sexta-feira, maio 31, 2019

A beleza de «Breviário Mediterrânico» de Predrag Matvejevitch

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Creio que foi em 1991 que a 1ª edição de «Breviário Mediterrânico» de Predrag Matvejevitch foi editada em Portugal. Nessa ocasião comprei este livro sem que a crítica lhe desse muita importância, mas eu também nunca dei muita importância à crítica. Estamos, pois, empatados. Li-o de um fôlego e maravilhei-me com ele. A editora foi a Quetzal, a tal da ave trepadora, uma metáfora, certamente. Comprei, agora, a 2ª edição que a Quetzal diz que é a primeira. Na ficha técnica nem sequer está essa 1ª edição registada. Mistérios. Acresce que esta edição está muito melhorada, com ilustrações de mapas e desenhos antigos que são uma mais-valia para o livro, não fosse o prefácio indigente de uma folha A4 de Francisco José Viegas e o posfácio de Robert Bréchon. Dispensamo-los de todo e empobrecem claramente a edição. Salva a apresentação da obra, Claudio Magris.
Penso que quando saiu a obra já estava em curso a guerra fratricida entre croatas, sérvios e bósnios que implodiu a Jugoslávia. Predrag Matvejevitch é croata e morreu em Zagreb em 2017. Como sinto a perda de bons escritores, os «meus» escritores, também eu senti a sua ausência. Nunca em lado nenhum do «Breviário» se sente ódio, rancor, exclusão. Pelo contrário: o seu discurso é de paz absoluta, de leitura lenta e atenta às margens do Mediterrâneo. Como ele soube descrevê-lo! As pedras, as areias, os seus faróis, as cidades e as populações que as habitam, as religiões, os seus mosteiros e conventos, as mesquitas, as ilhas e as lendas, os seus barcos altivos, os corais e as árvores que explodem de odores diversos e o modo como consegue conviver tudo isto ainda no Mediterrâneo circundam as expressões mais fortes do «Breviário». É um verdadeiro livro de História sem pretender qualquer pedagogia desnecessária ligada à disciplina. Leiam-no, simplesmente. É um prazer raro. E está lá João de Barros e Pedro Nunes, Gama, Fernão Mendes Pinto, Magalhães, Colombo e os cientistas catalães, árabes, cristãos e muçulmanos, judeus e gentios, comungando as cores, os ventos, as marés e as correntes mediterrânicas. Também Pessoa com a sua questão em «O Marinheiro»: «o mar de outras terras é belo?». Os marinheiros têm essa resposta secreta. Ou Borges: «o mar é uma antiga linguagem que já não consigo decifrar». 
E voltamos às ilhas mediterrânicas belas como só elas são, mas igualmente cruéis como também sabem ser quando os homens as transformam em prisões como aconteceu a Bonaparte, a Trotsky ou a prisão de Kotor que serviu para os opositores ao fascismo, ou a ilha de Rab, um campo de concentração italiano para judeus, ou ainda a ilha de Goli Otok onde estavam presos os jugoslavos que não tinham aceitado a rutura titista (talvez a única prisão para estalinistas em 1948?, digo eu...). E Durrell, sempre Durrell, na sua ilha de Corfu, que o levou a escrever o «Quarteto de Alexandria». E Camus, Aldous Huxley e tantos outros.
Ler o «Breviário Mediterrânico» limpa a alma e a vida. Da morte fica-nos, paradoxalmente, o teatro e a evocação de Leburna, ator de Sisak, dos fins do século III, cujo epitáfio é este: «Muitas vezes morri em cena, mas nunca desta morte». 
A representação de Predrag Matvejevitch do «teatro da vida» mediterrânico descreve assim as praças com uma beleza literária ímpar: «O cais, o porto, o molhe e a ponte do navio, a praça pública, o mercado e a venda de peixe, o estaleiro naval, os espaços que rodeiam fontes e faróis, que contornam igrejas ou mosteiros, os cemitérios e o próprio mar tornam-se assim, de tempos a tempos, palcos ou teatros ao ar livre. Lá se representam diversos papéis, insignificantes ou fatais, comédias e dramas, quotidianos e eternos. Os séculos estão cheios de espetáculos destes: passado e presente do Mediterrâneo, a sua história» (pág.88). A rigorossíssima tradução é de Pedro Támen.

