Intervenção nas conversas de «Cidade Exposta: Coimbra» de António Alves Martins. Sábado, 18:30, Liquidâmbar. 27 de abril de 2019
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Teddy Boys, Londres, anos 50 |
«A cidade existe e tem um simples segredo: só conhece
partidas e nunca regressos»
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Revista Pravda, nº1 |
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Banalidades de Base
em Portugal. 1969 |
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CAP: celebração do 1.000.55º aniversário de Coimbra |
Esta
frase de Calvino foi o ponto de partida de uma conversa proposta por António
Alves Martins enquadrada na sua exposição fotográfica «Cidade Exposta:
Coimbra». Das conversas existentes no espaço do Liquidâmbar, calhou-me a mim
tentar debater com as pessoas as possibilidades das partidas e regressos a uma
cidade. Sobre o meu regresso definitivo a Coimbra passado quase 30 anos de
ausência e que me deram a possibilidade de conhecer outras cidades, não tenho a
certeza de concluir em absoluto com o desafio de Italo Calvino. Comigo, sim,
tive muitas partidas que foram umas dolorosas, outras muito menos. Estas
últimas, foi onde me senti, ou fizeram sentir-me, um estrangeiro. Como
estrangeiro que fui, nem sequer uma despedida se deu. Vejo-a cartografada no
mapa e eis tudo. Com outras foi mais complicado. Tenho o Porto comigo. Cidade
estranha, que me era antipática pela suposta rudeza das gentes, recebeu-me com
um abraço que ainda hoje sinto a falta. Acarinhou-me, estudou-me, fez-me sentir
portuense, sem que, de tempos a tempos, me lembrassem a minha condição de
«sulista». Parti do Porto com um aperto na alma. Foi lá, cidade litoral, que
aprendi o mar. Velejando pelas suas águas pouco mansas vi o Porto de longe com
o cheiro do mar, bem diferente do odor do rio Douro que lá desagua, apertado e
altivo. Entrar no mar de Matosinhos, seguir pela Foz e atracar na Ribeira do
Porto é um perigo real, mas uma necessidade imperiosa de me tornar um deles –
um portuense. Entrar, na Foz, significa
estar ao dispor de três forças contrárias: as correntes de oeste-leste, os
ventos do norte e as marés fortíssimas. Quando o fazemos com êxito, clamamos
vitória.Quanto
ao estranho regresso a Coimbra, vindo do Porto, os sentimentos são
contraditórios. O facto de eu ter aí nascido e estudado uma parte do liceu, dos
meus avós e pais terem morado na mesma rua e ainda sentir a excitação dos
vários regressos a Coimbra em férias ou vindo do colégio para onde fui (ainda
hoje evito entrar na cidade de Tomar por causa disso) descendo Santa Clara,
faz-me recordar o início do meu tempo e do tempo dos meus pais, ou que eles
contavam. Coimbra da II Guerra Mundial e a rivalidade entre o British Council e
a Casa Alemã. A guerra de propaganda que ambos ativaram junto dos estudantes
que se tornaram claramente anglófilos. As manifestações do fim da guerra e,
muito depois mas já na memória dos meus pais e tios, a campanha de Humberto
Delgado e a «modernidade» que aí despontou com os teddy boys, emanação da juventude londrina e das cidades operárias
inglesas e que Coimbra aportuguesou para cowboys
que se tornaram o nome da claque mais importante da Académica. Operários em
Coimbra ainda os conheci, orgulhosos da sua condição e distribuídos pelos
clubes populares e Ateneu onde desenvolviam a resistência ao salazarismo. Tal
como os velhos intelectuais da Brasileira estavam enquadrados politicamente
pelo Partido Comunista, muitos sem o saberem. Daí a força da Presença e do
neo-realismo conimbricense que até ao final dos anos 70 ainda perduraram, não
sem que a crise estudantil de 1969 fizesse abanar essa realidade. Em 69 a
Internacional Situacionista tinha a sua influência no Conselho das Repúblicas,
sendo denominadas CR’s, os mais radicais do movimento e que se opunham já aos
delegados das faculdades organizados pelo PCP. Quando fui para o liceu, no meu
6º ano, as coisas em Coimbra tinham-se modificado muito. Campeavam os grupos
maoístas, alguns trotskistas e a UEC, organismo autónomo da juventude
estudantil do PC. Todos tinham organizações semiclandestinas para combater o
marcelismo e com elas a guerra colonial. Paralelamente a estes começaram a
aparecer pela Praça da República os hippies, com os quais nunca me
identifiquei. Irritava-me, neles, a promoção do peace and love quando sentia que estavamos verdadeiramente em
guerra. Ora, quando se deu o 25 de abril, toda as liberdades foram possíveis e
os contactos com o ocidente, mais profícuo. Se o neo-realismo era uma realidade
em Coimbra até ali, e talvez nos dois ou três anos que se lhe seguiram, as
coisas começaram a mudar. Os situacionistas que sempre tiveram uma presença
importante nos círculos intelectuais da cidade e que foram referidos por
Vaneigem no seu livro «Arte de Viver da Geração Nova» começaram a ter as suas
publicações divulgadas nos cafés. Não nos podemos esquecer que do mesmo autor
foi publicado em 1969, com tradução de Manuel Reis e pela Almedina, as
«Banalidades de Base» sem referência ao autor, logo depois do maio de 68. Assim, nos anos 70 iniciou-se
a publicação da Subversão Internacional, com coordenação de Júlio Henriques, a
Toupeira Vermelha da LCI, o Esquerda Socialista do MES, o UEC, o Luta Popular,
o Combate, a Batalha e a Voz do Povo, todos enquadrados entre as diversas
sensibilidades políticas. Nos anos 80 desponta uma das revistas mais
importantes de Coimbra: a Fenda e a Pravda, coordenadas por Vasco Santos.
