sábado, agosto 24, 2024

«A Malnascida», Beatrice Salvioni

 

Alfaguara, Outubro de 2023. Tradução de Ana Cláudia Santos
Malnascido por malnascida, haja quem, e o resultado é o mesmo: leitura obrigatória de uma nova escritora italiana e, para mal de alguns críticos lusos, a onda Elena Ferrante (e talvez a de Roberto Saviano) terá muito a ver com o sucesso momentâneo deste «A Malnascida». Os factos aí estão: Beatrice Salvioni, de 28 anos, edita o seu primeiro livro e repentinamente é um best-seller traduzido em 32 línguas. Atenção que não estou a afirmar que estamos perante um mau livro, nada disso. Embora alguns diálogos pudessem ter sido trabalhados mais um pouco (alguns encontram-se nos mesmos patamares de uma Enid Blyton ou de um Mário Cláudio, e isto não é um elogio. Este último estará bem perto do rés do chão!).

A ideia do romance não sendo uma coisa nova, lê-se bem e a época está bem retratada ao pormenor o que lhe dá verosimilhança e seriedade básica para uma leitura que se quer honesta. Se assim é, reconhece-se, igualmente, trabalho e honestidade à jovem autora. As personagens são descritas psicologicamente de um modo eficaz e não se deixam contradizer à medida que a narrativa se desenvolve para situações-limite. 

O fascismo italiano está presente e sente-se o medo inerente a um estado de coisas que vive essencialmente dele. Mas esse medo não é só político. E aqui reside um certo interesse pelo livro e pela sua personagem principal, Francesca. O medo é real, nascido pelas regras duras de uma família da média burguesia que vê com maus olhos a relação cada vez mais estreita com Maddalena, uma jovem pobre e rebelde, incontrolável, livre, numa sociedade que já não o é há muito e assente no totalitarismo edificado pelo Duce. O antifascismo confunde-se com a necessidade de liberdade, da rejeição da guerra (no caso, da Etiópia) e o medo é mais pessoal que social. Principalmente, a ultrapassagem individual do medo. o medo adolescente de que todos nos lembramos em todas e quaisquer frentes, e é aqui que reside o mote principal deste livro. Beatrice Salvioni guarda aqui uma vitória singular porque nos faz recordar o crescimento da juventude que cada um de nós partilha ou que guarda dentro de si. A transgressão por uma educação violenta, seja no desígnio e construção artificial do género, seja pelas imposições religiosas ou sociais alicerçadas em dogmas falsos.

A tradução de Ana Cláudia Santos é impecável e atenta. Parece-me, até, que evitou males maiores nos tais diálogos que referi antes.

alc