Coimbra, 31 de maio de 2019
António Luís Catarino


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Predrag Matvejevitch
Foto: Getty Images

sábado, maio 18, 2019

Intervenção nas Conversas de «Cidade Exposta: Coimbra». 27 de abril de 2019

Intervenção nas conversas de «Cidade Exposta: Coimbra» de António Alves Martins. Sábado, 18:30, Liquidâmbar. 27 de abril de 2019

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Teddy Boys, Londres, anos 50

«A cidade existe e tem um simples segredo: só conhece partidas e nunca regressos»
Italo Calvino


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Revista Pravda, nº1
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Banalidades de Base
em Portugal. 1969

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CAP: celebração do 1.000.55º aniversário de Coimbra
Esta frase de Calvino foi o ponto de partida de uma conversa proposta por António Alves Martins enquadrada na sua exposição fotográfica «Cidade Exposta: Coimbra». Das conversas existentes no espaço do Liquidâmbar, calhou-me a mim tentar debater com as pessoas as possibilidades das partidas e regressos a uma cidade. Sobre o meu regresso definitivo a Coimbra passado quase 30 anos de ausência e que me deram a possibilidade de conhecer outras cidades, não tenho a certeza de concluir em absoluto com o desafio de Italo Calvino. Comigo, sim, tive muitas partidas que foram umas dolorosas, outras muito menos. Estas últimas, foi onde me senti, ou fizeram sentir-me, um estrangeiro. Como estrangeiro que fui, nem sequer uma despedida se deu. Vejo-a cartografada no mapa e eis tudo. Com outras foi mais complicado. Tenho o Porto comigo. Cidade estranha, que me era antipática pela suposta rudeza das gentes, recebeu-me com um abraço que ainda hoje sinto a falta. Acarinhou-me, estudou-me, fez-me sentir portuense, sem que, de tempos a tempos, me lembrassem a minha condição de «sulista». Parti do Porto com um aperto na alma. Foi lá, cidade litoral, que aprendi o mar. Velejando pelas suas águas pouco mansas vi o Porto de longe com o cheiro do mar, bem diferente do odor do rio Douro que lá desagua, apertado e altivo. Entrar no mar de Matosinhos, seguir pela Foz e atracar na Ribeira do Porto é um perigo real, mas uma necessidade imperiosa de me tornar um deles – um portuense.  Entrar, na Foz, significa estar ao dispor de três forças contrárias: as correntes de oeste-leste, os ventos do norte e as marés fortíssimas. Quando o fazemos com êxito, clamamos vitória.Quanto ao estranho regresso a Coimbra, vindo do Porto, os sentimentos são contraditórios. O facto de eu ter aí nascido e estudado uma parte do liceu, dos meus avós e pais terem morado na mesma rua e ainda sentir a excitação dos vários regressos a Coimbra em férias ou vindo do colégio para onde fui (ainda hoje evito entrar na cidade de Tomar por causa disso) descendo Santa Clara, faz-me recordar o início do meu tempo e do tempo dos meus pais, ou que eles contavam. Coimbra da II Guerra Mundial e a rivalidade entre o British Council e a Casa Alemã. A guerra de propaganda que ambos ativaram junto dos estudantes que se tornaram claramente anglófilos. As manifestações do fim da guerra e, muito depois mas já na memória dos meus pais e tios, a campanha de Humberto Delgado e a «modernidade» que aí despontou com os teddy boys, emanação da juventude londrina e das cidades operárias inglesas e que Coimbra aportuguesou para cowboys que se tornaram o nome da claque mais importante da Académica. Operários em Coimbra ainda os conheci, orgulhosos da sua condição e distribuídos pelos clubes populares e Ateneu onde desenvolviam a resistência ao salazarismo. Tal como os velhos intelectuais da Brasileira estavam enquadrados politicamente pelo Partido Comunista, muitos sem o saberem. Daí a força da Presença e do neo-realismo conimbricense que até ao final dos anos 70 ainda perduraram, não sem que a crise estudantil de 1969 fizesse abanar essa realidade. Em 69 a Internacional Situacionista tinha a sua influência no Conselho das Repúblicas, sendo denominadas CR’s, os mais radicais do movimento e que se opunham já aos delegados das faculdades organizados pelo PCP. Quando fui para o liceu, no meu 6º ano, as coisas em Coimbra tinham-se modificado muito. Campeavam os grupos maoístas, alguns trotskistas e a UEC, organismo autónomo da juventude estudantil do PC. Todos tinham organizações semiclandestinas para combater o marcelismo e com elas a guerra colonial. Paralelamente a estes começaram a aparecer pela Praça da República os hippies, com os quais nunca me identifiquei. Irritava-me, neles, a promoção do peace and love quando sentia que estavamos verdadeiramente em guerra. Ora, quando se deu o 25 de abril, toda as liberdades foram possíveis e os contactos com o ocidente, mais profícuo. Se o neo-realismo era uma realidade em Coimbra até ali, e talvez nos dois ou três anos que se lhe seguiram, as coisas começaram a mudar. Os situacionistas que sempre tiveram uma presença importante nos círculos intelectuais da cidade e que foram referidos por Vaneigem no seu livro «Arte de Viver da Geração Nova» começaram a ter as suas publicações divulgadas nos cafés. Não nos podemos esquecer que do mesmo autor foi publicado em 1969, com tradução de Manuel Reis e pela Almedina, as «Banalidades de Base» sem referência ao autor, logo depois do maio de 68. Assim, nos anos 70 iniciou-se a publicação da Subversão Internacional, com coordenação de Júlio Henriques, a Toupeira Vermelha da LCI, o Esquerda Socialista do MES, o UEC, o Luta Popular, o Combate, a Batalha e a Voz do Povo, todos enquadrados entre as diversas sensibilidades políticas. Nos anos 80 desponta uma das revistas mais importantes de Coimbra: a Fenda e a Pravda, coordenadas por Vasco Santos. Também a Via Latina da AAC teve um papel importante nas alternativas que, entretanto, se desenhavam enquanto permitiram já que os dinheiros vinham da direção da própria associação que rapidamente lhes fechou a torneira. O Grupo Ecológico da AAC tinha igualmente o seu papel de luta e por um ambiente sustentável, verdades que ninguém quis ouvir em 80 (muito pela divulgação de Francisco Pedroso Lima que sairia igualmente de Coimbra), com os resultados que hoje todos sabemos. Lembro-me da publicação «A Urtiga». No final do ano de 1986 eu e o Tó Martins entrámos na Centelha, uma cooperativa editorial nascida nos idos de 69 e que Soveral Martins coordenava. O nosso objetivo era a renovação da editora já um pouco esclerosada e cuja dinâmica tinha conhecido melhores dias. Editou-se então a poesia de Kavafy, de Sena, António Ramos Rosa, Jorge Sousa Braga, Gil de Carvalho e Phillip Larkin, tudo pela mão do Tó. Da minha parte, mais de intervenção política, editou-se Félix Guattari e Toni Negri, de Anabela Carvalho, «O Serviço Social no Estado Novo» e uma publicação em rede internacional com um boletim «Ekomedia Portugal» que deu origem ao movimento Indymedia.  Desde os anos 70 que o movimento punk existia, juntando-se mais tarde a cena New Wave  principalmente em Londres.  Nessa ocasião, tentámos percebê-los e rapidamente demos conta que as letras dos temas dos Clash, Joy Division, Sex Pistols, Stranglers e tantos outros vinham da continuidade dos Velvet Underground de Lou Reed, de Horses de Patti Smith, ou dos Doors de Jim Morrison. Foi uma festa. Também o Jazz na sua forma de Beebop e Free conseguiu conquistar-nos. Não os largámos mais até hoje.


