quarta-feira, abril 27, 2022

A Honra Perdida de Katharina Blum - Heinrich Boll

 

«As personagens e a acção desta narrativa são fictícias. Se da descrição de certas práticas jornalísticas tiverem resultado semelhanças com as práticas do jornal Bild, tais semelhanças não foram intencionais nem tão-pouco casuais, são antes uma inevitabilidade.» Esta é a epígrafe que Heinrich Boll nos coloca logo no início de «A Honra Perdida de Katharina Blum» cujo subtítulo, negligenciado por muitas editoras, é este «Ou como a violência pode surgir e onde pode conduzir». 

Comprei a velhinha edição de bolso da Europa-América (baratinha, baratinha), li-o e não mais me esqueci dele. Os anos 70, na Alemanha, foram marcados pelos anos de chumbo e a polícia prendia suspeitos de terrorismo a torto e a direito, não sem o apoio e cumplicidade explícitos entre a polícia, o Estado e o jornalismo tipo Bild que tem os seus gémeos em quase todos os países europeus. Aqui em Portugal não será preciso sequer mencioná-los porque são evidentes nos escaparates das tabacarias. Baseiam-se na manipulação, em notícias falsas, para assim aumentarem as audiências e o lucro, mas também para fazer favores políticos e policiais a fim de justificarem o injustificável. Se acabarem com a reputação de uma pessoa, grupo ou partido político, azar deles. Defendam-se sabendo que em princípio um desmentido ou uma indemnização negociada a priori não tem o efeito de enorme mentira.

A narrativa em si não chega a ser um clássico, até porque Boll afirmou que se tratava de um panfleto, tão caro à política ocidental, tal como os di-bao chineses o foram na Revolução Cultural. Mas os nossos panfletos já vêm do século XVIII. Katharina Blum é uma rapariga da classe pobre alemã que no fim da II Guerra colhe os frutos do Plano Marshall e da prosperidade alemã ocidental que tenta rivalizar a todo o custo com a RDA. Solteira, consegue uma casa com um empréstimo, um volkswagen em segunda mão e é exemplar nos empregos que tem. O que não a impede de um dia para o outro ser acusada de terrorismo. Não como suspeita de terrorismo, mas como verdadeira militante de uma organização de esquerda, cúmplice de outro «terrorista» que afinal só era um desertor que roubou o cofre do regimento onde estava. A narrativa acaba com ela a dar um tiro fatal ao jornalista que manipulou toda a informação que lhe foi confiada, subvertendo afirmações, inventando outras, ameaçando testemunhas, etc.

O mais interessante desta edição da Cavalo de Ferro é o posfácio de Heinrich Boll, além da inquestionável qualidade da narrativa. 10 anos depois da edição de «A Honra Perdida...» escreve o autor: «A respeito da violência de cabeçalhos ainda é pouco o conhecimento de que se dispõe [hoje talvez se saiba mais um pouco]; e pouco se sabe também sobre até onde a violência desses cabeçalhos pode conduzir. Investigá-lo seria uma tarefa de que um dia a criminologia deveria ocupar-se: aquilo que, em toda a sua bestial ''ausência de culpabilidade'', os jornais podem vir a causar. (pág.123)»

É evidente, sabemos todos, que este jornalismo cresceu a um ritmo alucinante desde o período dos anos de chumbo europeu e que se alcandorou exatamente no chamado terrorismo de esquerda dos Baader, das Brigadas Vermelhas, e dos independentistas de esquerda como a ETA e o IRA, servindo o Estado em toda a dimensão da denúncia e da falta de respeito pelo Direito e pelas liberdades individuais e pelo direito de expressão. A emergência da prática de tortura para esses considerados «monstros» começou a ser legitimada pelo povo exatamente com a ajuda desse tipo de jornalismo. O que Boll não teria dito hoje após o 11 de Setembro! Por isso mesmo o autor nobelizado em 1972, teve problemas com a polícia alemã, acusando-o de pactuar com o terrorismo, assaltada a sua casa, imposta a censura a artigos seus nas principais revistas e por aí adiante. Não foi o único, mas provavelmente um dos primeiros perseguidos dos media (ele nunca usou este termo).

Tradução de Paulo Rêgo.
Cavalo de Ferro, Abril de 2022.

António Luís Catarino

domingo, abril 24, 2022

A Entrada na Guerra - Italo Calvino

 

É um livro inédito em Portugal, saído agora mesmo, em Abril de 2022, não vá a D.Quixote perder a «mensagem» que lhe está subjacente nos tempos que correm - a guerra. O original é de 1954. Como tudo o que é pertença de Italo Calvino, lê-se num instante, tendo este homem o condão de dizer muito mais do que aparenta a técnica literária que usa, ou seja, o depuramento da sua escrita que nos faz estar agarrados à leitura e estarmos livres das hipérboles, metáforas que nos enfadam em certo tipo de literatura. 

