Relógio D'Água, Maio de 2018, Posfácio de Borja Bagunyà
Gonçalo M. Tavares invectiva-nos sempre. Sejamos nós leitores-Bloom, ou não. Espero sê-lo, porque segundo a síntese elaborada em forma de «dicionário literário», o que é, em si, uma eventual ou aparente contradição segundo a definição do próprio: «Toda a literatura-Bloom é feita contra os dicionários. É um combate entre a fixação e o empurrão (a des-fixação). Tudo o que é fixo é inútil; tudo o que é só é assim, é inútil. Tudo o que interessa à literatura-Bloom é tudo o que é assim, mas poderá ainda ser de outra maneira. (...)» (pág.27). E atenção aos leitores-Bloom: o conceito de contradição não é o mesmo a que vulgarmente chamamos «contradição»: «Contradições - Não! Ou seja: claro que sim.» (pág.23). É isto que forma um jogo de interminável inteligência com o escritor-Bloom, neste caso, de Gonçalo M. Tavares.
Na letra A, escolho «Abstracto» - «Toda a literatura é abstracta, concretas são as pedras. Não aceitar isto é aceitar a literatura como copiadora do concreto, como uma segunda mesa, ou uma segunda casa. (...) A literatura não é uma cópia dos objectos do mundo: a casa não é casa, e a mesa não é mesa. A literatura tem objectos próprios, completamente distintos dos que existem na vida dos vivos.
Não confundas um escritor com um arrumador de mobílias.» (pág.13)
Continuo na letra A e páro em «Adiposidade» - Há frases adiposas, frases com barriga.
Todo o adjectivo é uma ameaça adiposa sobre a frase. (...)» (pág.15)
Em B, fixo «Bloom» - Nome universal, aplicável a qualquer coisa ou acontecimento. Cadeira-Bloom, livro-Bloom, morte-Bloom, namoro-Bloom. E etc.-Bloom.» (pág.20)
Na entrada D, escolho um trecho de «Diluição» - (...) O método-Bloom tem por base a alteração constante de processos; mas a diluição ser uma alínea dessa mudança não é o mesmo que a mudança ser uma alínea da diluição. (...) O óbvio: se despejares água sobre um texto, estragarás o texto.» (pág.28)
Também em «Direito» podemos ler: «(...) Se os dois lados de uma frase são fixos, isso significa que a frase é sempre recebida a partir do mesmo ponto de vista. Neste caso: ou o leitor é imbecil ou a frase é imbecil.» (pág.29)
Em «Geografia» lê-se: «A localização geográfica é um erro literário. Cada personagem age ou fica quieta, e basta. Nomes de cidades, nomes de países, de bairros, de casas, de pessoas, todos os nomes localizados são desnecessários. O texto literário não está perdido, mas também não está localizado. (...) A única geografia da literatura é a frase.» (pág.39)
Em «Menu», encontramos algumas fórmulas-Bloom (invenção minha): «Um texto-Bloom pode começar a ser lido a partir da página 60, 342 ou 18. Um texto-Bloom pode até começar a ser lido na página 1. (...) As frases cujo valor individual é dependente das 65 743 frases anteriores são frases que não têm valor individual.
Uma frase é como um organismo: existe no mundo ao lado das outras; Mas existe só e morrerá só. (...)
Cada frase deve agir no texto como se o leitor fosse morrer no instante seguinte. Diz rapidamente o que tens a dizer: é isto que o escritor-Bloom pede a cada frase.» (pág.56)
«Patologia» - «(...) Texto estável é texto doente.
Na literatura, a patologia é o tédio e a saúde é a alteração constante dos sintomas da frase. (...) Só uma saúde instável é capaz de exigir a vigorosa caminhada do texto.» (pág.63)
Em «Sacrilégio» pode ler-se, sem cortes (fragmentos-Bloom?, digo eu): «A evidência de frases sucessivas. A beleza onde não existe a mancha. A mancha onde não existe a breve beleza. A frase que pareça terminar.» (pág.68)
É evidente que não poderia faltar neste livro a entrada relativa à «Técnica», tema caro a Gonçalo M. Tavares e que reproduzo aqui uma parte: «(...) A técnica é ter consciência do espontâneo. (...) Toda a frase que resulta de uma batalha, mesmo que breve, é mais forte do que a frase que resulta de um contrato.
Deverás usar as técnicas que te tornam imperfeito, isto é: que te fazem procurar outras perfeições.
Todo o imperfeito é um início.» (pág.76)
alc