D. Quixote, 2020. Tradução de João Carlos Alvim. De acordo com o AO90.
Em 72 páginas, o escritor francês Éric Vuillard, também autor de «Ordem do Dia», levou a cabo um exercício de síntese extremamente difícil em literatura. Em pouquíssimas palavras, todas elas tão contidas quanto certas, num jeito confessional para com o leitor, dá-nos uma perspectiva entusiástica da vida de Thomas Müntzer que levou a cabo nos anos vinte do século XVI uma revolta milenarista, de carácter religioso e social contra a igreja e a nobreza alemã.
A acção, muito complexa de analisar ainda hoje e alvo de vários estudos históricos, de Thomas Müntzer e da revolta camponesa e operária, acantonada nos núcleos urbanos juntamente com os artesãos, tem, contudo, antecedentes na Europa Central. Estamos a falar do checo Jan Huss (no livro a grafia que aparece é Hus), do inglês John Wyclif e dos seus lollardos que puseram a Inglaterra a ferro e fogo, de John Ball e de Wat Tyler seus continuadores nas revoltas onde decapitaram nobres e funcionários do rei, incendiaram castelos, propagandearam as suas teorias de uma era de ouro, mel e igualdade, usando a palavra de Cristo através dos evangelhos entretanto traduzidos para a língua comum. Não obedeciam às regras do clero, não pagavam os dízimos, assassinavam padres e nobres, saqueavam castelos como já se disse e não pagavam os arrendamentos das terras. Almejava-se uma igualdade social, baseado nas metáforas e palavras mais ou menos claras de Cristo contra a riqueza e o luxo. Acresce-se, em jeito de final de história (ironia minha, porque a vontade de igualdade social esteve e estará sempre presente nas lutas sociais) que todos foram mortos com extrema violência seja através do enforcamento, esquartejamento, decapitação, queima, tortura, etc, tudo o que a imaginação tétrica dos possidentes pode atingir. Embora a violência das massas populares entregues a si próprias não fosse propriamente de anjinhos, fossem eles católicos ou protestantes. Aliás, Lutero, opôs-se violentamente contra a ordem revolucionária camponesa nos territórios ocupados pelos sediciosos. Não fosse a «sua» igreja ficar sem benesses...
Müntzer, diz-nos Éric Vuillard, assistiu à execução do pai, seu homónimo. O escritor define-o como colérico, iroso. Tem a palavra de deus e isso basta-lhe como programa que sintetiza no seu «Manifesto de Praga», embora recusando qualquer discussão estéril com o clero. O termo utilizado para esta recusa é «repugnância». A partir daqui é com um grande entusiasmo que continuamos a leitura querendo sempre chegar ao clímax da história, sabendo de antemão que o final de Thomas Müntzer estará traçado desde início. Pouco importa. Quando se escreve bem, vale sempre a pena continuar até porque somos brindados com alguns pormenores impossíveis de saber em livros académicos. É curiosos que a proximidade do Verão, abre quase sempre as portas às revoltas e revoluções. Claro que há excepções (Novembro de 1917, por exemplo), mas não sei se foi por esse facto que Vuillard nos apresenta o capítulo «O Verão Bate às Nossas Portas»:
«''Mund é a boca de Zerstörung, a destruição''. De forma que é possível detectar, em Thomas Müntzer, uma afinidade prodigiosa entre a palavra e a negação. Decerto, pode ver-se em Müntzer um desses idealistas apaixonados de que a medicina troça, podem colocar-se no divã Rousseau, Tolstoi, Lenine, e forçá-los a dizer o que quer que seja. Pode ver-se em todas as revoltas e em todos os fervores uma dor pessoal transfigurada; e então? (...)
Sim, Müntzer é violento, sim, Müntzer delira. Convoca o Reino de Deus aqui e agora, há nele um excesso de impaciência. Os exasperados são assim, irrompem um belo dia da cabeça dos povos, como fantasmas saem das paredes.» (pags. 45, 46)
A história de Thomas Müntzer termina na Batalha de Frankenhausen, se «batalha» se pode chamar a um massacre de dezenas de milhares de desvalidos miseráveis e cuja repressão brutal posterior do exército do rei e dos nobres levou dois meses a acabar. É assim que Éric Vuillard inicia o capítulo correspondente:
«E assim, dos quatros cantos do Império, surgiram hordas de miseráveis. Müntzer cantava, a multidão acorria. O landgrave de Hesse nem queria acreditar nos seus olhos. Em seguida, foram os operários das cidades, os loucos, toda a massa camponesa que bruscamente se sublevou. Houve um grande pavor entre os nobres e os burgueses. As mulheres deixavam as suas casas, as crianças caminhavam através dos campos, na esteira do Espírito Santo. As raparigas, os vagabundos, a atroz populaça, até os animais! Viu-se assim todo o género de gente, em grupos de dois ou de três, sozinha também, sem bagagem, sem nada. Não se sabia o que pretendia. Os senhores e os seus bandos armados já não ousavam fazer o que quer que fosse; viam-na passar aterrados. Um vago temor começava a nascer. Que deveria decidir-se? Nunca se tinha visto uma coisa assim. Todos largavam casas e casebres e se juntavam à errante multidão. E para onde ia toda essa gente? Ignorava-se. Temia-se até dispersá-la. Dormia nos bosques, na palha, entre sonhos.» (pág. 66)
E assim entre sonhos, a mole humana miserável que seguia Thomas Müntzer viu esfumar-se a igualdade que ansiava. Derrotada? É possível, mas ainda hoje está aí para a sua história ser contada. O milenarismo, o assalto à utopia da idade de ouro vindoura, aí está para ser lida e pensada nos dias de hoje pela mão de Éric Vuillard e de outros que não desistiram de nos lembrar, como Norman Cohn o fez no seu trabalho excepcional, de 1957, «Na Senda do Milénio - Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média» que tomo a liberdade de vos apresentar como dos poucos livros de grande fôlego, talvez não ultrapassado até hoje, sobre o tema. Foi neste livro que Éric Vuillard encontrou pormenores da vida e pensamento de Thomas Müntzer que veio a ser essencial para a construção da sua pequena obra.
alc