terça-feira, fevereiro 28, 2023

Dois policiais


Dois policiais, duas narrativas completamente distintas separadas também pelo tempo. A primeira, de Carter Dickson, A Flecha Assassina, publicada nos anos 30, consegue ser uma obra interessante passando-se somente num tribunal e, menos, numa tasca inglesa. Toda a trama de um assassinato é descoberta em pleno tribunal, incentivando-nos a deduzir, pelo leitor, o caminho que levará ao final do enredo. As estratégias levadas a cabo pelos advogados de defesa e acusação são marcadas por uma forma literária que nos prende do princípio ao fim.

Já Os Diários Secretos, de Camila Lackberg de 2007, são 500 páginas, algumas desnecessárias, que retratam a impossibilidade  da Suécia e dos Suecos em verem-se livres de um passado de colaboração com os nazis e ocupação alemã sob a capa de uma neutralidade criminosa. Pelos vistos, e segundo as palavras da autora, foram muito mais os colaboracionistas do que os resistentes. Mas isso são contas de outro rosário. A trama é mais viva nas últimas páginas do que o enredo inicial onde a autora, que tem mais de 20 milhões de livros vendidos, parece não saber para onde quer ir a narrativa. Foi com algum alívio que vimos confirmar as nossas suposições de quem era o assassino. Afinal não foram os nazis os carrascos, também aí há bons rapazes!!, mas sim um velho resistente. Ele há gente para tudo.

alc

sábado, fevereiro 25, 2023

«Tár»

 

2022. De Todd Field. Com Cate Blanchett e Nina Hoss
Creio ser já um lugar comum afirmar que é um grande filme, embora fuja, até certo ponto, à matriz de Hollywood. Creio igualmente que todos estiveram com atenção ao seu início com a entrevista de Tár: o Tempo torna-se o mote da conversa levado inteligentemente para o debate pela maestrina protagonizada por uma Cate Blanchett soberba. O tempo que pode ser tanto o ritmado pelo metrónomo ou pelo tempo da vida, aquele que flui durante a nossa duração por aqui. A música pode ser matemática como liberdade pura. É razão e emoção. É Mahler ou Bach, os opostos. Tár vive obcecada pelo som, pelo tempo, e persegue-os e às personagens que os criam. O filme tem igualmente uma visão que pode ser caleidoscópica ou total: o poder que Tár exerce sobre tudo e todos os que a rodeiam sem se dar conta que há todo um mundo lá fora (da música e da política burocrática) que pode virar-se repentinamente contra ela pelo género, pela manipulação tecnológica da imagem (e, já agora, dos fonemas passados a palavras), pela comunicação social e redes sociais, por alunos e assistentes que usam contra o si o poder que lhes dá, numa teia onde, provavelmente, o mérito é o menos importante. Tár cai e a queda é ruidosa. Os seus inimigos exultam. Não por ser uma maestrina de excelência, e o filme abre-nos a porta a excertos musicais como é raro ver em filmes - Miguel Ramalhete Gomes fala disso aqui, num post seu sobre o filme, utilizando um termo «selvajaria» com que logo me identifiquei sobre o som da 5ª de Mahler que nos esmaga -, mas porque o jogo da substituição sem freio é o mote dos dias de hoje, mais do que o crime e castigo das tragédias. A queda está sempre presente, é sempre possível, em nós e o filme lembra-nos isso de uma forma inteligente.
alc

segunda-feira, fevereiro 20, 2023

«Alfabeto Adiado», de José Ricardo Nunes. 13 anos depois um livro diferente com o mesmo título


Um novo «Alfabeto Adiado» de José Ricardo Nunes. Em junho de 2010 um livro com o mesmo nome foi publicado na Deriva. Para mim, com a certeza de um dos melhores livros que editei enquanto mantive a editora em 15 anos. Há uns dias, pela mão do José Ricardo, recebi este livro excecional editado pela Companhia das Ilhas. Uma pequena nota de autor no final do livro faz notar a coincidência do título ressalvando que é um livro novo. Não completamente, contudo. Mas livro novo, mais apurado com mudanças, algumas significativas, de 23 poemas (não sou capaz de lhes chamar «prosas poéticas») inaugurados em 2010, com uma necessidade sentida de síntese, aberta pelo tempo, 13 anos depois. Acrescentou-lhe mais 19 poemas. E é essa necessidade de apuramento, de medição das palavras que faz todo o sentido neste livro extraordinário onde o poeta apresenta várias noções de tempo, seja o Kronos, o Kairos ou o Aion gregos. Um livro que deve ser lido devagar, se possível com outros «adiamentos» anteriores encontrados noutros tantos livros, alguns de viagens (ou o Topos), que faz desta poesia uma das melhores que tenho lido e sentido.

