sábado, dezembro 31, 2022

100 anos da URSS


Não se compara os 100 anos da URSS com os 100 da revolução de 1917. A primeira não me entusiasma por aí além. Em 1922 a revolução era ainda uma festa. A burguesia perdeu a guerra civil e o apoio ocidental foi um fracasso. Até perto de 1932 a imprensa de esquerda era livre e plural. A arte revolucionária florescia. Embora com Cronstad e Mackno, que manchou para sempre os primeiros anos, a liberdade vivia-se na rua, nas fábricas, nos campos. Os sovietes eram livres e autónomos. Ligo a URSS à burocracia nascente e cada vez mais forte desde a doença e morte de Lenine e o exílio de Trotsky e a consequente subida ao poder de Estaline que, por mero poder de adivinhação e forte intuição política achou que a grande maioria do comité central dos bolcheviques iria morrer primeiro que ele, aquilo começou a descambar. Até 1953 e nos anos seguintes até à estagnação foram os planos quinquenais e a grande industrialização que marcaram o país e os grandes projetos agro-industriais que vingaram. Essa é a imagem que me ficou da URSS. Há mais imagens, mas fico-me por aqui. Estaline é o 18 do Brumário da Revolução libertária e conselhista, soviética, de 1917. Kruchev enterrou-a definitivamente ao querer competir com o capitalismo. Brejnev era velho desde a adolescência. Triste fim de uma Utopia generosa.

quinta-feira, dezembro 22, 2022

«Mortos ou Coisa Melhor», de Violeta Hernando

 

«Mortos ou Coisa Melhor», foi escrito por uma miúda de 14 anos em 1996. A Antígona publicou-o então do castelhano e foi traduzido por Júlio Henriques. Hoje, a miúda terá 40 anos e não sei mais nada dela, a não ser que trabalha numa editora, ilustra e desenha gerindo cursos online. Continua bonita aos 40, asseguro-vos.
A leitura do livro abalou-me bastante. Na altura encontrava-me como ainda jovem professor em Lisboa, na Margem Sul e no distrito de Setúbal e foi uma bomba lê-lo, como já disse atrás. O cavaquismo tinha acabado, seguindo-se o pântano de Guterres e a revolta estudantil no secundário mantinha-se, digamos que em proporção à falta de perspetivas e expetativas de vida. A saída mais comum da pasmaceira da vida nos subúrbios dos meus alunos/as era o rock e as drogas. A cerveja igualmente. Às segundas-feiras entravam nas salas brancos, com ressacas monumentais e não era raro pedirem-me para sair da sala à pressa para se meterem nas casas de banho a vomitar. O livro de Violeta Hernando saiu nessa altura e li-o de uma assentada. Creio tê-lo compreendido em cada linha, permanecendo focado em muitos dos meus alunos e alunas. Querendo saber que cultura pós-punk e pós-new wave, que eu tinha passado com entusiasmo mesmo acreditando no seu «no future», era aquela. «Mortos ou Coisa Melhor» deu-me essa perspetiva, embora Violeta Hernando, com uma mestria literária surpreendente e precoce, tivesse levado a sua experiência em Barcelona para o palco dos Estados Unidos. O vazio demonstrado aos que a liam, as drogas, mesmo as mais duras, os ácidos, as bebidas brancas, os roubos e as armas, a violência latente em cada linha de escrita era por si própria atirada à nossa cara. Com uma altivez impressionante e com um conhecimento literário admirável apontava-nos o dedo como sendo nós os culpados de um tédio infinito, mesmo que o tivéssemos sentido como ela. 
Admiradora de Courtney Love, Iggy Pop e de Sam Shepard termina o seu livro com o «The End» dos Doors. Antes disso, oferece-nos o poema de Cristina Rosenvige:

Julga este idiota que pode tratar-me por boneca,
sou capaz de jogar pinguepongue na sua cabeça oca,
vou subir à roda grande para dizer adeus,
antes de nos vermos mortos ou coisa melhor
antes de ambos nos vermos mortos ou coisa melhor,
antes de ambos nos vermos mortos...
ou coisa melhor...

Por uma questão de respeito para com uma turma em que debatemos o livro, após um amigo de um deles ter morrido a fazer mosh do 1º balcão para a plateia num concerto de uma banda heavy metal, não vos direi a reação deles. Mas sei que o livro andou de mão em mão. 

Agora bem perto da reforma, olho para trás e vejo-os, a essas turmas, e provavelmente, neste momento, com os seus 40 anos, a viverem num outro tédio, num outro espelho, talvez tatuados/as com as suas lembranças na pele. Alguns não sei se sobreviveram. Esses são os que nos fazem lembrar que não ultrapassámos tédio nenhum, muito menos revolucionário. Não tenho tatuagens visíveis no corpo. Nunca as fiz, o que não quer dizer que não as tenha comigo.

«Cães de Caça», de Jorn Lier Horst


É evidente que um livro, uma história policial, que é contada com alguma competência por um ex-polícia ao serviço da instituição norueguesa durante 20 anos tem de dar resultado, sabendo igualmente que os policiais nórdicos têm uma aceitação pública que se tem mantido estável fruto de uma política de marketing bem sucedida e vendendo-se com regularidade séries de TV relativamente em conta até para a nossa televisão. Neste caso, a série em causa foi «Wisting» (nome da personagem principal) que deu na cadeia de cabo AMC. 
Mas no caso de «cães de caça» de Jorn Lier Horst a coisa torna-se verosímil pela experiência profissional do autor o que lhe dá credibilidade. Só não percebo a teimosia vikingue, quase uma caso de estudo, por que razão existem sempre pessoas, geralmente mulheres, a desaparecerem e a surgirem em caves, presas e acorrentadas. Ou é uma coisa que Freud terá explicado em detalhe, ou é uma mania local que veio desde Stieg Larsson, esse sim, um jornalista que conhecia os meandros da polícia e da política sueca e um escritor fora de série. Horst encontra-se a meio caminho, mas ainda lhe falta alguma coisa para atingir a mestria daquele. 

quarta-feira, dezembro 14, 2022

«Floresta é o nome do Mundo», de Ursula K. Le Guin

 

Foto de Dana Gluckestein para a New Yorker
«World for World is Forest», de Ursula K. Le Guin escrito e publicado em 1972, é como se estivéssemos a ver as marchas pacifistas contra a guerra do Vietname, ouvir Joan Baez ou Bob Dylan, ou lembrarmo-nos o que nós fizemos aqui para acabar com os massacres de vietnamitas perpetrados pelos USA. Não que Ursula Le Guin tenha citado neste livro, e por uma única vez, o Vietname ou a guerra, mas ele lá está, presente num planeta longínquo a 27 anos de uma Terra ecologicamente exaurida, sem florestas, água e quase desértica. O planeta Athshe, rico em madeira e floresta servia para ser colonizado e escravizar um povo pacífico, os critures, que, fruto de violências constantes por parte dos humanos, é obrigado a defender-se para sobreviver através de Selver um chefe carismático que se apodera de bases e das armas dos militares e responde violentamente à escravatura e ao genocídio. Mesmo contra o «gel incendiário» (uma referência implícita ao napalm), os hélis lança-chamas e cortando a comunicação direta com a Terra. 

Ursula Le Guin não destrinça o comportamento humano num futuro longínquo do homem medieval, da globalização renascentista ou da moderna, contemporânea. Os sinais aí estão: escravatura, violência sobre seres considerados sub-humanos, genocídio, racismo mesmo entre os colonos humanos, chauvinismo, violações de mulheres, xenofobia e patriarcado. Ao contrário da condição matriarcal do povo de Athshe. Aqui a autora não esconde o seu pessimismo da condição humana, embora uma personagem sobressaia na construção de pontes pacíficas com as populações das florestas: Lyubov, um antropólogo. Não deixa de ser sintomático que esteja na antropologia, a chave do entendimento dos costumes e hábitos que são estranhos a soldados cujo objetivo é o domínio pelo domínio, nem que lhes custe uma vida miserável num planeta distante. É Lyubov que os compreende e que tem a coragem de mudar de campo. Creio ser este o ponto crucial do livro de Ursula Le Guin. Por vezes é necessário mudar de campo para podermos viver dignamente. Ou morrer, como acontece com Lyubov.

Um livro inteligente que mereceria, tal como a autora, um pouco mais de respeito na tradução e na capa que não reproduzirei aqui. Sobre as capas da Europa-América, a única editora que se aproximou em dimensão das médias/grandes editoras da Europa, deveriam ser objeto de um estudo de caso, tão feias que são; mas quanto à tradução só vos dou um exemplo: numa única página, a 117, é repetida a expressão «pura e simplesmente» três vezes. Posso garantir-vos que não há duas páginas seguidas em todo o livro que não apareça pelo menos uma vez!

Isso fez-me afastar de Ursula K. Le Guin? Nunca. Não seria possível. É uma aurora extraordinária. Ainda bem que a Relógio D'Água tomou conta do assunto. Tal como os livros de Philip S. Dick, Robert Heilein ou Azimov que agora estarão em boas mãos.


segunda-feira, dezembro 12, 2022

«Cabaret Vian» recital da Escola da Noite nos seus 30 anos

 

Já 30 anos! Parece que foi ontem. A Escola da Noite tem cumprido o seu papel e comemorar este número redondo com Boris Vian, parece-nos muito bem. Noite bem passada com a disposição dos espetadores na plateia em mesas de quatro lugares, que iam variando conforme o número de amigos. Um ambiente intimista e de cumplicidade com o Teatro. Os atores em dois, três palcos à nossa volta. Uma orquestra e canções de cabaret com muitos trechos de Vian a serem recitados e cantados já que não valerá a pena aqui falar do seu evidente carácter de criador multifacetado e crítico, irónico. António Augusto Barros criador do guião e da direção cénica, lembra-nos isso na folha de sala que circulou pelo espaço. A direção musical foi de Jorri e Luís Pedro Madeira.

Mais surrealista do que existencialista - foi ele que criou o nome sarcástico ao papa desta corrente de pensamento, de Jean-Saul Partre e colaborou com o Colégio de Patafísica de Alfred Jarry - teve o condão de ser um homem das caves noturnas parisienses do pós-guerra, tocando jazz no seu trompete e não deixando a tradicional canção francesa com poemas da sua autoria. Pelo espaço do Teatro da Cerca, A Escola da Noite, pela mão de António Augusto Barros levou-nos a trechos de «A Espuma dos Dias», «As Formigas», «O Arranca Corações» e a variadas canções em que sobressai o libelo antimilitarista «Le Déserteur». 

Uma noite bem passada. Venham mais trinta.

