quinta-feira, julho 18, 2024

«Révolution», Enzo Traverso

 

La Découverte, 2022. Edição francesa. Traduzida do inglês por Damien Tissot.
Capa de Ferdinand Cazalis
Numa época de triste recuo histórico das esquerdas mundiais, nunca é demais um exercício de memória sobre as revoluções passadas. Não se pense, contudo, que este livro se baseia numa melancolia revolucionária de quem pensa que a revolução é letra morta, que numa sociedade de capitalismo de vigilância e nas tecnologias avançadas, as experiências insurreccionais (sejam elas revoltas ou motins e revoluções) estarão necessariamente votadas ao fracasso. É exactamente o contrário. Ler este livro é uma lufada de esperança para quem acredita que a vida, a verdadeira vida, residirá numa saída única da catástrofe anunciada a que o sistema de exploração sistemática dos recursos do planeta e do trabalho alienado humano nos votou. Ler este livro de Enzo Traverso é tão-só analisar, pelas suas 450 páginas que se lêem num ápice de entusiasmo, as grandes derrotas históricas, as vitórias «dos assaltos aos céus», o «tempo das cerejas» ou dos «enragés» e sans-culottes que só exigiam governar-se a si próprios. É revisitar a vitória libertária de 1917, também sob o prisma tanto dos derrotados de Cronstadt como, ironicamente, a de Trostsky. É conhecer melhor Marx e Engels, Blanqui e Fourier, Bakunine e Proudhon, Walter Benjamim, Fanon e Constant, Lenine, Estaline e Mao e tantos outros; foi com muita atenção que o historiador referiu a grande massa de revolucionários anónimos e que pereceram numa aura de heroísmo e de «santidade» nas barricadas de 1830 e 1848, já em desuso e criticadas em 1871, mas nem por isso menos simbólicas no Maio de 68 francês, na Alemanha e Hungria de 19 ou na Espanha em 1936. Ou revisitarmos igualmente os vitoriosos de Sierra Maestra, o Vietname, o Laos e o Camboja, a China da grande marcha ou Tiananmen de 90. O século XX foi farto em dar-nos essas experiências, muitas delas afundadas em sangue e em experiências que melhor fora não terem tido lugar. O que não retira uma vírgula, à vontade de mudança radical que é aposta numa revolução e à sua carga utópica. 
Por isso há uma impossibilidade clara de haver um compromisso entre revolução e contra-revolução seja ela legitimista, conservadora ou fascista. Esses perigosos compromissos dar-se-ão, como demonstra Enzo Traverso, na social-democracia e no socialismo democrático. Mesmo que, entre as duas guerras, se tentasse fazer essa síntese, foram todas votadas ou ao esquecimento, muitas delas junto com esses autores, ou ao fracasso. Essa força, a força revolucionária, nada tinha a ver com a autoridade legitimada das classes subalternas no poder, e a vontade ilegítima (porque pessoal) de um qualquer duce ou führer. A revolução, as revoluções, são sempre a consequência de causas de injustiças e de exploração insuportáveis para os seres humanos. Que elas sejam mais ou menos violentas ou que as instituições mudem de mãos sem um único tiro (lá vem o caso português de 74 e a Checoslováquia de 89!) as revoluções mostram sempre as suas particularidades e igualmente as suas idiossincrasias. Criticadas e temidas por muitos, até por aqueles que delas beneficiariam, retiram-lhes quase sempre as suas causalidades e as conjunturas históricas em que explodem. 

Vejamos ao que vem Enzo Traverso logo no início do livro na página 25: 

«O objecto deste livro é a revolução, para o melhor e para o pior. Ele não opera nenhuma selecção entre as boas e as más revoluções, distinção tão difícil quanto estéril visto que as revoluções não pedem para serem idealizadas ou diabolizadas: elas são experiências vivas que se transformam em permanência e cuja dinâmica é imprevisível. Mais do que um julgamento moral, uma idealização ingénua ou uma condenação intransigente, merecem uma compreensão crítica. É ainda a melhor maneira de compreender o seu significado histórico e transmitir a sua herança. Numa passagem célebre, Marx escreveu que as revoluções modernas ''não retiram a sua poesia do passado'', enquanto que Benjamin vê o seu motor escondido num desejo de redenção dos vencidos que não é mais do que ''o compromisso tácito entre as gerações passadas e a nossa''. É muito provável que as revoluções oscilem entre estas duas temporalidades: elas salvam o passado inventando o futuro, mas podem incluir os dois.»

Mais à frente:

«Contrariamente à maior parte dos trabalhos sobre as revoluções, este ensaio não consagra um capítulo específico à questão controversa da violência. Há várias razões para esta ausência, que não resulta de maneira nenhuma de uma estratégia de fuga. A mais importante prende-se com o facto de a violência revolucionária atravessar esta obra, de maneira explícita ou subterrânea, duma ponta à outra. Com algumas excepções as revoluções são erupções, pontos de viragem traumáticos. A violência pertence à sua estrutura ontológica. As revoluções pacíficas são excepções, não a regra e, em muitos casos, elas não não mais do que arautos de explosões do futuro. Em 1974, a «revolução dos cravos» em Portugal foi pacífica porque foi desencadeada por uma parte do próprio exército e se, quinze anos mais tarde, as «revoluções de veludo» na Europa central se desenvolveram sem efusão de sangue, é porque as forças repressivas foram provavelmente neutralizadas na URSS. (...) 
A segunda razão pela qual esta obra não conta com um capítulo sobre a violência é mais especificamente historiográfica. Os historiadores conservadores escrevem à maneira de promotores, que estigmatizam as revoluções não como uma, mas mais especificamente, a fonte do totalitarismo moderno. Eles repartem-se em geral em duas categorias: de um lado os apologistas astutos do fascismo, do outro, os pregadores de uma sabedoria política solidamente amarrada aos postulados do liberalismo clássico. (...)» 

«Assim, esta obra junta fragmentos intelectuais e materiais dum passado revolucionário impulsivo e bastante esquecido, com o fim de re-articular uma composição com sentido, elaborada por imagens dialécticas: locomotivas, corpos, estátuas, colunas, barricadas, bandeiras, sítios, pinturas, pósteres, datas, ruas singulares, etc. De uma certa maneira, os conceitos, eles próprios, são tratados como imagens dialécticas, na medida em que emergem nos seus contextos próprios, como as cristalizações intelectuais de necessidades políticas e do consciente (ou do inconsciente) colectivo. (pág.31).

Um livro que devemos ter sempre em conta e nunca desfazê-lo num alfarrabista, até pelas imprevisibilidades várias que podem vir a existir no futuro. Sabe-se lá.

alc