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Punks, Londres 1977
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Coimbra 2019. Representação/Diversão do Holocausto por estudantes
do Curso de História da FLUC
A questão que se colocou era até onde o provincianismo de Coimbra, cidade que amava, iria. Se se podia derrotar ou não. Apercebi-me então de quanto o difícil era. Tarefa impossível. As coisas estavam a tornarem-se feias. O Círculo de Artes Plásticas da Túlia, desde os anos 70 estava a ser objeto de verdadeiro ódio por parte dos comunistas, boicotando e pretendendo até censurá-lo como aconteceu logo a 27 de abril de 74 com uma instalação de uma simples cadeira vazia com a bandeira de Portugal no Parque da Sereia. Estiveram lá o Alberto Carneiro e o Dixo, para além de António Barros da Po.Ex e da Fluxus. Sempre foram olvidados em Coimbra. A Fenda foi para Lisboa. O projeto da Centelha acabou. Os cinemas fecharam e o independente era uma miragem. O teatro estudantil uma repetição pueril de temas já estafados. Coimbra voltou nos anos 90 a fechar-se sobre si mesma e sob a sua Universidade, já que as indústrias tinham sido expulsas e com elas a classe operária. Afinal Coimbra não tinha mudado, estava precisamente igual à que existia umas décadas antes. Nunca esqueci o que a minha mãe disse sobre a cidade e a sua relação com a cultura. Durante anos, demasiados anos, a modernidade cultural nunca veio a cá pôr os pés. Tudo o que soava a inovação e modernidade era boicotada pelos cowboys e pela turba da Queima praxista, atualmente um evento a todos os títulos ignóbil e indigente, relançada pela astúcia parola de comerciantes, entretanto ultrapassados por centros comerciais dentro da urbe. Saímos, claro. Voltámos 30 anos depois. Talvez nunca cá tivéssemos estado. Agora, que a conhecemos, damo-nos bem, apesar de tudo, afastados dos seus centros.

Votemos a Italo Calvino e à exposição fotográfica de António Alves Martins. Dou-lhe um excerto do autor que penso caber-lhe totalmente:

„-... Porque, uma vez que começou - perorava -, não há nenhuma razão para parar. O passo entre a realidade que é fotografada na medida em que nos parece bonita e a realidade que nos parece bonita quando foi fotografada, é curtíssimo. Se você fotografa Pierluca enquanto ele está a fazer um castelo de areia, não há razão para não fotografá-lo enquanto chora porque o castelo se desmoronou e depois enquanto a ama o consola fazendo-o encontrar no meio da areia uma casquinha de uma concha. É só você começar a dizer a respeito de alguma coisa: "Ah, que bonito, que tinha era que tirar uma foto!", e já está no terreno de quem pensa que tudo o que não é fotografado é perdido, que é como se não tivesse existido e que para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso: ou viver de um modo o mais fotografável possível, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida.“ —  Italo Calvino

António Luís Catarino
Coimbra, abril de 2019