«Betão - Arma de construção maciça do capitalismo», Anselm Jappe


Nada como numa época levezinha, de natal estendido, mergulhar numa leitura como «Betão» do alemão Anselm Jappe, fundador com Robert Kurz e Norbert Trenkle, entre outros, do Grupo Krisis que se destacou pela superação teórica dos situacionistas e por um novo impulso, às teorias marxistas do valor, do trabalho como alienação e ao significado do fetichismo da mercadoria.

Anselm Jappe não separa o betão, mais concretamente o betão armado, do capitalismo. A partir do desastre da ponte Morandi de Génova em 2018, que matou 49 pessoas, produz uma síntese teórica baseada na ligação íntima deste material extrativo com a noção de plasticidade do capitalismo moldado a tudo o que existe no planeta, deixando as consequências do lucro desmedido para as próximas gerações humanas, se as houver. Melhor metáfora não há para o betão: moldável, líquido, omnipresente, e supostamente igualitário. Tal como o capitalismo.

Inicialmente, ainda no século XIX, o betão foi visto como uma libertação para os oprimidos ao ponto de o ligarem ao comunismo. Em parte com razão: o taylorismo (de que Lenine e Trotsky conheciam bem os princípios) e a emulação socialista da época estalinista aplicava-se perfeitamente ao betão. O ritmo fordista de trabalho na passadeira rolante, repetitivo, estupidificante, inumano porque separador do outro, disciplinador porque facilmente vigiado, era a outra face da aplicação do betão armado nas ruas e nas casas onde precisava de ruas largas e retilíneas onde se pudessem deslocar rapidamente um outro símbolo nascente do capital: o automóvel. O betão aplicava-se na íntegra aos pressupostos falsamente igualitários da economia nascente dos «30 gloriosos» pós-guerra. Ainda antes dessa época áurea do betão para todos, para ricos ou pobres, os funcionalistas da Bauhaus com Le Corbusier à cabeça legitimavam o betão e o vidro (e muito o plástico para o design) como os materiais do futuro, onde quer que fosse. Na África quente e tropical, como na Sibéria ou países nórdicos. A climatização forçada viria depois, com as consequências que se sabem! Barato, porque feito em cimento, areia, saibro, cacos e muita água, nem por isso criou verdadeiros atentados ecológicos obrigando a verdadeiras máfias de extração de areia e não só em Nápoles da Camorra. Onde houvesse areia: nos rios, lagos, lagoas, ribeiros... ao ponto de terem desaparecido na Indonésia três ilhas, ou dando origem a desastres arrasadores como o do Katrina, no Louisiana (perto de 20 mil mortos) cujo betão não aguentou a pressão das águas, ou ainda no Japão utilizado como travão a tsunamis, embora sem sucesso; aliás, com a possibilidade de aumentarem os muros à beira-mar para 12 metros de altura deixando as populações impossibilitadas de o ver!

Sobre a nocividade do betão armado pode enumerar-se quatro fatores principais que não se esgotam neste rol: a nocividade do seu pó para a saúde humana, tal como a obrigatoriedade quase absoluta de climatização interior, as consequências da extração maciça de areia e cascalho sobre os meios naturais e habitantes, o consumo exorbitante de energia que provoca e as emissões de CO2 no momento da «cozedura» do betão e a esterilização dos solos. Mas existe também a obsolescência (alma do lucro e do valor da mercadoria) que o betão produz pela sua pouca durabilidade. 

Portanto o betão armado é uma falácia que não aguenta três gerações sem graves problemas de sustentação, qualquer que seja a sua largura ou técnicas de reforço, não impede que o ferro e aço interiores ao concreto se oxide, inchando e rachando a massa de betão que os envolvem. É uma técnica efémera, líquida, que permite o sonho futurista do arquiteto italiano Sant'Elia, amigo de Marinetti e Mussolini que afirmava que uma cidade deveria ser feita com materiais que não resistissem a uma geração. Por muito que nos admiremos Le Corbusier (que colaborou com Pétain, mas que estranhamente foi abraçado pela esquerda no pós-guerra!), De Stijl ou o mais novato Rem Koolas (que o conhecemos bem na incómoda Casa da Música, no Porto) seguiram os passos desta arquitetura líquida em betão armado. Fritz Lang e Ridley Scott mostraram cidades do futuro nos seus filmes baseados nesta teoria em que a rua, simplesmente desaparece ou torna-se intransitável para as pessoas apertadas sobre si próprias com dificuldade de locomoção livre. Talvez marchando ordenadamente...

Foi um passo rápido para o chamado «brutalismo», mas já lá vamos. Fiquemo-nos agora pela ordem de aproximação fascista que tem o funcionalismo como base e nas palavras de Roger-Pol Droit, em 2015, no seu ensaio «O Funcionalismo hoje» e citado no livro por Anselm Jappe: «O seu [de Corbusier, de 1937] objetivo maior: ''Criar uma raça sólida e bela, sã''. A sua obsessão: ''O apuramento das grandes cidades'' a edificação de uma sociedade ordenada, viril, higiénica, racional.'' Os seus conselhos: ''Classifiquem-se as populações urbanas, triem-se, repilam-se os que são inúteis na cidade''. (...) O culto do ângulo reto, o ódio às curvas, à desordem, a rejeição dos sedimentos do acaso e da história, o gosto exacerbado pelo fabrico em série e a estandardização constituem, no entanto, ideologia posta em forma. a cidade deve tornar-se uma máquina de produzir um homem novo, condicionado, controlado 24 horas por dia.» (pág.42). O betão é essencial a esta ideologia totalitária funcionalista de Le Corbusier e seus acólitos e a casa torna-se uma jaula acessível a todos, daí o seu carácter supostamente igualitário porque os dominantes geralmente saem desta selva.

Vamos agora ao «brutalismo». Este «estilo» que não arte porque a liquidez do betão permite todas as possibilidades visuais, Daí, o próprio Anselm Jappe ter compreendido tarde que o termo não tem a carga pejorativa que lhe dão os adversários, mas sim de betão que se chama mesmo de «brutal» e que se caracteriza por estruturas em cubo nas quais o betão surge nu e sem decoração. Assim, edifícios públicos, universidades, centros culturais, teatros, tornaram-se a imagem deste betão «brutal», literalmente concreto (palavra com dois sentidos no português do Brasil e no francês). Por muito que nos sintamos mal dentro dos edifícios e já nem falo no olhar de «fora», o pós-modernismo impôs este estilo como forma de ser efémero que remonta aos futuristas dos anos 20. A «Cidade Líquida» que nos desmonta Baumann e tem dado origem a imensas confusões de conceito. Mas também nos países socialistas o betão teve uma aceitação plena principalmente a partir de Krutchev, dando origem à expressão metafórica de «Concrete? It's Communist!». Mesmo as ruínas em betão, e há imensas pelo mundo fora sem que se saiba muito bem como o reciclar, já que os custos são maiores do que a extração e fabrico em moldes, são uma ode ao horror moderno o que não acontece com as ruínas de edifícios ou estruturas feitos com materiais locais. Mas esse horror cria uma espécie de alegria de fotógrafos que se dedicam sobretudo a fotografar edifícios brutalistas inacabados ou em ruínas e encontramos na Internet páginas inteiras de «mostras» e exposições de casas que ninguém quer, sequer, e por impossibilidade técnica de as reconstruir. 

De qualquer forma, devemos aos letristas e aos situacionistas, já na década de 50 e inícios de 60, a denúncia do funcionalismo de Corbusier e do brutalismo, criando utopias concretas pelo jogo da deriva e da desordem poética, na possibilidade de vida e do jogo permanente entre os seus habitantes. Para isso, seria preciso mudar de vida. Toda uma epifania. Cada vez mais possível porque hoje a construção de cidades obedece também, e segundo o autor, «ao ódio, pertencente à modernidade, a tudo o que é incontrolável, orgânico, labiríntico, fragmentado, imprevisível. (pág.123)»

Editora, Antígona
Tradutor: Miguel Serras Pereira

quarta-feira, dezembro 07, 2022

«Objetos Cortantes» de Gillian Flynn

 


É o que eu digo: o policial tem mudado a olhos vistos. Uma autora nova é uma nova autora, Gillian Flynn, visto que é o seu primeiro livro; constrói uma personagem, jornalista, cujos pais que ela adotou são o seu editor e a mulher, que se corta ela própria compulsivamente por todo o corpo, com graves depressões, bebe bourbon à farta, droga-se com tudo o que encontra e que a irmã mais nova de 13 anos lhe arranja (e que drogas!), uma mãe que a odeia mais um padrasto ausente, faz sexo um pouco ao calhas com o que vai encontrando e para compor isto tudo, numa cidadezinha do Missouri, nos confins do sul dos EUA onde tudo não é o que parece e a mãe é dona e senhora daquilo tudo porque tem uma fábrica de processamento de porcos para abate (?!). A trama até nos agarra, mas para a meio do livro já se desconfia seriamente que a mãe é a assassina de uma outra filha, irmã da personagem que estamos a descrever, através de uma síndrome que parece crescer estatisticamente, em que as mães para provarem que são boas e sofredoras ativam doenças sistemáticas aos filhos para surgirem como extremosas. Até que os filhos morrem! Bonito. Não sabia desta síndrome dos tempos modernos, mas até já desconfio das gripes que tive quando era miúdo. Quando já estamos a prever a prisão da mãe eis que surge, rápido, a descoberta dos assassínios das duas miúdas na pequena cidade e que levou a jornalista que se corta amiúde à sua terrinha: era a irmã mais nova, a tal que lhe arranjava as drogas e festas secretas. Não há como realmente!