Italo Calvino, nasceu em 1923, convém dizê-lo para explicar uma questão: conheceu a ascensão do fascismo de Mussolini na Itália, sendo muito novo para ir para a primeira mobilização em 1938 e demasiado «velho» para não se safar a vestir o uniforme das Juventudes Fascistas do PNF. Aconteceu a muito boa gente. Mas em 1943 adere ao PCI e luta de armas na mão contra o fascismo de Mussolini e Hitler. Torna-se um resistente. E para todos os efeitos é assim que eu vejo um resistente. Um tipo que combate de armas na mão contra as ditaduras, mas com um devir revolucionário presente. A resistência pela resistência deu mostras que não vai longe a menos que tenha por detrás apoios desmesurados.

Neste livro, «A Entrada na Guerra» Italo Calvino descreve-nos como se apercebeu da guerra demasiado cedo. Primeiro os desfiles marciais, os uniformes, a masculinidade e a virilidade que muitas vezes levavam jovens como ele a não saber o seu lugar nesta estirpe guerreira: ou são sensíveis e vergonhosamente afastados ou são viris e têm de o demonstrar a todo o momento, mesmo que os factos exigidos pela hierarquia o obriguem. O sexo, atinge o rubro e o inimigo está em todo o lado, as mulheres tornam-se objectos quer na prostituição, quer violadas, o que está implícito em descrição de cenas que o jovem Calvino nos conta.

O saque a Menton, em que ele esteve presente como jovem fascista (que não era), teve raias de loucura. Menton era uma cidade francesa, derrotada pelos nazis alemães e aproveitada pelos italianos para a configuração fascista das novas fronteiras, para vingar a «vitória desonrosa» de 1918. Menton estava deserta porque a população francesa fugiu a tempo em vagas de refugiados. O saque às casas é das descrições mais pungentes do livro. Tudo serve para ser pilhado, partido, incendiado. O vazio, o cheiro, a mutilação, a fuga, sente-se em cada palavra escrita de Calvino. «A viagem a Menton era um caso muito diferente: estava curioso de ver agora aquela cidadezinha, vizinha e parecida com a minha, tornada território conquistado, devastado e deserto; aliás: a única simbólica conquista da nossa guerra de Junho. Tínhamos visto recentemente no cinema um documentário que mostrava a luta das nossas tropas nas ruas de Menton; mas nós sabíamos que era falso, que Menton não tinha sido conquistada por ninguém, mas apenas abandonada pelo exército francês na altura do ataque e depois ocupada e pilhada pelos nossos. (pág.39)»

Uma foto, um jornal, cartas de amor, são destroçadas, enquanto se procura coisas mais valiosas com o incitamento dos chefes nas casas abandonadas. O nosso Italo Calvino, envergonhado por nada saquear, rouba as chaves do Clube francês que agora era a sede do Fascio. Nem se apercebe o que fez: roubou a casa do fascismo local e entretanto, como um rasto de loucura, rouba todas as chaves que encontra enchendo os bolsos que chocalhavam ao som do bater das botas. Entretanto os refugiados aumentavam de dia para dia sem saber o seu fim, o seu destino, homens do campo e da cidade velha que morrem de fadiga ou porque nada mais lhes resta para viver.

A mais inquietante frase do livro está aqui para todos lerem: «Ao ouvir este relatos, a minha mãe dizia já não reconhecer o rosto familiar do nosso povo; e não sabíamos chegar a outra conclusão senão esta: que para o soldado cada terra conquistada era inimiga, até a sua. (pág.42)»

A tradução é de Leonor Reis Sousa.

segunda-feira, abril 18, 2022

« A Retirada dos Dez Mil », de Xenofonte. Tradução do latim e versão de Aquilino Ribeiro, prefácio de Mário de Carvalho

 

