sexta-feira, julho 12, 2024

«A Subtração», de Alia Trabucco Zerán

Elsinore, 2024. Tradução de Isabel Pettermann
O Chile está cheio de fantasmas. Desde o 11 de Setembro de 1973, este país acompanha-me num exemplo demasiado tangível sobre o horror do fascismo e do que é capaz como regime em grau de eliminação em massa de homens e mulheres que, de alguma maneira, pretendiam uma sociedade mais justa. Foi o que aconteceu com o golpe de Pinochet e da Junta Militar que o conservou no poder durante perto de 15 anos. Vi, antes e depois do 25 de Abril de 1974, muitos refugiados a chegarem cá, desenraizados, alguns com uma tristeza irrecuperável que lhes levou literalmente a vida. No próprio dia da nossa libertação do fascismo salazarista e marcelista a experiência do golpe chileno sobressaltou-nos logo de manhã, porque não queríamos acreditar que era um golpe para repor a democracia e acabar com a guerra colonial. Ainda por cima, os capacetes dos soldados portugueses nos camiões que subiam a Lourenço de Azevedo, ao lado da Sereia, eram incrivelmente parecidos com os dos soldados chilenos. Ainda me lembro como, cautos e algo apreensivos, escondemos os comunicados de mobilização estudantil para o 1º de Maio, no jardim, sob uns arbustos. O nome de Kaúlza surgia-nos até percebermos o alcance libertador naquela mesma manhã. O Chile teve a ver com isso, digo-o sem grandes problemas em errar.

Ora, este livro traz-nos duas grandes novidades do Chile contemporâneo: Alia Trabucco Zerán, nascida em 1983, uma escritora de uma nova geração, essa que nasceu de pais perseguidos, torturados, presos sem culpa, desaparecidos e mortos em valas comuns e que não esquece 1973. Para que os assassinos não se sintam totalmente incólumes dos seus crimes, as gerações seguintes farão, como prova este livro, as resenhas necessárias para que o mundo não os esqueça. E aos seus cúmplices também, visto que a libertação de 1988, referida no livro, não os levou definitivamente a tribunal e Pinochet morreu na cama; a outra novidade é a qualidade literária de «A Subtração» (infelizmente temos o AO90 a chatear um bocadinho) que é uma verdadeira surpresa na escrita de Alia Trabucco Zerán. 

O título do livro é mesmo um processo de subtracção. De mortos, principalmente. De inumações e exumações, como se refere à de Neruda. Nem os mortos ainda têm descanso no Chile de hoje. Sucedem-se as valas comuns, as descrições dos verdugos que torturaram desaparecidos, a procura dos pais que ainda restam e têm forças para identificar as valas comuns onde poderão estar os seus filhos e filhas; também os hangares do aeroporto de Santiago cheio de caixões ainda não reivindicados (haverá alguém, ainda?) de exilados que preferiram deixar, nos seus países de acolhimento, uma última vontade de serem enterrados ou cremados no Chile. E sobre a cremação, ou a falta dela, em toda a narrativa cai uma chuva fininha de cinza, oriunda de um vulcão da cordilheira que nos faz aproximar ainda mais de uma realidade obscura e pesada, sufocante que hoje se vive naquele país com memória viva: 

«... é melhor ter mortos obedientes, preparados para atravessar em fila indiana a cordilheira e para que eu [Iquela, a personagem principal] os subtraia às mãos cheias; menos três, menos seis, menos nove mortos que tenho de subtrair e depois contar separadamente cada um dos seus ossos, sim, embora para mim tantos ossos sejam uma confusão. Incomoda-me a quantidade de mortos de Lisboa e da Catalunha, de Leninegrado ou Estalinegrado, porque no pretérito imperfeito viajaram para o Chile  e não chegaram, não chegaram, por isso tenho de me acalmar e respirar fundo, inspirar e reter o cheiro e a calma, embalsamar a calma com formol e só depois atravessar a cordilheira, atravessá-la e trazer comigo a própria morte...» (pág.306 em ebook de 345)

Não termino esta ficha sem dar-vos a conhecer um dos melhores momentos que este livro nos deu na percepção do que são os efeitos do LSD com uma particularidade: é Paloma, uma alemã filha de uma exilada chilena que morreu com um cancro, e de pai alemão, que «subtraiu» essa droga na clínica onde aquela faleceu. A metáfora é essa: para esquecer a morte, recorre-se à parafernália de alívio da dor através de substâncias alucinogénias (que também eram usadas pelos torturadores sobre as vítimas antes de as lançarem ao mar de helicóptero). Nem Burroughs ou a literatura beat (daquela que conheço) nos dá essa sensação de verosimilhança que esse capítulo nos empresta. Sobre as características psicológicas das personagens não acrescentarei muito. Só direi que elas são completamente livres. É a vingança máxima deste livro.

alc