Bocejos - ** 

segunda-feira, novembro 28, 2022

«Andanças com Heródoto», de Ryszard Kapuscinsky

 

Kapuscinsky conheceu o mundo. Nascido em 1932 e falecido em 2007, escreveu este livro três anos antes e fá-lo como uma espécie de homenagem a Heródoto. Não segue o seu roteiro geográfico ou cronológico. Escreve que aprendeu com ele a distinguir o que é aproximação da verdade e o que é totalmente mentira ou efabulação não voluntária. Chama-lhe repórter o que é uma grande provocação para os historiadores e académicos que ensinam aos seus alunos a desconfiar de Heródoto, embora lhe apontem o epíteto do primeiro historiador. Kapuscinsky na sua corrida pelo mundo real em todos os continentes do planeta conseguia levar os tomos da «Histórias» do grego de Halicarnasso, hoje Godum na Turquia. Portanto, os dois são conhecedores do que melhor e de pior é capaz a Humanidade. E no pior vem sempre a guerra, esse vírus que não nos larga pela cobiça e pelo poder. E isto não é de humanismo serôdio. É a realidade que convém não esquecer ao optimimista que teima ainda em construir algo de novo. Heródoto, seguido por Kapuscinsky, tem explicações para o facto das guerras serem permanentes. No fundo, pagamos ainda hoje por erros de antepassados, por vinganças e cobiça de poder e riquezas que se arrastam por séculos num turbilhão de ódio que aparentemente não tem fim. Heródoto apresenta-nos duas causas para as guerras e meios para as debelar: 1) assinalar aquele que eu sei ter sido o primeiro a cometer actos injustos; 2) a felicidade humana nunca permanece firme, sendo que esta última será a pior das causas porque a ambição pela chamada felicidade é ilimitada. Viver com o que se tem e com o necessário para uma vida digna e ser feliz com isso é um dos limites mais difíceis para a humanidade seguir. Parecem coisas simples a que um intelectual ocidental, habituado às complicadas teses filosóficas, poderá nem dar a importância que merece, mas não esqueçamos que quem nos escreve são dois homens que calcorrearam desde as regiões mais cosmopolitas até às mais inóspitas e desérticas. Conversaram com pessoas, viram guerras, viveram a paz, provaram de tudo e separaram o trigo do joio nos factos que lhes comunicavam. Se Heródoto conheceu ou relatou as guerras entre Persas e Gregos entre aqueles e Citas e se chegou a escandalizar com a crueldade inominável a que assistiu ou viu referida, também Kapuscinsky não lhe fica atrás com os massacres e torturas na América do Sul, na Ásia ou em África. Disso, ainda estamos como antes. Pior, talvez: a ciência e a tecnologia deram uma ajuda no aumento do sofrimento em teatros de guerra!

Sempre com Heródoto na mochila, Kapuscinsky conheceu a Índia dos anos 50 e a secessão do Paquistão com 1 milhão de mortos e 5 milhões de refugiados, o Egipto de Nasser, a Argélia de Ben Bella, a guerra civil do Congo, o Uganda, o Gana, os primeiros passos para a independência africana, o Senegal de Leopold Senghor e a negritude, a América do Sul, a China das «Cem Flores» de Mao e o início da Revolução Cultural, a Rússia, a Checoslováquia e a «sua» Polónia. Digo «sua» entre aspas porque duvido que ele se sentisse, no fim da vida e após tantas viagens, inteiramente polaco. Antes um cidadão do mundo, um passaporte inexistente mas pertencente a uma qualidade que muito poucos a conseguem atingir. Tal como Heródoto que duvidando de muito do que lhe diziam ou aceitando as coisas com reservas, ia dando conta da diversidade riquíssima da Europa, Ásia e África. Como ele dizia, «continentes todos com nomes de mulheres».

Conhecendo outras obras de Kapuscinsky, esta não é a mais enérgica e longe do que esperamos dele, mas o registo das Histórias de Heródoto que cruza com as suas experiências no mundo faz com que o tenhamos junto a nós. Nem que seja para nos lembrar que não somos assim tão diferentes dos de há 5 mil anos atrás. Tal como os deuses que nos guiam que, desconfiava Heródoto com algum cuidado desprezo, não seriam assim tão diferentes uns dos outros e que eram objecto de imitações entre povos com as mesmas necessidades e sonhos.

quinta-feira, novembro 24, 2022

«Aniquilação», de Michel Houellebecq

 

Isto deve ser a relação normal entre um leitor como eu, que leu o oitavo e último romance de Houellebecq, e sentir que o homem se está a transformar num tipo mais humano, mais comovedor, até. Não será o caso de sentir a velhice a cavalgar face a uma das figuras do Apocalipse com a gadanha apontada a ele, visto que ele nasceu em 1956. Não é assim tão velho e eu também nasci nesse ano, note-se e não gosto nada que mo lembrem, principalmente no registo de «Aniquilação». Embora não me sinta assim tão seguro do que acabo de dizer. Sim, a velhice vem aí e a morte também. Para além disso, Houellebecq não nos lembra somente que somos mortais. Para isso escreveram-se milhões de páginas. Lembra-nos, antes de mais, que somos mortais e do Ocidente o que faz toda a diferença. Para além disso, somos tecnologicamente avançados e presentes numa enorme economia de mercado, cujo dinheiro pressupõe um negócio em tudo o que toca. O nosso corpo, a degenerescência, a doença e a morte são tratados como valor. E sofremos também por isso. O autor que eu gosto e detesto simultaneamente tem esse condão de nos lembrar como sendo quase esse o seu leit motiv dos seus livros. É muito possível que tenhamos perdido uma fatia grande de dignidade na velhice e principalmente na morte. Materializámos a nossa morte e acelerámos a velhice quase pedindo desculpa por teimarmos em viver sem «contribuir» para a riqueza das sociedades. É este o tema principal de «Aniquilação», embora não o entenda como a continuação de mais do mesmo de romances anteriores de Houellebecq. Ele está mais suave, mais empático e continua a escrever incrivelmente bem. Tem trechos de uma beleza notável.

«(...) - A verdadeira razão por trás da eutanásia, na realidade, é que já não suportamos os mais velhos, já nem queremos saber se eles existem, é por isso que os abandonamos em lugares especializados, longe da vista de outros humanos. A quase totalidade das pessoas, hoje, considera que o valor de um ser humano decresce à medida que a idade aumenta; que a vida de um jovem, e mais ainda de uma criança, tem muitíssimo mais valor que a de uma pessoa muito idosa. (...) Em todas as civilizações anteriores, o que determinava a estima, ou até a admiração, que se podia ter por um homem, o que permitia estabelecer o seu valor, era o modo como se comportara efetivamente ao longo de toda a sua vida; (...) Os nossos atos heróicos ou generosos, tudo aquilo que conseguimos atingir, as nossas realizações, as nossas obras, nada disso continua a ter valor aos olhos do mundo; e, muito depressa, deixa de o ter aos nossos próprios olhos. Eliminamos assim qualquer motivação e todo o sentido da nossa vida; é, sem tirar nem pôr, aquilo a que chamamos niilismo. Desvalorizar o passado e o presente, em prol do futuro, desvalorizar o real em favor de uma virtualidade situada num futuro vago, eis os sintomas do niilismo europeu, bem mais decisivos do que todos os relevados por Nietzsche; (págs. 395,396). 

E sobre a morte, depois de considerar que a agonia e principalmente agonia antes da morte se tornou «vergonhosa» no Ocidente a partir dos anos 50, ou seja a partir dos «30 Gloriosos» a própria doença era considerada quase um tabu. Diz o autor de «Aniquilação»: «(...) Quanto à morte, era ela a indecência suprema, rapidamente se determinou a sua ocultação na medida do possível. As cerimónias fúnebres ficaram mais curtas - a inovação técnica da cremação permitia acelerar significativamente os mesmos procedimentos, e a partir dos anos 80 as coisas passaram a ser assim. Muito mais recentemente, as classes mais esclarecidas e as mais progressistas da sociedade começaram a escamotear igualmente a agonia. Tornou-se inevitável, os moribundos defraudavam a esperança que colocávamos neles, reagiam muitas vezes mal à perspetiva de transformar o seu passamento numa festança, o que deu lugar a cenas bastante desagradáveis.» (pág.570)

Houellebecq está pois no seu auge como escritor. Não sei se mudou e no próximo romance espelhará, como foi hábito nos romances anteriores o seu sarcasmo e cinismo, mas a leitura de «Aniquilação» é fundamental porque se trata de um livro extraordinário. É evidente que quando se fala de aniquilação, mesmo que neste caso, seja de pessoas, de sujeitos que amam e vivem até ao fim, a finitude também perpassa para a Humanidade em estado semiletárgico, alienado pela guerra e pela precariedade material e dos sentidos, igualmente. Houellebecq prevê o regresso de um niilismo próprio do estado demencial em que o planeta se encontra. No meio do romance aconteceu-me um sobressalto: cita um livro de John Zerzan que eu editei na Deriva - «Futuro Primitivo» - e um dos agitadores das grandes manifestações de Seattle, como sendo um «anarcoprimitivista» um movimento tipicamente americano embora creio que ele confundiu com o «sobrevivalismo» uma corrente mais radical que não é seguida por Zerzan. São pormenores, mas no essencial até se aceita a descrição de «Futuro Primitivo» https://derivadaspalavras.blogspot.com/search?q=futuro+primitivo como pondo em causa a tecnologia moderna. Compará-lo a Kazinsky, ou Unabomber, é que é um pouco mais forçado. Não têm nada a ver um com o outro. O primeiro não é niilista, joga na ação de massas; o segundo talvez seja, se ainda for vivo, esquecido numa prisão dos EUA. Poderia ter citado um autor que defende um neoniilismo falecido há meses e que também editei - Peter Lamborn Wilson ou Hakim Bey cujo último livro foi recentemente editado em Portugal e defende exatamente um novo niilismo salvífico. O outro sobressalto é quando cita um livro que li e que ainda não foi publicado aqui, trata-se de «Le Lambeau» de Philippe Lançon que ficou gravemente ferido aquando do ataque islamita à Charlie Hebdo. Conta nesse livro o suplício que passou dois anos num hospital de Paris a tentar a recuperação que nunca foi total. Devo dizer que o seu relato é impressionante e que publiquei neste blogue https://derivadaspalavras.blogspot.com/search?q=phillipe+lan%C3%A7on . 