Não gostaria que encontrassem nesta ficha de leitura algum tipo de insolência intelectual, mas é minha convicção, cada vez mais séria, que a consulta dos clássicos nos ensina muita coisa, principalmente as causas das boas e más excentricidades humanas e mesmo dos povos. Esta edição da «Anábase» de Xenofonte (para os cépticos será um pseudo, mas é deixá-los dizer, até para dar um ar de sabedoria de copo de branco fresco na mão) é enriquecida com um prefácio de Mário de Carvalho e uma introdução do próprio Aquilino que também o traduziu a partir do latim e versou-o para a língua portuguesa. Já lá vamos. A própria tradução do título faz com que Aquilino nos tenha prevenido da sua infidelidade, mas a verdade é que fica assim muito melhor. Um dos grandes autores do século XX português, segundo as palavras certas de Mário de Carvalho que nos descreve tão bem o sentir grego, do soldado que vota, plebiscita, mata, fere, escraviza, rouba, pilha, até ao comandante e capitães que só decidem depois do plano seja votado pela turba livre de vontades, mas que, ao tomá-la (a decisão) todos lhe seguem sem pestanejar. O grego ama a liberdade, os seus deuses, a quem oferecem inúmeros holocaustos e hecatombes, as suas superstições escondidas nas entranhas dos animais sacrificados, as suas polis. A escrita de Mário de Carvalho leva-nos a perceber este ardor pela vida e também o seu desprezo pela morte justa.

Aquilino Ribeiro, está em Paris em 1938, na Rive-Gauche, supõe-se na gandaia (para usar um termo dele) e a escrever muito, a debater ideias. Conhece M.Tournier, orleanista, católico fervoroso, vive pobremente, de uma cultura enorme. É ele que, após um refrega em que Tournier se encontrava e por ter dado uma paulada a um tipo que o importunava, levou Aquilino a dar um enxurro de porrada ao desgraçado que teve a ousadia de responder com um murro a Tournier. Este, dias mais tarde, oferece-lhe «Anábase» que, segundo as palavras do mestre português é uma «deliciosa, de linfa pura e estreme, colhida com discutível escrúpulo pelas mãos de mil e um tradutores.» A edição que Tournier lhe deu foi uma tradução latina de Joannes Leunclavius, tendo sido comprada por «cinquante sous».

«A Retirada dos Dez Mil», de Xenofonte, tem lugar após a guerra de 29 anos do Peloponeso entre Atenas e Esparta, com a vitória desta última e a decadência gradual da imperialista Atenas, que erradamente se embrenhou na Liga de Delos que exerceu um abusivo domínio sobre outras polis. Milhares de soldados encontravam-se desempregados e sabendo somente guerrear deu-lhes para aceitar um projecto manhoso do sátrapa persa da Lídia, o famoso até hoje Ciro. Manhoso, porque não disse de início ao que ia. O seu projecto megalómano era retirar o rítulo de imperador ao seu irmão Artaxerxes II, no centro da Pérsia, e levando milhares de mercenários e soldados gregos ao engano. É evidente que a sua glória caiu por terra. Venceu a batalha contra o irmão, mas pereceu.

O que ficou para a História, não foi Ciro, foi a retirada de 10 mil soldados gregos de volta à Grécia, às suas pólis, em grande parte sob o comando de Xenofonte, amigo de Sócrates. Esta retirada, maravilhosamente contada por Aquilino, está nos anais das principais escolas militares como sendo uma das mais bem sucedidas do mundo. Outras há, como a retirada de Massena, na 3ª invasão francesa (nos 200 anos desta efeméride não foi utilizado, por Portugal, o termo «invasões», mas sim de «guerras peninsulares» o que hoje não deixa de ser irónico para bom entendedor), ou como as retiradas, bem mais atabalhoadas e cobardes, de Napoleão e Hitler na Rússia. E já que estamos a falar de retiradas marciais, penso que West Point não estudou bem as lições de Xenofonte aos seus pupilos, já que nos lembramos bem das fugas americanas no Vietname, na Somália ou, agora, no Afeganistão. Mas qual o verdadeiro interesse de ler uma retirada clássica como esta? Porque em época de guerra, como a de hoje, uma pessoa honesta compreende o que está na base de um enorme conflito: a guerra deverá sempre ser evitada. Xenofonte prefere, com os seus soldados, a negociação, a alimentação e a manter a vida deles ao ímpeto destruidor de um avanço sangrento. Só opta pela guerra, pela pilhagem ou pelo castigo pela escravidão, quando a hostilidade dos vários povos por onde passam até ao Ponto Euxino e depois ao Bósforo não consegue ser ultrapassada. E mesmo no mar, muitas vezes recorreu à pirataria. Os limites humanos estão sempre postos à prova e nessas condições as prédicas (os gregos amam a palavra), em busca da liberdade e de justiça, por parte de Xenofonte aos seus capitães, aos soldados e aos pensamentos para si próprio fazem parte de uma verdadeira tragédia ou epopeia comparada à Ilíada e, desconfio eu, superior à Odisseia. E foi assim em quinze meses, em avanço e retirada, percorridas mil cento e cinquenta e cinco parasangas (cada, 5,520m). Contei 25 povos em cujos territórios os gregos atravessaram, não sem que houvesse igualmente mudanças políticas ao nível do poder. O povo esse, continuava a pagar tributos a quem quer que fosse.

