D. Quixote, 2013. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
«Vassili Grossman é o Tolstói da URSS.» Quem o afirma é Martins Amis e logo a editora coloca na capa a frase bombástica, junto com a informação sempre oportuna que este é o autor de «Vida e Destino», uma obra inesquecível sobre a guerra de 1941 a 45 na então União Soviética e focada essencialmente no cerco a Estalinegrado pelas tropas alemãs. Li ambos os livros e fiquei-me por aqui quanto à obra deste autor. Talvez um dia volte a Grossman porque é uma referência importante e foi um repórter como possivelmente hoje não há, um jornalista que deve ser ainda um exemplo para milhares de repórteres de guerra que, infelizmente, estão em teatros de uma violência atroz sobre seres humanos. Pior é quando essa violência sem nome recai sobre civis sejam eles homens, velhos, mulheres e crianças. Vimos todos os dias pelas nossas casas dentro imagens dessas, repetidas sem fim. É evidente que Grossman não é o Tolstói da URSS, coisa nenhuma. Martin Amis e a editora quiseram assim nomeá-lo, mas estou em crer que das duas, três: ou Amis quis ironizar a obra de Grossman o que é mau, não o merecia, ou quis apoucar politicamente o estado soviético, o que é lá com ele, ou não sendo nenhuma destas hipóteses, não estava bem em si quando a proferiu e nunca leu Guerra e Paz.
Durante a leitura de «Tudo Passa» nota-se uma tentativa de romancear, através da personagem de Ivan Grigórievitch, uma situação que o escritor nunca experimentou: a de prisioneiro político do estado soviético, através das purgas de Estaline, principalmente a partir de 1953, data da morte deste e da tentativa de reabilitação de milhares de presos encarcerados durante dezenas de anos injustamente, alguns sem culpa formada e sob regimes duríssimos a nível correccional. O tema é esse. No entanto, convém dizer que Vassili Grossman nunca esteve preso, tendo sido o repórter oficial durante a II Guerra do jornal Estrela Vermelha órgão oficial do Exército Vermelho e segundo se pode constatar em «Vida e Destino» (proibido pelo KGB, em 1956) de uma coragem excepcional. Viu coisas, descritas nesse livro, que nenhum homem deveria ter visto. Ora, o exercício de Grossman em «Tudo Passa» sai infelizmente gorado, segundo a minha opinião: não está em causa a denúncia dos crimes de Estaline. Estão lá todos e inclusive a descrição minuciosa de como se faziam as denúncias, as causas de muitas dessas mesmas confissões, as gerações de comunistas, de operários eliminados igualmente na guerra civil de 1918-20 (talvez os mais esclarecidos e que muita falta farão ao futuro governo soviético e sovietes), de social-democratas, socialistas-revolucionários, mencheviques, anarquistas e populistas de esquerda que perderam a vida. Segundo o autor, a partir de 1924, ano da morte de Lenine, e principalmente a partir de finais dos anos 20, as purgas iniciaram-se e logo em 1931 com o caso dos «médicos assassinos» atribuídos a judeus acusados de ligações aos EUA e aos imperialistas europeus, segundo as acusações. Também a morte de Kirov foi um argumento que levou à existência de um clima de perseguição aos «conspiradores» por todo o lado. Estaline vê assim, e a partir daqui, o caminho a abrir-se para a sua estratégia pessoal. Bastava para ele «arrumar» convenientemente todos os que estiveram na guerra civil entre o Exército Vermelho, liderado por Trotsky e os que, com algumas nuances, ainda eram fiéis à ideia do comunismo internacionalista, e os Brancos de Deníkin, Koltchak ou Wrangel. Quase todo o comité central bolchevique pereceu, então, às mãos de juízes alinhados com Estaline nos processos de Moscovo a partir de 1935: Bukarine, Zinoviev, Khamenev, Radek, etc...,etc..., até ao assassinato, pela GPU, de Lev Trotsky, em 1940, no México.
Onde falha então Vassili Grossman? Não é com a denúncia dos crimes de Estaline. Isso foi feito, e até descrito, num relatório «secreto» ao XX Congresso do Pcus em 1956 e até por Trotsky na sua «Revolução Traída». O que se nota em Vassili Grossman é um amargor que se sente a cada palavra escrita, em que usa e abusa do termo «liberdade» sem que lhe dê um conceito claro. Para ele, Lenine é tão culpado como Estaline e aqui comete um erro que é visível ainda nos dias de hoje e perpetrado por historiadores de extrema-direita, direita conservadora e liberais: o de confundir deliberadamente factores subjectivos com dados objectivos da História. Escrever que, pessoalmente, Lenine era uma pessoa interessante (que se mostrava bondosa e aberta a todas as opiniões) e politicamente um verdugo do pior, estendendo a estrutura do Estado para as diatribes de Estaline é um risco que retira alguma seriedade quer às causas objectivas da revolução russa, quer a qualquer análise séria sobre a edificação do estado soviético e a resistência contra a burocracia nascente que levou ao afastamento posterior quer dos camponeses, quer de largos estratos dos operários urbanos. Nota-se igualmente o horror da descrição das fomes dos camponeses na altura da colectivização dos campos por Estaline e pela nomenklatura nascente a que Vassili Grossman assistiu e há paginas que ultrapassam em muito a nossa imaginação mais escura sobre a humanidade e a possibilidade de a regenerar de todo, tarefa que, hoje, nos parece cada vez mais difícil. Mas, nem uma palavra para os êxitos relativos da NEP que Lenine apoiou e que Bukarine e Kamenev tentaram, sem êxito, seguir. Por outro lado, Grossman tem outro ponto fraco entrando por caminhos que pertencerão à psicologia e que pouco lugar terão na política, muito menos a filigrana em que assentou as variadas correntes comunistas enquanto puderam existir: Estaline era um asiático rude, brutal, dissimulado, enquanto Lenine, um estudante urbano, com laivos e conhecimento do pensamento europeu, bem-educado, mas seguindo a regra terrível de Hegel, «o objectivo não é nada, o movimento real é tudo!»
O livro apresenta estas fragilidades, é certo, mas não deixa de nos inquietar sobre a edificação de um estado totalitário que Arendt, mais tarde, veio a analisar com mais recursos.
Uma palavra para a tradução de Nina e Filipe Guerra: tudo muito bem, mas 86 notas de rodapé em 240 páginas? Algumas dessas notas dão-nos demasiados adjectivos e opiniões pessoais que os leitores dispensarão num tradutor: por exemplo, que a «Proletkult», um movimento claramente futurista dos anos 20, em que pontificaram dos melhores poetas e pintores russos (entre eles Maiakovsky), prejudicou a cultura na URSS, é para esquecer, não é?
alc