Gallimard, col. Folio à 2€. 2002, trad. Jean Autret
Este livrinho comprado no já aqui citado melhor alfarrabista do mundo sito em Moutier, no País d'Oc, não por 2€ como diz a colecção da Folio na capa, mas sim pela soma abracadabrante de 1€, tem outro conto «Grand Voyage en Europe». O primeiro, «Le Vagabond américan en voie de disparition» foi escrito em 1957, o segundo em 1956.
Não esperem neste livrinho uma escrita frenética como em «Pela Estrada Fora» (On the Road) editado pela primeira vez em Portugal pela Ulisseia em 1960 (somente três anos após a edição nos EUA) e agora disponibilizado pela Relógio D'Água. Fui um dos que comprou o da 1ª edição, para que conste!
Comecemos pela «Grand Voyage en Europe» e nota-se que Jack Kerouac já não é o mesmo de «On the Road», embora a distância cronológica entre este e os contos que vos apresento seja só de dois anos. A viagem não se inicia na Europa, mas em Tânger, onde vive um misterioso Bill que só depois de algumas desconfianças minhas e algumas páginas depois, se verifica que é William Burroughs com quem partilha algumas noites e tardes loucas com muito álcool, haxixe e kief à fartazana. Parte para Marselha num barco cheio de soldados, o que não o entusiasma por aí além, tal como o barco jugoslavo que o levou de Nova Iorque a Tânger e que ia afundando numa tempestade. Ele era mais comboios, autocarros, a pé ou à boleia, o que na Europa era quase impossível com o ar de vagabundo que tinha. Depois de Marselha, Lyon, Dijon, Arles, encontra-se finalmente em Paris onde permanece algum tempo em Montmartre, frequentando o Café Voltaire. O que nos conta Kerouac? Sendo budista zen, é com surpresa que o vemos a visitar, até à comoção, igrejas católicas e os quadros e esculturas que são parte integrante da arquitectura e decoração dos edifícios. Não sendo católico, vê-se aí a influência da mãe franco-canadiana. Demonstra conhecer bem os evangelistas nomeadamente S. Mateus e tem uma fixação pelos anjos, escrevendo, aliás, «Anjos da Desolação». No Louvre, anda quilómetros seguidos e mostra uma verdadeira paixão pelos impressionistas Cézanne e Van Gogh e menos por Gauguin. Visitando antes de Paris, o campo francês e as pequenas aldeias modorrentas compreende o desespero de um Flaubert, de um Rimbaud e ou de um Balzac que, quando se puseram ao fresco realizaram obras imaginárias e sonhadoras (palavras suas). Parte para Londres e aí permanece, sem grandes descrições, a não ser a espera por receber o pagamento pelos direitos de autor de «On the Road» e andar de novo para os EUA. Como disse no início, nada de frenetismo, de hiperactividade literária, de experiências com drogas ou álcool, numa Europa que, convenhamos, nada tinha de parecido com os EUA e que, segundo Pascal Quignard ocupava literalmente a Europa Ocidental (ver «A Ocupação Americana») até a aculturar até aos nossos dias.
Se hoje compreendemos muito bem que a sociedade e principalmente a polícia não suporta nómadas e vagabundos (será necessário, hoje, acrescentar os sem-papéis, os sem-abrigo e imigrantes) já em 1956, Kerouac conta-nos que o vagabundo americano, extremamente reconhecido na conquista do Oeste e no trabalho errante no Leste, está em vias de extinção. Assim ele nos conta. Era normal, antes de meados do século XX, ver grupos de vagabundos calcorreando toda a América, mas a polícia e a própria sociedade acabou por persegui-los de um modo por vezes até violento sem que a razão última não fosse o horror ao nomadismo e à recusa do trabalho alienado. No entanto, Kerouac sabe qual a sua situação particular:
«Eu próprio sou um vagabundo, mas de uma espécie particular, como acabaram de ver, porque eu sabia que um dia os meus esforços literários seriam recompensados pela protecção da sociedade - Eu não era um verdadeiro caminhante que não alimenta nenhuma outra esperança que essa esperança eterna e secreta que se pode conceber quando se dorme em vagões de mercadorias vazios que voltam ao vale de Salinas, por um dia quente de sol de Janeiro. pelo de uma Eternidade Esplêndida, em direcção a San José onde vagabundos de aspecto cansado vos observarão, rosnando e oferecer-vos-ão de beber e de comer - ao longo do caminho ou na margem do rio em Guadalupe.» (pág.74, trad. minha)
Portanto, Kerouac sabia perfeitamente qual o seu papel na história que foi a sua vida, destruída aos 47 anos em S. Petersburgo, na Flórida, em 1969. Nada demais para quem soube de início que as coisas de abusos acabam (gloriosamente?) assim. No entanto, deixou-nos registos incríveis de quem nunca se habituou ao rame-rame social do trabalho/casa. Ele foi um dos últimos nómadas da América. Deixo-vos com um poema de Dwight Goddard que, segundo ele, melhor exprime o «sonho original» do caminhante:
«Oh sim, para este único e raro acontecimento
Com alegria oferecerei dez mil moedas de ouro!
Um chapéu na cabeça e uma mochila às costas,
O meu bastão, o fresco vento, a lua o céu.»
(pág.75, trad. minha)
Pois é. Kerouac fazia este exercício teórico: numa sociedade que endeusa e promove até ao infinito a vida saudável, tentem pegar numa tenda e numa mochila e acampar onde bem vos apetecer, cozinhar ao ar livre, fazer uma fogueira à noite e caminhar no dia seguinte sem destino algum. Essa experiência durará uma tarde e parte da noite...
alc