Houellebecq é como é. Sabemo-lo bem e o único livro que não li dele foi o seu «Intervenções». Não sendo um romance não me interessava saber mais sobre o que ele pensa. Não sei se está nos meus antípodas políticos. Deve estar, seguramente. Até porque como ele diz desenvolve-se em cada um de nós um pensamento político que concorre para a solução do que é estritamente social e humano. Para ele isso ainda constitui um mistério. Para mim, isso ainda está na base de tudo o que é humano. Mas também sei que o é cada vez menos. De geração após geração vemos o pensamento a fraquejar numa espécie de aniquilação. 

quarta-feira, novembro 23, 2022

A solidariedade com Mamadou Ba a crescer. «Eu escrevi»...

https://emcarneeosso.com/2022/11/22/antonio-luis-carolino/?fbclid=IwAR1gQPtanebn0KqcA0nSpUNj9GHjwiNLXXkufTQ0-7meEw3Je8u-0SsNQWM

Quando tentamos perceber a dimensão do racismo em Portugal temos de encontrar múltiplas respostas começando pelo óbvio: Portugal é um país em que o racismo se encontra em rédea solta e tem meios para se difundir e alargar nos seus variados aspetos. Entre eles, e por arrasto, a misoginia, a homofobia e a xenofobia. Portugal foi um Império de que muitos, mas mesmo muitos, têm saudades. Do grande, do enorme império cujos maiores lucros iam direitos para as grandes potências ocidentais que pilharam sem escrúpulos continentes inteiros. Portugal foi esclavagista. Portugal foi inquisitorial, instilando medo e respeitinho. Portugal foi ditatorial. O Estado português prendeu, torturou, matou por encomenda. Portugal foi Pide, foi Tarrafal, foi Caxias e Peniche. Portugal foi fascista. Portugal gosta e respeita a autoridade e o autoritarismo. Que rasto deixa este espelho? Uma imagem ligeiramente deformada pela existência de uma democracia que ainda não aprendeu que os limites da liberdade estão a ser ultrapassados há muito. Mamadou Ba vai a tribunal pelo vazio que é preenchido somente por ódio puro. Um nazi acha-se no direito de o colocar em tribunal por incentivo ao ódio, quando Mário Machado, ele próprio, cujo currículo de violência fascista não deixa enganar ninguém – só a um juiz sobejamente conhecido pelo seu narcisismo justicialista – está enterrado até aos ossos em crimes de sangue, entre os mais conhecidos, a morte do cabo-verdiano Alcindo Monteiro. Assim se faz a justiça em Portugal. E porque se deixa fazer este tipo de justiça em Portugal, quando seria impensável acontecer em países da mesma Europa a que este país diz pertencer? Porque existe um racismo de características cobardes: o que diz que Mamadou Ba se pôs a jeito, que procura a violência, que é racista contra os brancos… Este tipo de racismo não deixa de ser o mais perigoso, porque não separa as razões de um e de outro, do oprimido e do opressor, não explica o que faz Mamadou Ba ao invetivar um passado no mínimo questionável, porque teima em não descolonizar, porque persegue fantasmas do antigo império e os deixa soltos para o que vier ainda aí, porque se diz afável e dialogante, democrata, limpo, puro. No entanto, ele suja-se. Como agora, concordando em privado ou mesmo em público, com bonomia e olhos para o céu, com a ida a julgamento de Mamadou Ba provocada por um nazi que «em democracia» diz ter igualmente direitos. Direito de apontar alvos para a morte, direito de espancar, direito de sequestrar, direito de difamar e de mentir. Este tipo de argumentação delicodoce do «eu não sou racista, mas…» foi o que levou Mamadou Ba a julgamento. Não foi Mário Machado e o seu discurso peripatético de chamamento ao ódio. É o vazio, o vazio do chamado «centrão democrático» difícil de combater exatamente por ser vazio, que leva um lutador antirracista e antifascista à barra do tribunal. São estes que levam Mamadou Ba a defender-se de um nada oco que ainda assim consegue ir buscar à extrema-direita «argumentos» pensando que, algum dia, a manipularão. Terreno perigoso, muito perigoso, este.

António Luís Catarino
professor


quarta-feira, novembro 16, 2022

«Catastrophisme, administration du désastre et soumission durable», de Réné Riesel e Jaime Semprun

 

Éditions de LÉncyclopédie des Nuisances, 2008
Um ponto de vista que, não sendo novo, é imperioso ter em conta sobre o catastrofismo e as ligações que lhe estão associadas. É evidente que não vai beber a Trump ou à extrema-direita o negacionismo sobre as alterações climáticas. Não teria lugar aqui se assim fosse nem eu lhe daria qualquer importância. Mas é de levar em consideração sob o ponto de vista de quem quer mudar de vida sem ser sob o domínio das multinacionais verdes ou do ecocapitalismo. Sobre o decrescimento Réné Riesel, um autor que esteve ligado à auto-extinta Internacional Situacionista, aponta um sem número de questões que é necessário debater entre aqueles que olham para o planeta a sucumbir e não o desejam de todo. Em síntese - e necessito de pedir cuidado com esta, visto que a tese é bem mais complexa do que aqui pode ser explanada - o decrescimento económico é referido por uma última, mas não única, possibilidade de salvação do capitalismo. Esta tese nos meios da esquerda, repito, não é nova e já se equaciona desde, pelo menos, dos finais dos anos 70 do século XX. Os movimentos ecologistas dos anos 80 que integraram em parte os movimentos esquerdistas do Maio de 68 deram mais vigor à tese salvífica do mercado. Aliás, no final do livro, Réné Riesel explica em palavras bem duras para alguns movimentos pós-68 que se «serviram» de alguns slogans revolucionários para os integrarem numa política hedonista, individualista, de «festa permanente» que nada tinham ver com o movimento das ocupações quer estudantil, ou operário. Já um pouco mais estéril é a polémica em torno das posições de Anselm Jappe e da sua co-autoria no «Manifesto contra o Trabalho».

De qualquer modo, sabemos já por experiência que exigir o «decrescimento económico» sem colocar em causa as bases mercantis de acumulação capitalista é uma contradição insanável. Mas a tentativa dos autores em porem no mesmo saco os que aceitam a submissão face ao domínio totalitário do capital com os que o combatem pela base, numa enorme bolha de servidão voluntária (para parafrasear Boétie), talvez seja um pouco forçado.

Vejamos uns dos pontos mais polémicos da leitura de «Catastrophisme»: «(...) De resto, certos militantes do ''decrescimento'', sem dúvida insuficientemente convencidos da falibilidade das suas preconizações, evocam por vezes a necessidade de uma ''revolução cultural'' e remetem-se finalmente a nada menos que uma ''descolonização do imaginário''! O carácter vago e lenitivo de tais vozes piedosas, nada dizem sobre o que permitiria preenchê-las, a não ser a arregimentação estatal e neo-estatal reforçada que implicaria por outro lado o essencial da defesa do decrescimento, que parece sobretudo destinada a reprimir a vontade do amargo conflito que inevitavelmente se tentaria, e já pensando seriamente na destruição total da sociedade, ou seja, do macrosistema técnico a que se resume exactamente a sociedade humana.» (tradução livre, pág.33).

Mais à frente cita a obra de Jacques Blamont «Introduction au siècle des menaces, 2004» com a qual Réné Riesel se identifica na sua conclusão, afirmando-a mais realista sobre o que verdadeiramente nos espera: «A única porta de saída aberta para as nossas crianças: colocar uma combinação munida de todos os biosensores que a lei de Moore saberá fornecer para se sentir, ver e tocar virtualmente, engolir uma boa dose de euforizante e partir para cada fim-de-semana para o país dos sonhos com a star preferida, numa praia pré-sexta extinção, os olhos focados em capacetes-ecrãs, sem passado e sem futuro.» Ora, se bem que verosímil este quadro, não é forçoso que não apareçam forças sociais transformadas em sujeito revolucionário  que impeçam tal futuro e que coloquem em causa o plano estatal de domínio através de uma cada vez maior acumulação de capital baseado nas novas indústrias multinacionais ditas verdes ou mais cinicamente referidas como sustentáveis. Segundo o autor a visão deste decrescimento seria a visão soft que baseia a sua teoria numa espécie de teoria ou pedagogia das catástrofes que transformaria o homem num sujeito revolucionário capaz de fazer tábua rasa de um planeta destruído, vazio, mas cuja humanidade sairia imaculada reservando uma moderna civilização industrial a que estava ligada um amor inato na liberdade. Digamos que é a visão de muitos marxistas que acreditam na «autodestruição» do capitalismo tal como foi aventado por Marx e Engels. A versão hard do decrescimento económico vem com o que chama de «autenticamente extremista na sua conceção de salvação pela catástrofe, que se encarregaria de criar não só condições objetivas de emancipação, mas igualmente de condições subjetivas: um género de material humano necessário de tais cenários poderia personificar um sujeito revolucionário (pág.41). Esta teoria, segundo Réné Riesel está sediada em Raoul Vaneigem de 1967: resumindo, a catástrofe seria «(...) de tal maneira esmagadora que as condições de vida material obrigariam nas zonas mais devastadas, arrasadas, envenenadas» que de tal caos nasceriam e multiplicar-se-iam enclaves insurrecionais que originaria uma «verdadeira catarse» graças à qual a humanidade regenar-se-ia e acederia a uma nova consciência, que será à vez social, ecológica, viva e unitária, citando agora Michel Bounan em «La folle Histoire du Monde, 2006».

Seja como for, a «fábrica de consensos» baseada na «tomada de consciência ecológica» já tomou forma avisando-nos que é necessário «mudar de vida». Mas que significa para as multinacionais verdes «mudar de vida»? Compreende, antes de tudo, uma selvajaria de lucros fabulosos para essas mesmas multinacionais e estados falidos, o desaparecimento de classes sociais remediadas enviadas sem escrúpulos para a pauperização absoluta, sem apoios estatais e criando bolhas de cidades para ricos e muito ricos, livres do ambiente envenenado como o Dubai e o Catar apoiados por massas obedientes, acreditando nas estatísticas «científicas», obcecadas pela reciclagem e pela luta contra bactérias e vírus, alienadas pela biotecnologia e ordenadas segundo critérios totalitários aceites por todos e necessários para a sua conservação dominadora como espécie última, último recurso da ideologia nazi transformada agora em democracia totalitária, um pleonasmo do futuro. 
O «mudar de vida» de quem não aceita a destruição do planeta terá a ver com o seu reverso: a destruição da sociedade industrial extrativa em que vivemos, reduzindo a produção ao necessário e construir as novas subjetividades ancoradas numa vida verdadeiramente livre e autónoma, autogestionária, terminando definitivamente com o trabalho assalariado. Reaprender a viver, porque o capitalismo e catástrofe estiveram sempre ligados desde o advento da sociedade industrial e a acumulação do valor. Isso será um programa verdadeiramente extraordinário.

António Luís Catarino

quinta-feira, novembro 10, 2022

Just Stop Oil. Provavelmente indignámo-nos cedo demais

Provavelmente indignámo-nos depressa demais. Apresento-vos Phoebe Plummer uma das activistas responsáveis pela Just Stop Oil. Por mim, caros amigos, é possível que me tenha insurgido contra a «destruição» de obras de arte, enquanto me deliciava com o que lia sobre os dadaístas, os futuristas russos e italianos (em planos diferentes, é certo) e também com os primeiros surrealistas acerca da destruição da arte. Malevich, em 1931 escrevia aos Sovietes para acabarem com todos os museus. Marinetti dizia que um automóvel era mais belo que a Vitória de Samotrácia! Um dadaísta tentou incendiar Nôtre-Dame e depois tornou-se frade! No Maio de 68 fez-se BD com originais de Velásquez. Há inúmeras acções niilistas contra a arte que entretanto muito padece, como todos sabemos. Alguma arte contemporânea é merecedora de um prato de feijoada azeda. Portanto, estes jovens nem sequer destruíram nada; supostamente riscaram uns vidros que protegiam as obras de arte e uma sopa não estraga nada. É possível que haja até simpatia pela causa. Por mim, que me apanhei nas teias da minha própria contradição, ajudado por uma reflexão em forma de OrAcção pela manhã (a pessoa sabe do que falo) não proibia somente a extracção de petróleo. Proibia igualmente a extracção do gás e do carvão. É que mudar de vida é mesmo possível. Ou a tal autoestrada para o inferno existe mesmo e estamos todos a olhar para brincos de pérola?

