias e que nos leva a uma outra questão não menorizada pela revista: a da nova censura empresarial radicada nas redes sociais e do papel da Amazon na canibalização das editoras (ainda há editores que escolhem a coerência dos seus catálogos, ou são autores que, cada vez mais, pagam a sua própria edição?) e livrarias que ainda tentam ser independentes. 

A não perder igualmente: "O livro, esse objecto mágico",  artigo de António Guerreiro, "A Biblioteca de Alexandria e as bibliotecas", de Robert Darnton, "O livro numa encruzilhada" de Diogo Ramada Curto e "Pod.Cast", de Diogo Vaz Pinto. 

alc

terça-feira, junho 03, 2025

«Os Sonâmbulos», Hermann Broch

 

Relógio D'Água, 2018. Tradução de António Sousa Ribeiro
Numa entrevista datada de 1962, ao Jornal de Letras e Artes, Mário Cesariny, talvez muito mal-disposto, classifica Hermann Broch como um mau romancista, colocando-o ao lado de um Sade, de um Melville, de um Jünger, de um Proust, de um Kafka, de um Lautréamont, de um Genet e de um Jarry, entre outros. Claro que não poderia faltar um mau poeta para ser comparado a Broch: Fernando Pessoa! Não sei o que diria o autor, falecido em 1951, se se visse comparado a estes nomes, mas no caso dele não me sentiria, de modo algum, frustrado. E Cesariny é um grande poeta. 

Hermann Broch escreveu três romances de uma trilogia a que deu o título geral de «Os Sonâmbulos» constituída  por «1888 - Pasenow ou o romantismo», «1903 - Esch ou a anarquia» e «1918 - Huguenau ou a objectividade». Um período histórico que não é um acaso: situa-se entre a ascensão de Guilherme II até ao final da I Guerra.

Quando chegamos ao fim da trilogia sentimos já alguma nostalgia de não podermos continuar a analisar a verdadeira saga de personagens que povoam e se cruzam nestes três romances. Hermann Broch convive com a técnica da narrativa, juntamente com alguma poesia, considerações pessoais e pensamento disperso. É, talvez, neste último aspecto, que Hermann Broch, talvez contraditoriamente, se encontra mais débil e mais solto. É um pensador humanista, não um filósofo no sentido da criação de uma estrutura lógica de pensamento novo, mas interessante de estudar porque descreve pormenorizadamente e de uma forma magistral as personagens que pontificaram na República de Weimar. Talvez seja por isso que Hanna Arendt o prefaciou postumamente (em vida poucos o conheceram como escritor) e teve igualmente o reconhecimento tardio de Thomas Mann que o comparou a Musil. Estão a verificar este vaivém de considerações póstumas entre um Cesariny e estes últimos. Adiante, que isto vale pouco. 

Hermann Broch dá-nos a sua visão de uma cultura política e social alemã em decadência rápida de valores e de pontos cardeais seguros sobre o império que se esboroa e o fim da I Guerra Mundial. Todo um pathos que vai levar a uma ascensão do nazismo e do totalitarismo que ele conheceu bem, tendo escapado por pouco à morte quando foi aprisionado por aqueles. Talvez por isso, coloque geograficamente o romance na Alsácia, mais concretamente na cidade de Trier, terra natal de Marx, que mudou de mãos variadíssimas vezes entre franceses e alemães. Trier é também Trèves. As personagens são esmiuçadas até ao limite por Broch e é esse facto que mais interage com a cumplicidade do leitor. Nelas vemos um Bertrand cínico, rico, burguês, que esconde a sua homossexualidade maltratando psicologicamente as mulheres com quem se cruza ou que se cruzam com os seus amigos; von Pasenow, militar de carreira apaixonado por uma prostituta, Ruzena, que abandona na pior das misérias, para continuar a casa de família, casando por interesse e que reaparece no terceiro romance completamente derrotado pela inversão de valores que não consegue compreender; Erch, um anarquista que deixa de o ser para abraçar a bíblia evangélica, protestante; Huguenau, um arrivista, desertor, assassino de Erch, que monta o elevador social com um sucesso material e moral imenso. É ele a quem Broch dá um exemplo máximo do que é um protagonista, um actor grandiloquente do totalitarismo.

Dir-me-ão que a descrição desta narrativa é mais do mesmo. Em Hermann Broch, não. O facto de a trilogia ser chamada de «sonâmbula» não é pelo facto destas personagens estarem adormecidas ou num sono hipnótico conforme as circunstâncias políticas, ou fosse do que fosse. É porque mudam consoante os ventos e não lutam para que os factos sejam outros. Não agem. Não produzem ideias que possam transformar em acção, como diria o muito citado Hegel, a quem Broch dá uma primazia especial (também não falta Kant ou Fitche). Há uma personagem, contudo, a que dei talvez demasiada atenção no último romance, aquele em que tudo arde, o mais terrível, em que o fim da guerra se transforma numa revolução, quando da tentativa soviética de 1918: essa personagem é Hanna Werdling. Leitora compulsiva, bela, casada com um marido ausente na guerra, comporta-se como uma espécie de máquina sexualizada quando ele vem de licença, sem qualquer efusão sentimental. Não nutre sensibilidade alguma, talvez um amor distante pelo filho adolescente, mas nem isso a demove de estar distanciada de tudo, de todos, numa enorme casa, cujo jardim a chama constantemente para que observe a mudança única que vê: a da Natureza. A própria natureza mata-a com a gripe «espanhola», também ela uma das epidemias de 1918.

Deixemos Broch dizer ao que vem: «Este romance assenta no pressuposto de que a literatura tem como missão ocupar-se, por um lado, daqueles problemas humanos que são rejeitados pela ciência, por não serem minimamente acessíveis a um tratamento racional e apenas levarem uma vida aparente num jornalismo filosófico moribundo, e, por outro lado, daqueles problemas que a ciência, no seu progresso mais lento, mais exacto, ainda não abarca. O património da literatura, entre o 'já não' e o 'ainda não' da ciência, tornou-se, assim, mais limitado, mas também mais seguro e inclui todo o domínio da experiência irracional, situando-se, mais precisamente, no terreno fronteiriço em que o irracional se manifesta como acto e se torna possível exprimi-lo e representá-lo. Daí resulta a tarefa específica de mostrar como o onírico determina a acção e como acontecer está constantemente pronto a deslizar para o onírico.» (pág.8)

Ler os autores de cultura alemã que descrevem o império e, depois, a República de Weimar é uma lição actual, em que a realidade, tantas vezes analisada por Hermann Broch, se funde com o irracional como demonstra o texto acima. O onírico pode transformar-se rapidamente (mais depressa do que julgamos possível) num pesadelo em que ninguém sai ileso. A resistência queda-se perante o absoluto do totalitarismo, porque há o sonambulismo das massas e, dentro delas, a individualidade pouco mais é do que um arrobo, uma mentira que se vende a quem dá mais por ela, pela subjugação do tal mal de que fala Arendt.

alc