quinta-feira, abril 07, 2022

« A Rapariga já não gosta de brincar », Filipa Leal

 

Uma interessante experiência em que não está ausente o confinamento obrigatório que se iniciou em 2020. Creio que a Filipa Leal se divertiu neste exercício tão paciente como solitário. A colagem, matéria cara aos surrealistas e ao acaso, às matérias esquisitas e intrigantes em jogos de mesas de pé de galo como diria o nomeado Cesariny neste livro. Igualmente uma referência bonita a Perfecto E. Cuadrado e ao seu «A Única Real Tradição Viva» que guardo em casa e que me serviu para a minha segunda exposição «Abjectos Surreais». Mas a Filipa explica tudo no início, na introdução. 

A língua portuguesa é traiçoeira, como todos sabemos. Um estrangeiro (essa figura sempre mais contemporânea que nós, o que nos elogia) não compreende na nossa língua a dupla negativa que passa a ser afirmativa e a dupla afirmativa que quer ser negativa. «Não! Não! Queres lá ver!...». Assim é o título deste livro. É de uma grande duplicidade que nos instiga a perceber se primeiro vem o poema, se as palavras encontradas em colagens aqui e ali, à boa maneira surrealista; ou as duas. Mas saiu tão bem, que dá gosto tê-lo sempre consigo e perscrutar de onde surgiu aquele encadeamento tão lógico, como aparentemente absurdo. 

A publicação é da responsabilidade da «Não Edições» e a tiragem é de somente 160 exemplares. Eu já tenho o meu que encomendei pela Snob. Façam o mesmo e não se arrependem.

terça-feira, abril 05, 2022

« O Novo Niilismo », Peter Lamborn Wilson

 

Barco Bêbado, 2022
Com tradução e notas de Joana Jacinto, ensaio visual de Vasco Barata e edição sob a responsabilidade de Emanuel Cameira, mais um interessante livro da Barco Bêbado. Desta vez, «O Novo Niilismo» de Peter Lamborn Wilson, ou Hakim Bey, nome que também utiliza nas suas publicações. Não sendo completamente desconhecido, visto que já se tinha publicado as suas «Utopias Piratas» na Deriva e com publicações avulsas em jornais e revistas anarquistas e libertárias. Tenho para mim, que sou um leitor pró-compulsivo, que quando adquiro um livro é com variados objectivos que não vou agora enumerá-los; este, obriga-me a pensar e perguntar-vos se a catástrofe anunciada já se iniciou há anos e estamos ainda na fase da pré-história do desastre. Portanto, não deixa de ter sentido uma forma de neo-niilismo que nos leve a uma forma radical de actuação social apontando os seus culpados e construindo alternativas nómadas e temporárias.

Este livrinho parece, contudo, um desabafo em forma de manifesto que Peter Lamborn Wilson não esconde no seu início; logo depois, coloca toda a esquerda (e mesmo os próprios libertários) e as suas práticas políticas e sociais em causa. O desânimo e o desinteresse sobre todas as todas as coisas levou muita gente boa a afastar-se do activismo que se consubstanciou, por exemplo, no movimento Occupy. Num mundo cuja catástrofe já se iniciou e que se vai agravar cada dia que passa propõe-nos três caminhos alternativos, enfatizando a criação de TAZ (acrónimo de Temporary Autonomous Zones) que são, com algumas pequenas diferenças, as ZAD europeias que têm tido algum êxito no combate à prepotência do Estado, mais concretamente o do francês.

Também o neo-primitivismo de Paul Goodman, entre outros, é colocado em destaque, desencadeando interesse no debate em torno da questão do survivalismo que Wilson realça. O neo-niilismo reside precisamente nas possibilidades reais de sobreviver ao caos que se instala e que o capitalismo espoletou. Um livro importante que pode ser uma alavanca de debates em espaços alternativos. Seria bom que o discutíssemos colectivamente.

« O Logro da Arte Contemporânea », Gianfranco Sanguinetti

 

Barco Bêbado, 2022
Gianfranco Sanguinetti, activista e pensador situacionista foi já publicado em Portugal, pela Antígona que publicou o oportuno (estávamos a sair dos anos de chumbo na Europa) «Do terrorismo e do estado» e pelos seus textos na revista da IS dispersos e co-assinados com Debord, entre outros. 