«Repetição da minha vida (excerto)
Sempre me senti deslocado face ao tempo, como se lhe tivesse ganho um avanço substancial, irrecuperável. As coisas acontecem em mim antes ainda de terem uma expressão objectiva e materializada. A realidade surge invariavelmente depois.
A dissonância existe entre o meu agora e o próprio fluir do tempo. (...) Poderia prosseguir com os exemplos durante o resto da noite. Apresentar a regra, porém, sem incoerências nem lapsos, exigir um poder de síntese para o qual a linguagem não revela aptidão. Sou mais lento do que maioria, a falar ou a mover-me, mas apreendo com uma velocidade de relâmpago - eis outra formulação possível. Antecipo. (...)» pág. 25 e 26
José Ricardo Nunes, Companhia das Ilhas, janeiro de 2023.
O autor publicou, igualmente, entre muitos outros, «Versos Olímpicos» (Deriva) ou de «Andar a Par» (Tinta-da-China).

segunda-feira, fevereiro 13, 2023

«Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade», de Marc Augé

 

2ª Edição Letra Livre, 2016. Tradução de Miguel Serras Pereira
«(...) As três figuras do excesso pelas quais tentámos caracterizar a situação de sobremodernidade (a superabundância de acontecimentos, a superabundância espacial e a individualização de referências) permitem que apreendamos sem ignorarmos as suas complexidades e contradições, mas sem fazer também delas o horizonte insuperável de uma modernidade perdida da qual nos restaria apenas assinalar os traços, repertoriar as formações ou inventariar os arquivos. O século XXI será antropológico, não só porque as três figuras do excesso [o Tempo, o Espaço e o Ego] são apenas a forma actual de uma matéria-prima perene que é a própria matéria da antropologia, mas também porque nas situações de sobremodernidade (como nas que a antropologia analisou sob o nome de «aculturação») as componentes se adicionam sem se destruir. Podemos assim tranquilizar antecipadamente aqueles que se apaixonam pelos fenómenos estudados pela antropologia (da aliança à religião, da troca ao poder, da possessão à feitiçaria): estes não estão perto de desaparecer, nem em África, nem na Europa. Mas tornarão a fazer sentido (o sentido) com o resto, num mundo diferente cujas razões e desrazões os antropólogos de amanhã terão, como hoje, a tarefa de compreender.» (pág.40).

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

«A Mais Baixa Profissão», Boris Vian

 

Editado pela Hiena em 1995, 30 anos após a sua 1ª edição póstuma pela Jean-Jacques Pauvert, não sem alguma polémica na ocasião, visto que não é certo, como aliás afirma Aníbal Fernandes em prefácio, que Boris Vian, falecido em 59, alguma vez estivesse de acordo com a sua publicação. No entanto ela existiu, sob protesto de Vian e porque censurada, em 1950. Aliás, em 1959 o seu coração já debilitado desde jovem não aguentou ao ver a versão cinematográfica de «Irei cuspir-vos na Campa». Não chegou a ver o filme completo, pois.
 
Trata-se de uma pequena peça de teatro, traduzida igualmente por Aníbal Fernandes, que serviria para complementar uma outra «L'Equarissage (Pour Tous)» já que teria somente 1 hora de duração!! Mas a verdade é que naquela pequena obra está lá todo o Vian que conhecemos: mordaz, irónico, surrealista, anarca. Não saberemos nunca qual das profissões é a mais baixa de todas: se a de padre, a de polícia, a de sacristão ou de repórter. Para o caso tanto faz. Poria todos no mesmo saco, embora a profissão de ator, ou melhor, de figurante que está na plateia para aplaudir, também não se safa do rol.

Nota curiosa: Aníbal Fernandes fala da apresentação da peça no Teatro Aberto e sem grandes comentários ou circunstâncias (e é pena) informa-nos de estudantes de Coimbra a «gozarem» com «A Mais Baixa Profissão». Sabemos do que estudantes de Coimbra são capazes e, por causa disso, a «cidade do conhecimento» como a si própria se intitula esteve décadas sem conhecer movimentos de vanguarda ou de protesto entre 1870 (as célebres Conferências...) até 1969. Depois da explosão libertária do Prec (que durou pouco na urbe inquietada), voltou à modorra que hoje conhecemos. Investigaremos, contudo, este facto.

