segunda-feira, julho 01, 2024

«O Caderno Proibido», Alba de Céspedes

 

Alfaguara, Maio de 2024, Tradução de Ana Cláudia Santos

Livro datado de 1952 e um dos mais importantes de Alba de Céspedes, pelo que li sobre ela. Antifascista, conheceu as prisões de Mussolini e foi fundadora da revista Mercurio. A autora opta por uma epistolografia imaginada em torno de um diário escrito em sobressalto e cuja personagem, Valeria, esconde da família. Um género que se vai perdendo com o tempo, mas que acolhe sempre uma grande intimidade, cumplicidade com o leitor e lança a denúncia de um quotidiano do que julgamos ser uma simples dona de casa romana, na Itália do pós-guerra. Não é só um quotidiano marcado pelo tratamento dos outros, da casa, isso seria muito pouco; a verdadeira perturbação deste livro vem da emergência do desejo de alguém que é sistematicamente secundarizado c obrigado a marcar o ponto das obrigações de uma família pequeno-burguesa em que Valeria é tratada de «mãe» pelo marido, como para sublinhar a sua condição reprodutora, e ostracizada pelos filhos adolescentes que a observam como uma «velha» de 43 anos, salva de qualquer arrobo amoroso ou de fuga daquela vida de cansaço que é, paradoxalmente, a sua libertação:
 «Devo reconhecer que, se calhar, a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de descansar não é senão o medo de perder esta única fonte de felicidade que é o cansaço.» 
A perturbação deste livro extraordinário reside aí. Mas não só. Somos obrigados, na sua leitura, a pôr tudo em dúvida em relação a nós próprios e à nossa própria família e eis onde Alba de Céspedes triunfa neste «Caderno Proibido». A crueldade e a afectividade de que se alimenta um grupo familiar de personalidades obviamente distintas e que se magoam, mais do que provam o seu amor senão através de glosas e metáforas maldosas, daquelas que deixam um rasto de mágoa e de ódio tantas vezes camuflado:
«Tenho de destruir o caderno, destruir o diabo que nele se esconde entre cada página, como entre as horas da vida. À noite, quando nos sentamos todos juntos à mesa, parecemos claros e leais, sem insídias; mas sei agora que nenhum de nós se mostra como verdadeiramente é, escondemo-nos, camuflamo-nos todos, por pudor ou por despeito.»
A questão que antes se colocava, após o conhecimento atento de todo o diário de Valeria, a tal «velha de 43 anos» é exactamente aquela que perturba quem o lê. Valeria tem um caso fora da família que não chega a ser consumado, mas intenso. E damo-nos a pensar que atrás da cozinha em que cada mãe nossa, porque o pai nos anos 50 e 60 tinha todo o direito a ter «casos» ou amantes, se deslocava para fazer a comida, ir para o trabalho, vir à pressa, passar a ferro, aconselhar os filhos e vigiá-los, teria ela, perguntar-se-á, o direito de amar alguém nos intervalos da sua vida de cansaço? Teria ela, a «mãe», a veleidade de sonhar com uma fuga de casa com um amor dissimulado e que se desenhava um desejo sexual óbvio por outra pessoa fora da família? E teria ela o direito de nos odiar, por vezes? De nos olhar como empecilhos para uma liberdade coartada? Por mim, tenho uma resposta clara. Mas que este livro nos perturba, sem dúvida que sim. 
alc