Aliás, o que faz um livro útil é exactamente a sua oportunidade e este livrinho da Barco Bêbado cumpre esse papel. «O Logro da Arte Contemporânea» foi publicado originalmente em Abril de 2021, na Itália e o título que lhe deu forma diz ao que vem. Com base nas teorias sobre arte e de um panfleto de Pablo Echaurren que denuncia a arte contemporânea como mero produto mercantil (D-M-D) em que D é o dinheiro e M, mercadoria, Sanguinetti define esse mesmo logro como um «fazer crer aos contemporâneos que a arte é aquilo que hoje se vem apresentando enquanto tal.» e continua: «E, como a contemporaneidade dá, e tem dado, repetidas vezes, prova de ser essencialmente uma tola crédula, além de ignorante, pode pôr-se-lhe à mesa, todos os dias, mil alimentos falsificados, rotulados como ''arte'', de que ela se alimentará sem nunca protestar, assim como não protesta contra a neo-comida que se vende em todos os supermercados.»

Para os urbanistas entusiastas das cidades modernas, Sanguinetti dedica-lhes um pequeno capítulo «A Cidade infeliz» onde vê magnetizada essa enorme infelicidade quer nos transportes públicos, quer na taxa de suicídios que sobe cada vez mais e avisadamente escondida; nessas cidades infelizes cresce a violência, a corrupção, a proibição contínua sobre o indivíduo e as liberdades. O autor questiona o que faz a arte sobre isto: «Sobretudo, dá a impressão de [a arte] não querer correr riscos; torna-se assim numa presença que se quer tranquilizadora: tem medo de meter medo. (...) Contenta-se em ser uma arte triste e vil, como de facto é: é, pois, normal que seja infundida daquilo a que Espinosa chamava as paixões tristes, como a do dinheiro.»

Em «Felizes Excepções» e depois de nos apresentar algumas experiências alternativas e de rejeição ao estado e à arte «conceptual» (Sanguinetti, atrás explica como aparece esta noção de conceito ligada à arte, o que é mais um logro), levanta o véu de uma verdadeira arte de revolta de insubmissão ao mesmo tempo que nos apresenta alternativas a seguir: «(...)Estes artistas de facto criam situações conflituantes, provocatórias e verdadeiramente escandalosas, que põem à prova as contradições do espectáculo, a frigidez e a imunidade do público, a solidez das instituições, com a crueldade do détournement pós-situacionista, a impostura subs«versiva, a usurpação da identidade e das prerrogativas do poder, e de uma centena de outros modos.»

Não deixem escapar este livro até por que a sua tiragem é de somente 300 exemplares. Pode adquirir-se pela Livraria Snob, como eu fiz.
A tradução é de Ana Isabel Soares.


sábado, abril 02, 2022

«Pirilampos», Ricardo Gil Soeiro

 


Tive a sorte de ter editado, na Deriva, Bartlebys Reunidos e Palimpsesto com Ricardo Gil Soeiro. Para além da amizade e a rápida empatia que senti como pessoa, percebemos, todos os que o leram, que se tratava de um poeta sólido, coerente e de uma enorme imaginação poética. Um cultor rigoroso da palavra e da emoção. O futuro vai dar razão aos que o vêem como um dos maiores poetas desta geração. Hoje, dia 2, em Lisboa, na Tantos Livros, pelas 17:00, vai ser a apresentação de «Pirilampos», o seu último livro com a chancela da Assírio. Grande contentamento, embora e infelizmente não possa estar presente. Mas convido-os a conhecerem-no.

O livro, esse já o tenho. Corri a comprá-lo e maravilhei-me com ele, como quando era um puto que, junto com o avô, no Verão e em Coimbra, ia para a Arregaça à noite procurar pirilampos. Trazia um ou dois para casa num copo e deixava-os na mesa de cabeceira da minha cama. No dia seguinte o meu avô libertava-os logo de manhã. Havia uma qualquer magia nesses insectos luminosos e que são percebidos nesta obra do Ricardo Gil, continuando com a sua prática palimpséstica de reescrita inovadora e estranha. Mas inteiramente maravilhosa. Hoje já não se encontram facilmente pirilampos e a sua leve alegoria à morte e à vida breve e inútil que temos assumem uma importância grande na leitura que fazemos dos seus poemas. 

«De mim só me lembro
de um segredo tuvo, 
sem culpa e sem enredos,
no poço sombrio da infância.
Suponho que existir é isto:
sucumbir, impiedosamente,
ao musgo podre da memória.
O lago deixando adivinhar o zumbido
de insectos que disputam, sem saberem,
o mudo brilho das estrelas.
(...)»
Pág.28