Boris Vian, como sabemos, era igualmente engenheiro de máquinas, para além de músico, poeta, escritor e cantautor. A máquina-confessionário que ele próprio desenhou (para esta peça?) é de ser apresentada aqui:
A Máquina de Confessar, de Boris Vian. Hiena, 1995

Editora Hiena, 1995
Prefácio e Tradução de Aníbal Fernandes
Capa de Rui André Delídia

António Luís Catarino


 

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

«Os Anos», Annie Ernaux

 


Tinha lido «O Acontecimento» e visto o filme homónimo. Agora apeguei-me a este «Os Anos» de Annie Ernaux que, antes destes dois livros, não conhecia. Ernaux inicia o seu livro com a frase «Todas as imagens irão desaparecer» e o fio cronológico que tece é uma tentativa conseguida de desbravar as memórias de uma França em prosperidade económica do pós-guerra, mas com feridas por sarar entre gerações. Nascida em plena II Guerra Mundial, em 1940, lembra-se da morte de Estaline que marcou os resistentes franceses contra o nazismo e os comunistas de um PCF fortíssimo. A liberdade política da democracia representativa que se instalou na Europa Ocidental, excetuando a Grécia, Espanha e Portugal (não refere o nosso país), não tinha paralelo com a moral ainda muito influenciada pela Igreja e que perpassava na moral repressiva vigente e na separação dos sexos quer nos liceus, quer nas universidades. Os pais dos jovens exigiam o mesmo comportamento que eles tiveram com os avós, sem perceberem que os tempos e a memória se esvaem na cadência acelerada do «progresso». Se nos lembrarmos do livro de Pascal Quignard «L'Occupation Amèricaine» , já aqui mencionado numa ficha de leitura, perceberemos que os filhos não queriam falar nem da guerra, nem das senhas de racionamento, nem da heroica resistência, ou do esfíngico De Gaulle. Queriam mais e a liberdade era para eles o futuro desenhado ainda pelo comunismo e paradoxalmente pelo jazz, jeans, igualdade de género e prazer sexual. Como nos futuristas viam na velocidade das Vespas, ou no conforto de um banco traseiro de um Citroën ou de um Renault uma possibilidade infinita de felicidade.

Mas «Os Anos» de Annie Ernaux é um livro de memórias, por vezes duras, outras de verdadeira euforia, mas com uma preocupação central que é demonstrada pela epígrafe de Tchekov que escolheu:

« - Sim. Seremos esquecidos. É assim a vida, nada a fazer. O que hoje nos parece importante, sério, cheio de consequências, pois bem, um dia vai cair no esquecimento, vai deixar de ter importância. E o que é curioso é que não podemos saber hoje, o que, um dia, vai ser considerado bom e importante ou medíocre e ridículo. (...) Até pode acontecer que esta vida de agora, que tanto defendemos como nossa, venha um dia a ser considerado estranha, desconfortável, imbecil, não seja suficientemente inocente e, quem sabe, seja até condenável.»

E é este centro de um «diário» de 20 anos que a autora desfila os acontecimentos que a marcaram mais negativa ou positivamente na sua vida. Mas isso pouco interessa. A libertação que constituiu para a mulher a invenção da pílula, que permitiu a esta «comportar-se sexualmente como um homem» sem o perigo da gravidez indesejada, a despenalização do aborto, as carreiras académicas que abraçaram, a possibilidade do divórcio e do recomeço são etapas que descreve com a nostalgia de quem passou pelo Maio de 68 já mais velha que os estudantes barricados no Quartier Latin e na Sorbonne. Previu e aceitou a libertação que residiu nas revoltas quer dos estudantes, quer dos trabalhadores em greve geral. Mas também o tédio das sucessivas eleições e traições da maioria dos políticos socialistas e o quase desaparecimento do PCF. Claramente da esquerda socialista, antirracista, anti Le Pen, destaca o consumo desenfreado como um mal que corrói lentamente a Europa e já não só a França. Acusa os media de induzir ao esquecimento pela avalanche de «notícias» que substituem rapidamente as verdadeiras causas. Causas essas que podem ser perigosas para os governos e que criam a anomia social.

Durante muito tempo professora de liceu simpatizava e, simultaneamente, desconfiava dos jovens que os via cada vez mais consumistas e alienados pelo imediato. Entediavam-se, formavam «turmas desumanas» e quando se manifestavam na rua como em 95, logo que parte das suas reivindicações eram aceites pelos governos, recolhiam às aulas. Via a aproximação da reforma, destruindo apontamentos e livros que antes serviam para preparar aulas e o medo de perder gradualmente a memória foi decisiva para a escrita deste livro. Portanto, quem o ler, sabe que os momentos que ela analisa são os mesmos por que passámos, principalmente a partir dos anos 70, quando atingimos a liberdade em Portugal. A identificação torna-se assim uma atrativo simpático deste «Os Anos» que termina significativamente com um «Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar». O círculo então fechou-se.

Livros do Brasil/Porto Ed.

1ª edição em França - 2008. Em Portugal - 2020

Tradução de Maria Etelvina Santos

António Luís Catarino