«Um Adeus aos Deuses» de Ruben A.

 

Assírio & Alvim, 1ª ed.1963. Esta edição: 2010
Visitar a Grécia em 1963. Ruben A. deveria ter os seus 42 anos e nota-se em todo o livro uma procura comovida pelos deuses gregos, pela arte grega, pela própria Grécia e pelos seus habitantes, seguindo Sophia, Homero, Fernando Pessoa, Miller, Byron que lá morreu, Seferis, Debussy, entre outros. Um caminho autobiográfico, um caderno de viagem, seja como o cataloguem é bom de se ler. Refresca, mesmo sabendo que um português vivendo com uma moeda que nada valia a nível internacional e sob a ditadura salazarista, encontra outro povo vivendo igualmente mal e sob uma outra ditadura, esta dos coronéis. Com Xenakis condenado à morte e no exílio francês, com Yannis Ritsos preso em campos de concentração e Theodorakis fugido, igualmente no exílio. Começa aí, sem o dizer explicitamente, uma solidariedade que se descobre nas ofertas comuns, nas conversas de tasca, «os gregos falam, falam, falam», na partilha da resina e nas trocas das estórias de vidas.

Um dos aspetos mais interessantes das crónicas é o seu fascínio pelos kuroi, as esculturas arcaicas de homens e mulheres cuja técnica é claramente influenciada pelo Egipto. São hirtas, hieráticas, mas plenas de erotismo o que as contrapõe à arte egípcia que paradoxalmente foi a referência, mas mais guerreira, mais reverencial para com os poderosos. «O Kouros é a abstracção inventiva de um tipo de beleza que possa agradar aos deuses - é o encontro mais brilhante entre a uniformidade do tema e a diversidade em exprimi-lo, a neutralidade definitiva da identificação. O Kouros é a imagem mítica de um Menino Jesus adulto.» (pág.35). O mesmo sentimento do maravilhoso em Ruben A. é a Arte das Cíclades, o que ficou das antigas Deusas-Mãe de uma Pré-História mítica: «Marrei os olhos à espera que saltasse toda a imaginação de uns corpos com a dignidade de deuses absolutos, de braços ainda não lamentados nem gesticulados, de braços assentes na própria formação da figura humana.»(pág.37).

Percebe-se o encantamento de Ruben A. pelo arcaico o que na minha leitura não deixou de ser, por um momento, estranho. O lugar comum, o senso comum que pessoalmente não lhe tenho respeito algum, é descrever de uma maneira algo basbaque as esculturas clássicas do século V, chamado do século de ouro de Atenas ainda por cima fazendo-o ligar a um estratega político - Péricles. «O arcaico é que está dentro de mim, é tudo aquilo que é perfeito sem estar definido, tudo o que se opõe à regra rígida de um cânone estabelecido pelo senso comum. - senso comum inventado um dia pelos Gregos, no século V, que teve a infelicidade de se repetir através dos séculos. um senso comum que teve efeitos nos bolos de pastelaria, nas concepções rígidas da moral, quando a tragédia dos moralistas quer aproximar em regras fixas o espírito da beleza clássica do homem.»(pág.34) Nunca li - talvez nos surrealistas a que Ruben A. não estava de todo afastado - uma crítica tão bem elaborada por um escritor ao senso comum e aos cânones estabelecidos e colocados em limbo num esquecimento que só se revela quando oportunistas querem convencer os incautos. À falta de melhor, venha de lá o «senso comum» e os parvos caem que nem tordos.

O seu horror pelo Clássico é bem descrito nesta passagem quando visitava Olímpia: «Custa-me às vezes perceber o grego clássico, mas lá vou com o meu Larousse das ideias tentar penetrar na brincadeira jocosa de dois tagarelas que se desafiam em conversa fiada. Não gritam! Não fazem ruídos nem desafinam. Aqui está outro dos sublimes segredos destes habitantes - quando querem dizer qualquer coisa geometrizam a economia da palavra, tiram-lhe o conteúdo floreado de palha e avenca, e deixam ao pôr do sol o descanso do diálogo que ficou suspenso à entrada do templo.»(pág.72)

Depois de mais encantamento e do calor branco e azul da Grécia, de Miconos, de Lindos, do Parténon em que se recusou a subir até lá de burro (estamos em 1962!) e embora o tenha feito e louvado tal transporte em Creta com um comerciante sírio, do Epidauro onde leu, na orkestra e em inglês um trecho do Orestes-Rei aplaudido por um pequeno grupo de turistas. Turistas esses já objecto de jocosidades do autor, como aquele par suíço que somente reteve da Grécia o terem visto um porta-aviões americano «Sabe, os lagos na Suíça são pequenos»! Gostava que lessem esta parte teatralizada por Ruben A. (a parte lida no Epidauro?) e extraíssem possíveis ilações de quem estaria ele a falar; se o recado não era direitinho para as duas ditaduras na boca do povo que condena à morte Orestes, depois deste ter convencido os deuses a estarem ao seu lado:
«Vozes - Orestes serviu-se dos deuses, Orestes não acreditou na justiça dos homens, Orestes traiu-nos - invocou poderes sobrenaturais para governar. Orestes quer justificar o poder absoluto. Da tragédia da família quer arrastar à tragédia do seu povo. Orestes não é homem, Orestes pode vingar-nos com os deuses. Vai invocá-los para nos governar. De absoluto passa a tirano, de tirano a carrasco. Queremos Orestes julgado pelos homens, julgado nesta praça pelos seus próprios cidadãos - um Orestes liberto das divindades, irmanado à desgraça natural e à alegria simples dos seus. Orestes é traidor! Só a morte o pode salvar. Queremos a morte para Orestes.»(pág.97)

O diário continua nos últimos dias de Ruben A. numa Grécia paradisíaca. Não sei se lá voltou.



domingo, novembro 06, 2022

«Depois da Lei», de Luhuna Carvalho

 

Língua Morta, Junho de 2022
Lembram-se do assassínio de Carlo Giuliani pelos carabinieri, em Génova, a 20 de Junho de 2001? Eu lembro-me bem e não mais esqueci a brutalidade policial que os manifestantes contra o G7 sofreram naquela cidade em fogo.  Todo o perímetro urbano estava ocupado por centenas de milhar de manifestantes radicais (outros nem tanto) que lutavam contra a polícia com o que podiam e fabricavam. Armas igualmente letais contra a organização armada do Estado. Restou-nos a fúria e a impotência dos que viam as imagens de longe e recebiam os comunicados de informação alternativa. 

Nós necessitávamos há muito de um livro assim. Tão bom e por vezes tão desconcertante. Luhuna Carvalho descreve-nos experiências muito vívidas de quem escolheu o «outro lado». A barricada dos que não querem ser subservientes à lógica do domínio e do controlo burguês. Sabe do que fala e quem o lê, ou já tenha passado por confrontos de baixa intensidade em manifs, ou viveu o Prec de fogo com a volúpia destruidora que apontava paradoxalmente para a construção de utopias livres e humanamente autónomas, sente que Luhuna Carvalho tem tanto de genuíno, como de inteligente, apresentando-nos um pensamento e uma teoria sólidos da Europa em que vive(mos). 

O périplo insurgente deste autor que desconhecia (tem um artigo interessantíssimo no blogue Punkto e revela igualmente os seus estudos em Filosofia e um doutoramento em Londres) não ficou só em Génova; seguiu-se (não por ordem cronológica) Barcelona, Nantes, Paris, Roma, Londres, Amesterdão...até aos States de Nova Iorque e à estadia numa reserva índia no interior da América profunda.

A sua experiência em Barcelona, as barricadas, as fugas, a estratégia black bloc (Luhuna não se identifica totalmente com ela) encontra-se extremamente bem descrita, mas também a vida nas comunas em casas ocupadas, as diferenças individuais dos que as habitavam, os debates, as drogas, a solidariedade e o sexo. As suas opiniões são-nos reveladas com uma franqueza brutal e ao mesmo tempo, solidarizando-se com esta experiência de euforia colectiva, não deixa de ser crítico em alguns aspectos e que vale a pena citar só uma parte: «Essa folia criava, na verdade, inúmeras solidões povoadas, e muita gente que ali transitava numa cantada euforia acabava, meses depois, por sair com uma galopante depressão, algo que anos depois seria um novo normal, a forma de vida mais comum nas grandes cidades.»(pág.60) Quem viveu qualquer coisa de parecido, embora à escala deste país (já lá vamos), sabe que Luhuna está a ser verdadeiro. Depois de uma grande euforia colectiva, comunal, vem a depressão, o fim da festa. O mesmo acontece a quem tomou drogas. A paranóia e a desconfiança pelo outro vêm muito depois sem darmos por ela. Mas enquanto as usamos abre-se um mundo iluminado onde tudo é possível.

Voltemos aos mortos de Génova. Mais que Seattle ou outra cidade onde houve repressão a sério, a violência policial aqui foi descontrolada. Lembremo-nos que Carlo Giuliani foi assassinado enquanto permanecia no chão ferido e faleceu quando o jipe dos carabinieri fez marcha a trás para o calcar até à sua morte. A palavra de Luhuna Carvalho sobre Génova: «O Estado assumira um confronto nas ruas que tinha perdido, e cobrava cara essa derrota. A polícia, humilhada durante dias, encontrava indefesos nos responsáveis pela sua derrota e despejara sobre eles uma violência de contornos bíblicos que visava a sua aniquilação total, apanhados de pijama a comer umas sandes, reduzidos a uma sopa de sangue e cabelo.»(pág.53) O autor, tal como os menos ingénuos de nós, sabe que o Estado é isso mesmo e que a violência de um manifestante armado e organizado nunca é igual à dos polícias. O insurgente, o revoltado, luta e destrói a cidade que o condiciona corporal e mentalmente, que o faz sofrer em eterna (?) solidão; o revoltado quer paralisar o fluído repressor da cidade e de quem a controla, através da barricada da ocupação e da festa contínua. Está no seu direito, como a pequena burguesia está no direito de permanecer toda a vida em centros comerciais e hipermercados.
 
