quinta-feira, novembro 02, 2023

«Cáustico Lunar, seguido de Ghostkeeper», de Malcolm Lowry


Sistema Solar, 2019. Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes
Sobre o período mais decadente de Lowry já se falou aqui e a maioria de vós já o conhece. Este «Cáustico Lunar» tem, contudo, uma particularidade que devemos valorizar: o tratamento psiquiátrico que era dado aos chamados «marginais» ou simplesmente incómodos para a sociedade do século XX. «Cáustico Lunar» descreve-nos uma descida a um inferno seráfico, tão hipócrita como violento nos seus pressupostos, incutidos sempre por «pessoas de bem» e a coberto da ciência médica que internavam homens e mulheres em instituições criadas inteiramente para os aprisionar e afastar dos «normais». Doentes ou não, pouco importava desde que a família pagasse o internamento ou que os juízes da lei obrigassem à exclusão social e à tortura dos «doidos». Foi assim com Lowry que tornou «Cáustico Lunar» um título incontornável sobre a psiquiatria prisional e que retrata a sua experiência como alcoólico que tenta, em fim de ciclo e em desespero, a sua própria recuperação; que não consegue, aliás, e, segundo Aníbal Fernandes que mais uma vez faz acompanhar um livro de Lowry numa excelente apresentação do autor, resgata essa prisão com uma bebedeira de 48 horas seguidas. Mas porquê este título «Cáustico Lunar» que sempre me activou a curiosidade sem que eu conseguisse encontrar uma explicação convincente? Aproveito a apresentação de Aníbal Fernandes que aí nos esclarece o título deste conto a todos os títulos inesquecível:

«Todas as línguas têm destas coisas. Por isso um alquimista -  alquimista que andava aos sais - misturou o ácido e a base, precipitou uma maciez branca que assentava em flocos no fundo da proveta, e daí nasceu a tentação de um nome acasalado com o céu e terra, sublime, e daí aconteceu um sal que, sossegado na secura da linguagem técnica com a designação insípida e química de «nitrato de prata», soube fabricar um nimbo, soprar-se ao mesmo tempo gelado e quente, obrigando o alquimista a baptizá-lo de:
Cáustico Lunar.
(Neste passo o tradutor hesita, com a bic parada no ar.)
Pois não quis o autor Lowry pedir ao cáustico lunar o nitrato nem a prata, antes o sentido perverso que lá desencantou e soube trazer ao de cima, e vingá-lo gloriosamente de uma injusta subalternidade. Se é nitrato e mancha a pele de negro, diz à letra que é cáustico e lunar; prevê um acto corrosivo e a matéria causticada com assombrações de lua, com lunáticos; quer isto dizer que será, por metáfora, os do manicómio.
Há, assim, os corrosivos solares que ardem, queimam e destroem<, mas este outro - lunar - que procede com a lua, em silêncio e com luz fria, mesmo quando inspira fúria. Os lunáticos sofrem com um cáustico de lua.» (páginas 5 e 6 da apresentação de Aníbal Fernandes).

«Ghostkeeper» é outra coisa. Mas está bem acompanhado com «Cáustico Lunar», visto que, coisa comum aos dois contos, trata de impossibilidades; de travagens no processo criativo da escrita que muitos deveriam obrigatoriamente ler, principalmente os que se abalançam a fazê-lo, mesmo que para isso lhes faltem atributos. Leiam este extracto que escolhi de «Ghostkeeper»:

«Agarra num papel, num lápis; e, tomado pelo frenesi que o inspira, senta-se e escreve. Tinha de pôr toda a subectividade de lado e contar a história exactamente como acontecera; ou antes, exactamente como ainda não tinha contecido até a fim. É porém estranho o que sucede quando tenta escrevê-la. A falta de material costumava deixá-lo aborrecido e doente, mas agora tem-no numa quantidade muito superior à necessária. (Talvez haja aqui uma parte inicial em diálogo, excitado e entusiasmado, com Mary).
Mas as coisas não são bem assim. Todos os jornalistas trabalham a partir de uma base que é uma pletora de materiais, e fazem aí a sua selecção; durante muito tempo ele próprio se disciplinou para passar ao papel as suas quinhentas palavras diárias. Além disso, os contistas que mais admirava, o O'Flaherty dos primeiros tempos, o Tchekov, o Sodeborg, o Jensen, o Pontoppidan, o irlandês James Stern, O Hermann Bang, o Flaubert dos textos breves, o Maugham, O Pieskov, o Kataev, até o Faulkner de uma ou duas histórias, o James Thurber, O Bunin, o Saroyan, o Hoffmansthall, o autor do livro de Job que só Deus sabe quem é, todos estes escritores visavam a economia de palavras, mesmo que às vezes a não alcançassem. (...)» (páginas 138, 139).