Também a Via Latina da AAC teve um papel importante nas alternativas que,
entretanto, se desenhavam enquanto permitiram já que os dinheiros vinham da
direção da própria associação que rapidamente lhes fechou a torneira. O Grupo Ecológico
da AAC tinha igualmente o seu papel de luta e por um ambiente sustentável,
verdades que ninguém quis ouvir em 80 (muito pela divulgação de Francisco Pedroso Lima que sairia igualmente de Coimbra), com os resultados que hoje todos sabemos. Lembro-me
da publicação «A Urtiga». No final do ano de 1986 eu e o Tó Martins entrámos na
Centelha, uma cooperativa editorial nascida nos idos de 69 e que Soveral
Martins coordenava. O nosso objetivo era a renovação da editora já um pouco
esclerosada e cuja dinâmica tinha conhecido melhores dias. Editou-se então a
poesia de Kavafy, de Sena, António Ramos Rosa, Jorge Sousa Braga, Gil de
Carvalho e Phillip Larkin, tudo pela mão do Tó. Da minha parte, mais de
intervenção política, editou-se Félix Guattari e Toni Negri, de Anabela
Carvalho, «O Serviço Social no Estado Novo» e uma publicação em rede internacional
com um boletim «Ekomedia Portugal» que deu origem ao movimento Indymedia. Desde os anos 70 que o movimento punk existia, juntando-se mais tarde a cena New Wave principalmente em Londres. Nessa ocasião, tentámos percebê-los e
rapidamente demos conta que as letras dos temas dos Clash, Joy Division, Sex
Pistols, Stranglers e tantos outros vinham da continuidade dos Velvet
Underground de Lou Reed, de Horses de Patti Smith, ou dos Doors de Jim Morrison.
Foi uma festa. Também o Jazz na sua forma de Beebop e Free conseguiu
conquistar-nos. Não os largámos mais até hoje.
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Punks, Londres 1977 |
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Coimbra 2019. Representação/Diversão do Holocausto por estudantes
do Curso de História da FLUC |
A
questão que se colocou era até onde o provincianismo de Coimbra, cidade que
amava, iria. Se se podia derrotar ou não. Apercebi-me então de quanto o difícil
era. Tarefa impossível. As coisas estavam a tornarem-se feias. O Círculo de
Artes Plásticas da Túlia, desde os anos 70 estava a ser objeto de verdadeiro
ódio por parte dos comunistas, boicotando e pretendendo até censurá-lo como
aconteceu logo a 27 de abril de 74 com uma instalação de uma simples cadeira
vazia com a bandeira de Portugal no Parque da Sereia. Estiveram lá o Alberto
Carneiro e o Dixo, para além de António Barros da Po.Ex e da Fluxus. Sempre
foram olvidados em Coimbra. A Fenda foi para Lisboa. O projeto da Centelha
acabou. Os cinemas fecharam e o independente era uma miragem. O teatro
estudantil uma repetição pueril de temas já estafados. Coimbra voltou nos anos
90 a fechar-se sobre si mesma e sob a sua Universidade, já que as indústrias
tinham sido expulsas e com elas a classe operária. Afinal Coimbra não tinha
mudado, estava precisamente igual à que existia umas décadas antes. Nunca
esqueci o que a minha mãe disse sobre a cidade e a sua relação com a cultura.
Durante anos, demasiados anos, a modernidade cultural nunca veio a cá pôr os
pés. Tudo o que soava a inovação e modernidade era boicotada pelos cowboys e
pela turba da Queima praxista, atualmente um evento a todos os títulos ignóbil
e indigente, relançada pela astúcia parola de comerciantes, entretanto
ultrapassados por centros comerciais dentro da urbe. Saímos, claro. Voltámos 30
anos depois. Talvez nunca cá tivéssemos estado. Agora, que a conhecemos,
damo-nos bem, apesar de tudo, afastados dos seus centros.
Votemos
a Italo Calvino e à exposição fotográfica de António Alves Martins. Dou-lhe um
excerto do autor que penso caber-lhe totalmente:
„-...
Porque, uma vez que começou - perorava -, não há nenhuma razão para parar. O
passo entre a realidade que é fotografada na medida em que nos parece bonita e
a realidade que nos parece bonita quando foi fotografada, é curtíssimo. Se você
fotografa Pierluca enquanto ele está a fazer um castelo de areia, não há razão
para não fotografá-lo enquanto chora porque o castelo se desmoronou e depois
enquanto a ama o consola fazendo-o encontrar no meio da areia uma casquinha de
uma concha. É só você começar a dizer a respeito de alguma coisa: "Ah, que
bonito, que tinha era que tirar uma foto!", e já está no terreno de quem
pensa que tudo o que não é fotografado é perdido, que é como se não tivesse
existido e que para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa,
e para fotografar o mais que se possa é preciso: ou viver de um modo o mais
fotografável possível, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da
própria vida.“ — Italo Calvino