Luhuna Carvalho assistiu em Lisboa às grandes manifestações anti-troika de 2011 e 2012 com a esquerda institucional a perder momentaneamente o controlo da rua. É evidente que o autor mais que experimentado na observação da contestação radical em outras cidades europeias ficou atónito (provavelmente como eu me senti no Porto, mesmo sem ter vivenciado as lutas urbanas europeias - talvez em Madrid, nos 90, tenha observado uma escaramuça) com o ambiente que encontrou: «Em Lisboa as coisas eram diferentes. Nada desta problemática (da violência urbana) era sequer reconhecida. Ao mínimo sinal de conflito, a esquerda corria a benzer-se e a gritar que os responsáveis eram infiltrados da polícia. este mundo em ebulição parecia nem sequer existir. Falava com militantes e dirigentes dos partidos do que tinha visto e observado noutros locais e era como se lhes estivesse a falar de Marte.»(pág.71) No entanto, em frente ao parlamento aconteceu um confronto descrito assim: «Ao lado do tipo de peito nu, calções e sandálias, com a t-shirt à volta da cara e tatuagem dos No Name Boys nas costas, estava um tipo de camisa aos quadrados e sapatos de vela, os dois a atirar pedras à polícia.»(pág.73). É esta a contestação portuguesa tal como eu assisti no Porto num apedrejamento a um banco e imediatamente anulada por militantes de esquerda.

Vai ser difícil não ter na cabeça este livro durante mais uns tempos e voltar possivelmente a ele para saborear as imagens da revolta e destruição eufórica sentidas pelo «outro lado». Pelo «nosso» lado, alguns de nós que intuímos que na acção da Internacional Situacionista poderia estar a súmula da teoria libertadora dos revolucionários, ou seja, daqueles que não terão nada a perder senão o tédio e a sobre(vida): «Ninguém seria capaz de admitir, e talvez muitos não tivessem sequer consciência disso, mas aquele ensaio júnior de permanente deriva situacionista era obviamente um privilégio de classe. Ainda assim, o uso espúrio desse privilégio era simultaneamente ridículo e nobre.»(pág.82) Talvez seja a tentativa legítima de superação dessas mesmas teorias que Luhuna Carvalho nos propõe. A coisa que fica é uma enorme solidão (Cap.IV O Tempo da Solidão) e uma constatação de quem experimentou tudo isto como «demasiado comunista para os anarquistas e demasiado anarquista para os comunistas». Entendo bem estas palavras e assumo, provavelmente com outros, que a violência popular em Génova e Barcelona foi feita com a mesma massa que os ainda inoperantes mas que, em silêncio, esperam a oportunidade de agir.

sábado, novembro 05, 2022

«Arte em Fluxo», de Boris Groys

 

Orfeu Negro, 2022, Trad. Pedro Elói Duarte
Sem dúvida um dos mais interessantes pensadores contemporâneos que une a arte e a política. São 12 capítulos que julgamos, pela sua diversidade, terem sido compilados através de artigos publicados em revistas ou jornais e que Boris Groys terá juntado neste livro.
Explica, logo no prólogo, o conceito de arte em fluxo: «A arte não prevê o futuro, mas demonstra o carácter transitório do presente - e, assim, abre caminho ao novo. A arte em fluxo engendra a sua própria tradição, a reencenação de um evento de arte como antecipação e realização de um novo começo, de um futuro em que as ordens que definem o nosso presente perderão o seu poder e desaparecerão. E como, para o pensamento do fluxo, todos os tempos são iguais, esta reencenação pode ser realizada em qualquer momento.» (pág.14)

Muito importante a tentativa (penso que com êxito) de superação do conceito de «sociedade do espectáculo» de Guy Debord. Não que este não tivesse sido exemplar na definição da sociedade, mas esta já não existe de todo. Ou seja, quando Debord falava nos tempos livres do trabalho e do trabalhador como tempo alienado, como forma de aprofundamento da exploração e estupidificação das massas, hoje o «tempo livre» já não é passado no museu, no cinema, no teatro, na livraria ou se quisermos o café falando uns com os outros. Hoje, nos tempos livres, as pessoas «trabalham, viajam, fazem desporto e exercício físico.» Não lêem livros ou contemplam arte. São «activas» no sentido muito particular do que quer dizer «criar», escrever ou fazer vídeos no Facebook, no Instagram ou no Twitter. Portanto, a acção está presente nos tempos livres, embora tão alienada como nos anos sessenta, setenta ou mesmo oitenta. É nesta inexistência de contemplação que Groys aponta a destruição e queda dos museus ou do cinema. A arte fixa, imóvel, morreu para dar lugar à performance que já vinha a ser tendência há muito tempo. Daí, hoje não haver exposições sejam elas permanentes ou não, mas sim curadorias onde se apresenta arte efémera que, em certos casos, apela politicamente à inversão da vida quotidiana ou ao combate político. Nasce assim uma espécie de activismo social que ainda está nos seus primórdios. E é aqui que Boris Groys coloca um dilema: estaremos perante arte propriamente dita ou antes na emergência de várias formas de design? 

Se estamos a aceitar que a arte é, hoje, design antes de tudo, entramos na estetização da arte o que, citando Benjamin, nos levará a uma estetização igualmente da política inerente a esse activismo, que foi o que fez o fascismo nos anos 30 com Marinetti, ou Estaline com o realismo socialista. Antes, já o construtivismo russo tinha arredado o revolucionário futurismo cujo expoente máximo seria Malevich com o seu «quadrado negro». Entramos aqui na análise dos movimentos que, de alguma forma, estiveram na primeira linha da destruição da arte como o dadaísmo e o surrealismo. Aliás, voltando a Malevich, o seu manifesto a partir de «O quadrado negro» já pedia ao poder soviético que destruísse todos os museus para dar lugar a uma arte «verdadeira e viva».

O sujeito enquanto artista e a sua relação com os Outros obriga necessariamente a uma revisitação das teorias de Marx e de Stirner sobre a produção na arte e é dos capítulos mais interessantes do livro. Se o artista quando produz arte é um ser único (Stirner) ou se é a conclusão de um processo de produção social integrado (Marx).

Seja como for a afirmação de Groys de que «as sociedades modernas estão assombradas por visões de controlo e exposição totais - visões distópicas do tipo orweliano» levam-nos para um outro patamar em que a arte ou a instalação performativa é claramente um centro de denúncia ou de acção.

«A Arte na Internet» é dos capítulos mais esclarecedores de Groys e socorro-me de uma ou outra citação sua para que fiquemos com a percepção do seu pensamento: «A internet funciona como base no pressuposto do seu carácter não-ficcional, de ter um ponto de referência na realidade offline. A internet é um meio de informação sobre algo. E este algo está sempre fora da internet - ou seja, offline.» Pode-se dizer, portanto, que na net não há arte ou literatura mas sim informação sobre arte e literatura. Não sendo uma novidade total para os utilizadores da internet não deixa de ser sintomático algumas afirmações certeiras de Groys que inverte todo o pensamento de uma possível globalização através desta ferramenta: «Seguimos certos blogues, sites de informação, revistas electrónicas e outros sítios, e ignoramos tudo o resto.  Assim, o trajecto tradicional de um autor contemporâneo não é do local para o global, mas do global para o local.(...) Na verdade, a internet não é um lugar de fluxo de dados; é uma máquina que trava e inverte os fluxos de dados. O medium da internet é a electricidade, e o fornecimento de electricidade é finito. Por conseguinte, a internet não pode suportar fluxos de dados infinitos. (...) Não devemos esquecer que a internet é propriedade privada. E os lucros dos seus proprietários decorrem sobretudo da publicidade dirigida a públicos-alvo. Temos aqui um fenómeno interessante: a monetarização da hermenêutica.(...) A mais-valia que este sujeito produz e que é apropriada pelas empresas da internet é o valor hermenêutico: o sujeito não só faz ou produz alguma coisa na net, como também se revela como um ser humano com s«certos interesses, desejos e necessidades. A monetarização da hermenêutica clássica é um dos processos mais interessantes com que nois confrontamos nas últimas décadas». Eu diria mais perigosos, igualmente.

«A Princesa de Gelo», de Camilla Läckberg»

 

Problema: eu gostar de policiais sem ser um entendido na matéria. Poderia ter pesquisado um pouco mais em blogues específicos quem é quem neste particular, mas a mania de não confiar nas opiniões dos outros, ainda para mais sobre livros, levam-me a conhecer cada barrete, que mete impressão.
Mistério: como Camilla Läckberg vende milhões em todo o mundo. Apresentá-la na capa como «A nova Agatha Christie que vem do frio» não basta para desvanecer o quebra-cabeças de um best-seller. Até porque vem do frio. 
A trama: não tem nada que o frio nórdico não traga neste género. Famílias ricas com esqueletos no armário, crimes antigos que emergem para que se proceda a novos crimes. Algum sexo envergonhado entre polícias disponíveis e intelectuais e artistas como prova que a antítese é também capaz de amar e por aí fora. Não acho que seja uma boa escritora e, em alguns casos, até poderemos classificar de infantis algumas situações, já que de verosimilhança o tal frio da Escandinávia até nos tem dado alguns presentes. Mas não neste livro, seguramente. 
Continuarei à procura de policiais, como é evidente.


sábado, outubro 29, 2022

«Clavicórdio» de Andreia C. Faria

 

Clavicórdio, Língua Morta, Janeiro de 2022
Livro de Andreia C. Faria e, socorrendo-me de uma pequena pesquisa na «Antologia do Esquecimento» de Henrique Manuel Bento Fialho e em mais alguns sites, fui sabendo que este é o seu quarto livro, o primeiro em prosa. Aliás, uma prosa que é muito influenciada pela poesia o que lhe dá, quanto a mim, um interesse acrescido. Gostei de a ler. Não me admirei que fosse do Porto. Eu conheço bem a cidade onde vivi 20 anos e adivinhei-a nas japoneiras, nas confeitarias, nas igrejas cheias de flores, nos parques e nos shoppings de geometria funcional, no S. João, logo em «Caderno, Clavicórdio». Sei que não é importante, mas «sentir» através de uma leitura uma cidade, um ambiente é porque, provavelmente de um modo involuntário ou não, a escrita cumpriu o seu papel. Porque nos fez sentir. É isso o mínimo que exijo de um livro. Tal como a existência do fogo ou de qualquer outro elemento unificador. Este fogo que atravessa toda a sua escrita. Está presente em brasas, em lenha, em árvores, nas fagulhas da siderurgia do pai que lhe marcavam a cara, no calor do corpo desmembrado de Eva e no calor cálido do corpo doente de David. Nos silêncios e nas vozes. Onde há fogo, há água e terra húmida ou incandescente. Li e reli «Clavicórdio» e tentei extrair o sentido que Andreia C. Faria lhe dá. O sentido final é de um resgate a uma entidade superior que construiu o amor e o ódio: «Um sonho range como um caixão, mas é lúcido como um aquário e sabe florir. Acontece ao contrário da vida e é a vida. O sonho está para a vida como o ódio está para o amor. O ódio é a raiz do amor, aquilo que nele cresce e se oculta. E é sempre a raiz que comporta a verdade.» (pág.6). Talvez a superação do amor e do ódio esteja na relação desenhada como um dos mais intrigantes e belos trechos de «Clavicórdio» no capítulo «O nosso melhor ouvido»: 

