quarta-feira, agosto 21, 2019

De como uma Eva e um Adão derrotam o racismo

Resultado de imagem para neandertais fotos
Neandertal: Foto NatNature
Repentinamente, dei-me com o livro da sueca Karin Bojs entre mãos. «A Grande Família Europeia – Os primeiros 54 000 anos».  Não é, como o editor nos quer fazer crer logo na capa, a história do Homo Sapiens na Europa. Acompanhei com alguma simpatia a obsessão da autora em descobrir a sua geneologia que depois passou a linhagem da sua família. A maior parte de quem tenta fazer isto páram todos no século XVII e já é uma sorte se o conseguirem. Pessoalmente, pensando bem, não aconselho ninguém a fazê-lo sem algum aconselhamento prévio: pode haver surpresas e darmos com linhagens esquisitas e estranhas logo em meados do século XX, faço-me entender? Basta um familiar ou amigo mais próximo, tão próximo, que se intrometeu na génese do nosso eventual auto-conhecimento da família para termos um baque no coração. A sério, se o fizerem estejam preparados para tudo!

Entretanto, quanto aos racistas ou racialistas é melhor que não o leiam. Aliás, nem sei se o saberiam interpretar, mas basta analisar as novas experiências e dados confirmados com o ADN e paf! lá se vai a teoria racista de cada povo ter desenvolvido o seu próprio caminho uns com mais inteligência e capacidade de sobrevivência que outros. Chama-se agora a este tipo de «teoria» (desculpem se estou a exagerar!) de «migracionismo» infelizmente muito em voga nos países do grupo de Visegrado e nos EUA. É possível que se espalhe um pouco por toda a Europa dentro de alguns anos, dada a situação política e social que a faz germinar como cogumelos no húmus da terra. (Reparem que eu disse «húmus da terra» para imitar o valter hugo mãe, senão teria dito simplesmente a humidade da terra).
Ora, voltemos a Karin Bojs de quem me esqueci de dizer que não é cientista. Foi simplesmente jornalista, editora-chefe da prestigiada revista científica Dagens Nyheter e mais que premiada no meio, como ser doutora honoris causa da Universidade de Estocolmo.

Vamos a isto: está provado que os neandertais se cruzaram com os humanos modernos há 54 000 anos. Portanto, os genes estão cá nos nossos corpinhos, entre 2% a 6%. Os bandos dos nossos antepassados eram um pouco canhestros, sem muita motricidade fina, musculosos, com o cérebro de grande volume, produtor pouco sofisticado de arte e de instrumentos, tinham pele escura, o pêlo que lhe cobria o corpo era castanho escuro, assim como o cabelo e os olhos escuros. Evitavam os humanos modernos e é possível que estes se tenham afastado moderadamente dos bandos deles, mas não se prova que tenha havido casos de violência constante com os humanos modernos, tendo-se cruzado inclusive e trocado instrumentos e peles. Os humanos modernos, tinham algumas tecnologias de caça, pesca e recoleção e sabiam defender-se melhor do frio da Era Glacial. São estes a quem chamamos de Homo Sapiens Sapiens e produziam arte e música. Faziam enterramentos cultuais e tinham olhos azuis, cabelos castanhos e pele escura, visto que está mais provado que viemos todos de África e aproveitámos uma mudança climática mais suave para nos espalharmos pela Ásia, pelas Américas através dos maciços gelados do Norte e de uma terra hoje desaparecida entre a Grã-Bretanha e a Suécia – a Doggerland. As águas do mar tinham baixado até ao ponto de permitirem grandes migrações. A Europa foi também ocupada por bandos de Homens e Mulheres com a tal pele escura e olhos azuis, visto que vindo todos de África levou centenas de milhar de anos a mudar a pigmentação da pele para absorverem os poucos raios de sol que existiam. Mas que viemos todos de África os genes estão aí para o comprovar e exigir que afinal se trata de uma só raça que existe – a humana. Embora com um cérebro mais pequeno (o tamanho é irrelevante, neste caso!), éramos mais hábeis a fabricar instrumentos e a viver em grupo, o que nos salvou da extinção. E também é provável que muitos dos nossos antepassados mais espigadotes ou jovens com as hormonas aos saltos tivessem tido relações sexuais com neandertais. Corrijo: não é provável, é certo. O que é mesmo verdadeiro é a extinção dos neandertais, mas ao que se julga agora não foram os humanos modernos que os extinguiram em massa. Foi a inabilidade em utilizar os recursos naturais para a Era Glacial que se aproximava.

