sexta-feira, julho 19, 2024

«Limpa», de Alia Trabucco Zerán

Alia Trabucco Zerán
Elsinore, 2023. Tradução de Isabel Pettermann
Já aqui falámos da jovem chilena Alia Trabucco Zerán quando lemos «A Subtração» e a força da sua narrativa. Arriscou-se bastante com este seu «Limpa». Começa por invectivar o/a leitor/a directamente, iniciando um diálogo aparentemente próximo com ele/a. Digo «aparentemente» porque esse diálogo em literatura é uma impossibilidade natural, como sabemos. Quem lê, não tem hipótese de dialogar o que quer que seja e muito menos com a autora. A literatura não é, nem poderá ser nunca, um diálogo. Era o que faltava tornar-se igualmente uma rede social. Mas não é só por causa dessa impossibilidade que se converte num monólogo por vezes arrepiante de Alia Trabucco Zerán para com quem lê «Limpa» e dirigido a nós. Há um desprezo calculado quando nos invectiva, como que a convidar-nos para que nos coloquemos no lugar dela, uma empregada subalterna numa casa da classe média de Santiago do Chile para onde Estela, a personagem principal, migra para abandonar a sua aldeia no sul pobre. Mas há outra inquietação neste livro e que constitui o segundo risco da autora: começa a narrativa com uma morte de uma criança que está sob sua protecção. Ou seja, sabemos desde início o que se vai passar através de uma narrativa curta, semeada de tensão e disrupções várias numa casa onde Estela serve durante sete longos anos. O sabermos de antemão a morte da criança não impede o crescendo de violência dentro dos limites da casa e o nosso interesse cada vez maior pela história que nos traz Alia T. Zerán. A escritora ganhou estes dois desafios e não é por acaso que a narrativa termina numa espécie de caos por que passou todo o Chile em 2021, como que a libertar-se da tensão havida durante anos e anos de liberalismo selvagem e de submissão dos mais fracos. Estela apaga-se numa dessas múltiplas revoltas de rua quando pretende voltar ao seu sul. 

Levanto um pouco o véu dando a palavra à personagem principal:
«As coisas, naquela altura, começaram a falar por mim. Não havia em cima nem em baixo. Antes nem depois. Sem palavras, o tempo fica sem começo, percebem? E é quase impossível contar o que não tem um começo. A água a ferver foi o meu relógio, o fogo foi fogo sem ter um nome e o pó continuou a delinear o contorno das coisas.
Não, não. Assim não me vão perceber. Tenho de tentar de outra forma.
Quantos mais dias passavam, mais o silêncio se afundava na minha garganta e mais palavras endureciam. Enchi-me de pensamentos e de perguntas novas. Se, por exemplo, as coisas se transformariam ao perderem os seus nomes, tal como se transformam quando os ganham. Dizer patroa, dona, dizer chefe, proprietária. Dizer empregada, babá, serviçal, criada. Ou não dizer, sabem? Isso, sem dúvida transforma as coisas.(...)» (pág.252)

alc