«Para poder cuidar de David passei a fazer o turno da noite no hotel. Sonhei com uma torre, disse-me quando cheguei a casa pela manhã. ''Sonhei com uma torre negra e dela víamos a cidade inteira a respirar. Já reparaste que nesta cidade não há cães, nem crianças, nem cemitérios? [Londres?] Há quanto tempo estás aqui? Lembras-te de que chegámos para partir, que a ideia de partir era o que nos fazia irónicos e vivos? Era o que nos fazia acordar. E, no entanto, a cidade, impossibilitada de ser outra cidade ou outra coisa qualquer que não ela mesma, foi sitiando a nossa vontade. Do topo da torre percebi a sua geografia. É um rochedo de ecos onde o calor esmorece, e nós aconchegamos os ouvidos e o peito para ovir melhor, para dormir melhor.'' Engoliu os comprimidos da palma da minha mão e continuou: ''Ouve, eu quero salvar-me. Quero encontrar Deus, ou uma solidão essencial e tranquila que me transporte para junto Dele.'' O transporte era eu. Negociava com Ele, como uma criança negoceia com a mãe para poder dormir sem pijama, a sua ida para os céus.» (pág.86)

Dois anjos provavelmente caídos que tentam negociar a sua própria existência num refúgio supraceleste, num mundo demasiado moderno que não lhes cabe: «Odeio este tempo (...) Odeio os boçais, os intelectuais, os hedonistas. Os pais que geram filhos num vagar de lobos, os filhos desdobrando a cara em lobo depois de terem depredado lobos. Odeio alegrias programadas, o que há de artificial e de fedor a solidão nas festas em que a multidão, como árvores abatidas, deixa de encobrir o vazio, a clareira.» (pág.7)

Uma autora a descobrir, sem dúvida.



quinta-feira, outubro 27, 2022

«Origem», de Dan Brown

Daqueles livros de bolso que servem para passar um bom bocado. A trama é bem desenhada. Numa Espanha que ainda não se libertou dos seus fantasmas, isto é, da guerra civil e da ditadura franquista, a Igreja católica ultra-conservadora tenta por todos os meios impedir a divulgação de uma descoberta da origem de uma vida física que se libertava da criação teosófica das religiões. O impacto seria igual, se não maior do que as descobertas de Pitágoras, Galileu, Copérnico ou Darwin. A resposta à questão «De onde vimos? Para onde vamos?» é o mote que nos avassala o espírito há que séculos! O assassínio do cientista Edmond Kirsh, que se propôs desvendar este pequeno grande mistério, vai desenvolver uma catadupa de acontecimentos que já vimos reproduzida no cinema em Código Da Vinci e Anjos e Demónios. Algumas coisas serão inverosímeis, é certo, mas a lógica científica é bem elaborada e as teorias da conspiração são uma realidade a que não poderemos fugir conhecendo, como conhecemos bem, as redes sociais e a prática dos media. Lá vemos o Professor Langdon e uma bela directora do Museu Guggenheim de Bilbau em maus lençóis mas que saem não totalmente vencedores e com a certeza científica de estar vivos. Nascemos nós por geração espontânea da sopa primordial da Terra, há 4 mil milhões de anos, a partir de um corpo unicelular que, através da dispersão da energia do sol, foi formando uma espiral de moléculas que por sua vez levou ao aparecimento e desenvolvimento ADN dos seres vivos? Et pourquoi pas? O pior não é saber de onde vimos; o pior, mesmo, é saber para onde vamos e a perspectiva sombria de que o Homo Sapiens vai dar lugar ao Homo Technius em que a Inteligência Artificial absorverá toda a nossa vida. Nada que não nos admiremos muito, mas até um escritor tem a imaginação limitada o que não acontecerá certamente a robots especializados em gerar policiais inimagináveis a ganhar todos os prémios em festivais literários e a ganhar milhões que distribuirão, com fervor altruísta, para o incremento do capitalismo verde. 700 páginas prós amigos, mas não cabe num bolso, como é evidente.

JORNAL MAPA: Coimbra: uma metáfora esquisita num país esquisito: o massacre de 663 árvores à vista de todos

Coimbra: uma metáfora esquisita num país esquisito: o massacre de 663 árvores à vista de todos

SÁBADO, 22 OUTUBRO 2022

As obras do Metro Mondego, um elétrico articulado que se propõe circular na cidade de Coimbra e chegar a Semide, passando por Ceira, Miranda do Corvo e Lousã, ameaçam abater 663 árvores no seu trajeto. O mesmo trajeto que um comboio assegurou durante dezenas de anos e que, sem ser articulado, não precisou de abater árvores nenhumas.

No dia 9 de julho de 2022, Coimbra atingiu um recorde notável: ultrapassou os limites de ozono que podem causar sérios problemas de saúde aos seus habitantes. Podia ler-se no Jornal Público que «a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Centro informou que na estação do Instituto Geofísico do concelho de Coimbra foi registada uma concentração média horária de 188 microgramas por metro cúbico de ozono no ar, afetando quem se encontra nas freguesias de Almedina, Santa Cruz, São Bartolomeu, Sé Nova, Eiras, Santa Clara, Santo António dos Olivais e São Martinho do Bispo», isto é, na maior parte da cidade. Arredondando levemente o problema, aconselhavam a que não se fizesse exercício físico ao ar «puro» (que é como quem diz!). Afinal, não eram só os «vulneráveis» que estavam em perigo, como dizia o comunicado da CCDR do Centro. Repentinamente tornámo-nos todos vulneráveis: éramos todos velhos, crianças e portadores de doenças graves. Isto não é novo numa cidade virada exclusivamente para o automóvel que é dono e senhor das vias apertadas e das avenidas onde se acelera muito para além dos 40 ou 50 km/h, em que os peões são tidos por inimigos e os ciclistas são vistos como seres anormais que devem ser apertados e apartados das estradas e vias urbanas. Por isso apita-se, insulta-se e manobra-se contra o peão e o ciclista. As ciclovias, com alguns troços partilhados com peões, são um perigo porque se partilham igualmente com automóveis em dois sentidos, têm curvas a 90 graus e escorredores pluviais onde se enfaixa com facilidade um pneu de bicicleta. Azar para o ciclista! Tal como o estacionamento: caótico é pouco para o descrever como, aliás, pode atestar quem conduz um carrinho de bebé, uma cadeira de rodas, seja ela mecânica ou elétrica, ou mesmo os estudantes com os carrinhos fanados nos supermercados completamente ébrios de praxe e de álcool marado.

O ICNF e os massacres de inverno e de verão

No início de 2021, a senhora responsável pelo ICNF convoca os jornalistas para a Mata do Choupal. Eles comparecem. Logo a seguir a senhora fala e eles ouvem. Proclama, na sua pusilanimidade, o vigoroso Plano de Recuperação da Mata do Choupal que, para admiração de muitos dos seus utentes, não necessitava de plano nenhum, muito menos de recuperação. Mas, sendo um espaço verde e havendo o dinheiro do PDR para gastar, havia que solucionar um problema inexistente. Anunciam-se 98 mil euros e a plantação de 5000 árvores cujas espécies a senhora não soube identificar, nem tampouco a sua numerosa comitiva. Até hoje não se sabe que espécies eram, mas plantaram-se em março, mesmo com avisos sérios de que as árvores não iam aguentar serem plantadas em plena primavera. Hoje o Choupal mirrou. As plantas secaram e a erva rasteira vingou abafando as plantadas. Ficaram as canas espetadas que as haviam de suportar e grandes clareiras. Por falar em canas, outra das matas mais conhecidas de Coimbra, Vale de Canas, também teve a sua intervenção podando à toa, desmatando e, até certo ponto, impedindo a sua regeneração natural. Aliás, as podas de árvores completamente dementes são um ex-libris das autarquias da região de Coimbra, ainda que obriguem a regas e enormes gastos de água que não aconteceriam de outra forma. Também os relvados caríssimos e de regas constantes pertencem a um novo-riquismo conimbricense que, como é evidente, não se revê em ervas naturais que não necessitam de água e que alimentam abelhas e outros insetos que não são nocivos. Sobre este aspeto, leia-se o agrónomo Vasco Paiva que tem denunciado sistematicamente a política incompetente das várias câmaras da região de Coimbra: «Em Coimbra existiam muitas plantas espontâneas de sabugueiro que foram erradamente eliminadas em ajardinamentos públicos. Chega-se ao disparate de se eliminarem muitas plantas e flores silvestres espontâneas porque acham que é preciso limpar… Exemplos de espécies nativas para os nossos jardins? Aqui vão alguns: alecrim, alfazema, erica, madressilva, medronheiro, murta, pascoinhas, pilriteiro, rosmaninho, sabugueiro e tantas outras. Já imaginaram os cheiros, as cores, as pequenas aves que se vão alimentar dos seus frutos?».

É evidente que para o poder autárquico isto é completamente absurdo. Os relvados e os vasos de flores com as cores da bandeira em rotundas da cidade são muito mais tocantes na psique dos automobilistas e dos funcionários da câmara.

No dia 9 de julho de 2022, Coimbra atingiu um recorde notável: ultrapassou os limites de ozono que podem causar sérios problemas de saúde aos seus habitantes. (…) Arredondando levemente o problema, aconselhavam a que não se fizesse exercício físico ao ar «puro» (que é como quem diz!).

Entra em cena a novel Câmara de Coimbra

A Câmara de Coimbra tem como presidente José Manuel Silva, que capitaneou a coligação «Juntos Somos Coimbra». Logo antes das eleições, um terço dos seus membros independentes saíram para dar lugar a um verdadeiro albergue espanhol que já apontava, por isso mesmo, para uma espécie de ditadura pessoalista e presidencialista. A coligação tem apoios do PSD, CDS, Nós Cidadãos, RIR, PPM, Aliança e Volt. Sete partidos que na maior parte não conheciamos nem tinhamos ouvido falar e que arredaram um PS arrogante, igualmente pessoalista e incompetente. Mas não nos fixemos na política partidária, embora ela explique esta propensão do senhor ex-bastonário da ordem dos médicos para se olhar a si próprio como imprescindível na corrida para uma cidade em vias de sufocar ainda mais.