Vamos a «Eva». Como sabem, os cientistas são uns brincalhões. Já com a Lucy, deram-lhe o nome por estarem a ouvir o «Lucy in the sky with diamonds (LSD)» dos Beatles. Esta ironia é mais fina. Eva, seguindo o rasto de ADN mitocondrial (que passa das mães para os filhos, sendo por isso uma linhagem feminina), viveu há 200 000 anos e veio a ser a ancestral materna de todos os seres humanos que vivem hoje, Há cerca de 60 000 anos, a linhagem saiu de África e espalhou-se para todo o mundo. Em África corresponde o genoma L. Quando se «saiu» de África os genomas que encontramos são o L3, o M, o D, o N, o R, o RO e o U (que se subdivide em 6 genomas). Na Europa é o genoma U que é preponderante mas não muito mais que os outros genomas todos do mundo onde aparecem igualmente. E nós estamos carregadinhos de todos eles.

No entanto o mais difícil de encontrar, mas também o mais seguro é o cromossoma Y, que passa de pai para filho e que tem mais ADN que as mitocôndrias maternas. É a nossa linha patriarcal a quem os antropólogos e arqueólogos deram o nome de «Adão». Estavam à espera de quê? É lógico que o encontrámos igualmente em África. Alguma vez estes nossos antepassados se uniram e deram origem à humanidade. Para o bem ou para o mal. Segundo a autora, «Acabou-se a discussão. A teoria multirregional estava morta: os humanos anatomicamente modernos têm origem em África».

Antes da forte glaciação de há 54 000 anos atrás, já estávamos espalhados por todo o mundo, embora fôssemos muito, muito poucos. Os bandos que existiam eram constituídos não mais do que umas dezenas e foram os neandertais que nos salvaram antes de se extinguirem. As crianças nascidas desses encontros com os humanos modernos sobreviveram mais porque não tinham consaguinidade. Afinal, os neandertais não se extinguiram completamente: nós somo também eles. Obrigado, portanto, neandertais por uma imunidade bem conseguida.

Quando em 54 000 anos veio a Era Glacial (das quatro existentes na vida da Terra) os nossos antepassados recuaram para sul à procura terras mais amenas, se assim se pode dizer. A Europa do sul e certas zonas do norte poderiam ser habitadas, mas foi o Médio Oriente o mais apetecido. Por lá ficámos, uns recolectores, outros já mais sedentários embora não se possa falar ainda de agricultura ou domesticação de animais. Fomos outra vez para o sul da Europa e Norte de África, américas e Oceania. Não parámos. O Degelo veio e foi uma nova vida. Aumentámos a qualidade da tecnologia, fizémos trocas por trocas, casámo-nos uns com os outros, tornámo-nos mais imunes às doenças e epidemias, aumentámos o tempo médio de vida e aumentámos, por isso, o número de indivíduos. Mas...há 38 500 anos, como prova o Homem de Kostenki descoberto na Rússia, ainda éramos pretos, tínhamos o cabelo encaracolado e castanho escuro e predominavam os tais olhos azuis e claros. Ou seja, fomos ficando mais branquelas para a pigmentação absorver melhor os raios solares. Houve outros que não necessitariam dessa pigmentação, como em África, Oceania e Américas. Mas o livro é riquíssimo em provas sustentadas pelo ADN em Universidades e Institutos de referência em todo o mundo.

Finalmente, o meu espanto: Karin Bojs, agora na reforma e sem a canga formal do jornalismo, fazendo a sua pesquisa científica livremente, falando à vontade com os cientistas que antes tinha entrevistado para a sua revista científica sem as cautelas institucionais a que são obrigados os jornalistas e os cientistas, reparou num incómodo, numa preocupação nunca antes referida: o racismo crescente na comunidade científica e em estudantes principalmente na Europa Central (já nem se fala na América do Norte!). Ela própria assistiu a um boicote a uma conferência sobre apresentação de resultados antropológicos na Universidade de Brno, na República Checa. Foi-lhes dada uma sala pequeníssima onde não cabiam quase 300 pessoas interessadas. Subitamente, entram em cena alguns professores e alunos, arrastando mais cadeiras para a sala de modo a torná-la sufocante, que contestaram abertamente as teorias baseadas em ADN, agora com uma ressalva: sim, houve algumas migrações, mas não tantas que não permitam a defesa da «verdade» deles: que os povos isoladamente desenvolveram-se tendo em conta a inteligência e os laços fortes e comunitários, génese de um povo e de uma nação. Chamam-se a estes senhores fascistas, os «migracionistas» de que falei atrás, cada vez mais e mais interventivos e cujas teorias estão muito longe de qualquer prova mínima que seja. Mas não deixa de ser irónico o nome científico dado à nossa mãe mitocondrial e ao nosso pai cromossomático. Adão e Eva!

Mas o livro não é só isto. Vale mesmo a pena lê-lo. 420 páginas de puro prazer e um enxerto de porrada nos neonazis.

António Luís Catarino
Coimbra, 21 de Agosto de 2019

Resultado de imagem para karin Bojs
A Grande Família Europeia, de Karin Bojs
Ed. Portuguesa Foto: Bertrand Editora