Vale a pena fixarmo-nos no Diário de Coimbra de 23 de setembro (o abate de árvores iniciou-se a 12!) para conhecer os autos de consignação e o protocolo de todas as obras do Metro Mondego inseridas no Sistema de Mobilidade do Mondego (SMM), em que a Metro Bus apresentará um «elétrico articulado» que irá «servir» a cidade e que chegará a Semide, passando por Ceira, Miranda do Corvo e Lousã, tal como um comboio o fez durante dezenas de anos, servindo populações diariamente até interesses inconfessáveis o terem banido, levantando as linhas e deixando as populações à mercê de um serviço rodoviário com estradas repletas de centenas de curvas e muito mais morosas! A verdade é que, nessa ocasião, se constituiu uma empresa durante perto de 30 anos que serviu para nada fazer em prol das pessoas, mas mais que pródiga em ordenados chorudos de ceo’s que se iam alternando conforme os interesses partidários.

Ora, o presidente da câmara de Coimbra resolveu apresentar o plano no único barco turístico do Mondego como o nome muito acertado de «Basófias» (!!), chamando os jornalistas com pompa e circunstância, não fosse o facto anedótico de o barco encalhar em plantas aquáticas invasoras que se meteram no sistema de propulsão do barco! A planta (qual metáfora embainhada a tempo) é a elódea-africana que coloca em risco toda a biodiversidade autóctone do rio e das margens. Mas o projeto não encalhou, tal como a dobragem do Cabo Bojador. O abate de árvores não estava comprometido, portanto.


O massacre dos plátanos

No dia 6 de setembro, o Jornal Público noticiava que Coimbra iria abater 5 plátanos centenários junto ao Parque Manuel Braga, no centro da cidade. Esse corte aconteceria seis dias depois. Imediatamente, algumas dezenas de cidadãos protestaram no local apresentando um plano alternativo a um «elétrico articulado» cujo traçado abateria não só os 5 plátanos centenários, alguns de 30 metros, mas também 663 árvores no novo traçado até Semide, na chamada Linha da Lousã. Veríamos, mais tarde, que já se tinha perdido a conta às árvores abatidas dentro da cidade e por todo o lado. As pessoas perguntavam-se por que razão um elétrico que é articulado necessitava de massacrar tal hecatombe de árvores, quando anteriormente um comboio não articulado nunca tinha estado em conflito com qualquer árvore nesse mesmo traçado. A resposta aos cidadãos que apresentaram à SMM um plano que evitaria este verdadeiro crime (não sabemos ainda, nesta fase, se é ou não um crime ambiental) foi abismal, segundo o mesmo jornal: «A Sociedade Metro Mondego (SMM) olhou para a proposta de quem queria evitar o abate de cinco árvores de grande porte na avenida Emídio Navarro, estudou uma alternativa e concluiu que nada muda em relação ao plano inicial.» A SMM «olhou» e disse «não!». Mais tarde, com uma contestação fraca e muito localizada, estando já em campo a ClimAção Centro, a empresa pública dá mais umas achegas: é «facilmente constatável» que a proposta do movimento resultaria em «externalidades e implicações que se traduzem no abaixamento expressivo dos padrões de qualidade do projecto». Não se percebendo de imediato o que é «facilmente constatável», as «externalidades» eram tão só a interferência com uma estação de gasolina no local e com uma estação elevatória das Águas do Centro Litoral em construção. Já antes, no dia 6 de setembro, a Agência Lusa tinha dado conta das verdadeiras razões da recusa da SMM, que jurava a pés juntos que queria um traçado verde mas que era obrigada ao abate. Qual a razão? «Alterar projetos consignados e em fase de execução tem implicações extremamente penalizantes em termos de financiamento, as quais podem levar à sua inviabilidade e encerramento definitivo». Portanto, o caso que acredito ter chocado e até comovido milhares de cidadãos ao ver, no dia 12, as motosserras a cortar os primeiros cinco plátanos de muitos que hão de vir ao chão, é que as prioridades financeiras estão à frente de qualquer motivo verde, ainda por cima com as alterações climáticas existentes e que nos levam a temperaturas recorde.

A ClimAção tenta agir

Pode dizer-se que a ClimAção Centro tem sido a única entidade em Coimbra que se opõe a esta verdadeira desgraça, a um crime que ainda não está configurado e a que os responsáveis se esquivam de uma maneira canhestra, ora dizendo que a responsabilidade é da SMM, da presidência da câmara ou da Infraestruturas de Portugal. Afiançamos aos leitores que cada uma destas instituições fala por si, ou astutamente combinadas, e, de facto, a ClimAção que tenta uma oposição eficaz conflitua com esta fuga à responsabilidade por parte de quem é culpado desta hecatombe arbórea.

Coimbra cidade-dormitório. Ela dorme, o capitalismo verde sossega-a.

Coimbra não contesta. Coimbra é uma enorme cidade-dormitório. Literalmente. Coimbra não tem estudantes contestatários, embora de vez em quando clamem por Greta Thunberg. Preocupam-se com as praxes, mais do que com os crimes que lhes passam pelos olhos. Os conimbricenses olham pelo seu umbigo, levando o seu corpo a ginásios que se multiplicam, pela sua imagem, pela sua cátedra e pelos seus serviços públicos e privados. Coimbra é a sua universidade fechada e menoscabada. Coimbra preocupa-se com os seus automóveis e com as pistas de velocidade em que transformaram as vias rodoviárias. Coimbra expulsou os operários das suas fábricas. Agora expulsa a natureza. Coimbra exulta a sua decadência.

Chega a ser comovente ver a desmotivação dos que mais ativamente se opõem a esta ação da SMM, do presidente e da IP, não reparando sequer que a oposição institucional da Câmara vai apelando aqui e ali para que não se faça o abate indiscriminado de 663 árvores. O papel da oposição institucional é exercer esse combate, ténue é certo, mas o mais importante, e é isso que muitos ingénuos e ingénuas não compreenderam ainda, é ver o Metro a andar! Com árvores abatidas ou sem elas, o importante é que em 2024 o Metro Bus, esse «elétrico articulado» que não se consegue articular com as árvores, comece a funcionar. Estaremos nas vésperas de mais umas eleições autárquicas e a coisa tem de render votos, puxando para si o «progresso» baseado no capitalismo verde.

O caso que acredito ter chocado e até comovido milhares de cidadãos ao ver, no dia 12, as motosserras a cortar os primeiros cinco plátanos de muitos que hão de vir ao chão, é que as prioridades financeiras estão à frente de qualquer motivo verde.

Uma câmara maoísta?

Lembrar-se-á a campanha levada a cabo por Mao e que acabou mal – «Que mil flores desabrochem! Que mil escolas de pensamento floresçam!» -, mas o comunicado de 5 de agosto de 2022 da coligação camarária é de um mau gosto e de uma demagogia que configura inclusive uma impossibilidade real em que só os mais incautos podem acreditar. Esse comunicado promete que a CM de Coimbra e a SMM chegaram a um acordo: por cada árvore abatida, três florescerão! As contradições são tantas que não podem caber no espaço deste artigo, mas sobressaem estas, socorrendo-me agora de algumas perguntas que o agrónomo Vasco Paiva coloca na sua página de Facebook a 10 de setembro: «Outra falácia é de que vão substituir cada árvore abatida por três novas! Claro que uma árvore adulta (algumas centenárias) de elevado porte e de larga copa não é substituível por jovens plantas ou árvores que, no máximo, terão 2 ou 3 metros de altura. Quantas décadas serão necessárias para atingirem a mesma dimensão e cumprirem os meus serviços ambientais (despoluição, fixação de carbono, sombra, abrigo para pássaros ou outros animais)? Outra falácia: Segundo foi afirmado na comunicação social, e não desmentido, está previsto o abate de cerca de 600 árvores. No Plano, apresentado pela “Metro Mondego” à Assembleia Municipal, intitulado “Plano para o Reforço da Estrutura Arbórea”, está prevista a plantação de 1.326 árvores, sendo 151 em 2022; 575 em 2023 e 600 em 2024. Alguém me explica como é que 3 x 600 não são 1.800?»

As razões da anestesia conimbricense e o modo sempre pacífico de a contrariar: o bystander effect!

Perante a pobre contestação que se tem vindo a observar, a universidade socorre-se da Psicologia, não fosse Coimbra propagandeada como a cidade do conhecimento! No dia 19 de setembro, no site CoimbraCooletiva, e adivinhando já a desmotivação e abandono da contestação ao crime que se evidencia cada vez mais, a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra coloca aos cidadãos as seguintes perguntas: «Por que é que as pessoas boas ficam paradas e não lutam a favor do que defendem? Como é que deixamos que se destrua património, como zonas verdes, lamentando e criticando mas não fazendo nada? A psicologia chama-lhe efeito do espectador e tem cura»; e ainda «o bystander effect é o fenómeno onde a difusão da responsabilidade («os outros fazem…») e o medo do risco envolvido (ficar mal visto, perder emprego, ser criticado, ser preso…) leva à inação por parte de pessoas que poderiam rectificar a situação». Qual é a cura, então? A resposta que vai levantar em peso a população conimbricense é esta: «É para contrariá-lo que o InterDito se junta hoje à Secção Experimental de Yoga da Associação Académica de Coimbra, ao Encontro da Paz e a quem na comunidade também estiver preocupado com o abate de árvores no centro da cidade numa manifestação pacífica, sob a forma da criação de cordão humano».

É evidente que a cidade está perdida, as suas árvores estarão condenadas a morrer pelo crime de existirem e colidirem com interesses financeiros públicos, privados e de fundos europeus. No entanto, quer-nos parecer que a anestesia de uma franja muito significativa da população da cidade que vira literalmente as costas a este crime, ainda que com algumas lágrimas (de crocodilo?), tem um carácter local muito vincado. Fica por perceber como é que não houve providências cautelares contra o abate enquanto se apresentavam alternativas concretas, assim como mais apoios no país e mesmo na cidade, ganhando com isso tempo inestimável. Se este facto ocorresse em algumas outras cidades ou vilas portuguesas as coisas não seriam assim, e seria mesmo impensável numa qualquer cidade europeia. Mas, em Coimbra, é sempre possível a aventura do capitalismo verde!

Texto de  António Luís Catarino | Imagens de António Barros

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