segunda-feira, novembro 06, 2023

«Fome», Knut Hamsun

 


Cavalo de Ferro, 5ª edição, 2022. Tradução do norueguês de Liliete Martins

A fome tal como ela é. Este livro do norueguês nobelizado em 1920 e falecido na miséria em 1952 devido às suas simpatias nazis durante a II Guerra Mundial (não foi o único na Noruega, antes pelo contrário, mas disso já tratámos aqui) é de uma violência nada condizente com a chamada sociedade de abundância com que vivemos hoje no Ocidente. Mas que ela existe, existe. Anda por aí, disfarçada, e como tema ou experiência é arredada para debaixo do tapete como em qualquer sociedade de bons costumes liberais que se preze. Tenhamos a noção, ao acabar de ler este livro, que a fome descrita desta maneira crua, só pode ter sido vivida por quem a sentiu e desesperou com ela: a fome. Tanto física, como psíquica a fome apresenta-se com toda a verdade que lhe é inerente. Não há escapatória ou purgante para a fome. O desespero de quem não tem hipótese de comer naquele momento e, pior, de quem não vê qualquer perspectiva de o fazer num futuro próximo. A contagem dos cêntimos, a venda de produtos colados ao corpo, por vezes a venda do próprio corpo ou dos órgãos, a riqueza imensa de ter um bocado de pão mesmo recesso. O esvaziar lento dos valores de sociabilidade, o ódio crescente aos passantes, a todos nós chega a invectiva de quem tem fome. A fome fica, permanece, não será nunca esquecida por quem a viveu, nem que fosse por um só dia.

    «Entrei e voltei a subir. O coração batia-me violentamente. 
    Entrei furtivamente na passagem Smedgangen o mais fundo que pude chegar e parei diante de um portão deteriorado, junto de um pátio traseiro. Não se via qualquer luz em parte alguma, à minha volta estava escuro, felizmente. Pus-me a roer o osso.
    O osso não sabia a nada, mas soltava um cheiro áspero a sangue e tive de vomitar logo a seguir. Tentei de novo. se ao menos conseguisse aguentá-lo no estômago, faria de certo algum efeito; tratava-se de lograr que se mantivesse lá dentro. Mas voltei a vomitar. Zanguei-me e mordi a carne com brusquidão, arranquei um pedacinho e engoli-o violentamente. Não me serviu de nada; assim que as migalhinhas de carne tinham aquecido no estômago, lá vinham elas para cima outra vez. Cerrei os punhos com louca exasperação, desatei a chorar desamparado e roí como um possesso. Chorei, vi o osso ficar molhado e sujo pelas lágrimas, vomitei, praguejei e voltei a roer. Em voz alta amaldiçoei todos os poderes do mundo e mandei-os para o inferno.
    Silêncio. Nem uma pessoa por perto, nem uma luz, nem um ruído. Encontrava-me numa violenta agitação dos sentidos, a minha respiração era pesada e ruidosa e eu chorava pungentemente de cada vez que era forçado a vomitar aquelas migalhas de carne que talvez pudessem dar-me um pouco de alimento. Como não foi possível de todo, por mais que tentasse, arremessei o osso contra o portão, impotente de raiva; a fúria pôs-me desvairado, ameacei e gritei violentamente contra o céu, berrei o nome de Deus com voz rouca e cortante e curvei os dedos como garras...
    - Digo-te, ó divino Baal do céu, que tu não existes; e se  existisses, eu amaldiçoar-te-ia de tal modo que o teu céu seria assolado pelo fogo dos infernos. Digo-te que te ofereci os meus serviços e tu recusaste, digo-te que me afastaste de ti e que agora te viro as costas para todo o sempre, porque não te apeteceu manteres-te informado das tuas horas de visita. Digo-te que sei que vou morrer e, no entanto, ó Deus do Céu e Ápis, ouso afrontar-te com a morte nos dentes. Digo-te que prefiro ser lacaio no Inferno a homem livre nos teus domínios; digo-te que nutro o mais glorioso desprezo pelo teu ridículo Céu e que prefiro escolher para eterna morada o abismo, para onde são empurrados Satanás, Judas e o Faraó. Digo-te que o Céu está cheio de todos os idiotas, com as cabeças mais boçais deste reino terreno, e de indigentes espirituais, e digo-te que encheste o Céu com todas as gordas meretrizes daqui de baixo, quem na hora da sua morte, ajoelharam perante ti por cobardia. Digo-te que tens usado de violência contra mim, mas não sabes ó Nulidade do saber absoluto, que jamais me curvarei na adversidade. (...)» (páginas 133 e 134)

Este continuum de impropérios ao criador (não acaba aqui) lembra em grande parte Nietzsche o que não será, de todo, surpreendente sendo o autor quem foi. Mas todo o livro é uma descrição verdadeiramente impressionante sobre a fome que anda sempre junto com a pobreza. À fome, às alucinações provocadas por ela, ao delírio dos sonhos e de sonos mal dormidos, à agressividade latente de quem jejua por falta de dinheiro, juntam-se os lugares desprovidos de aquecimento, a humidade e o frio e vento cortantes como facas. As feridas que não saram por fraqueza geral do corpo já não imune. Mais grave ainda é a indiferença das pessoas. Se a vida de um jovem escritor em princípio de carreira, nos finais do século XIX, é descrita por Knut Hamsun como um ataque elaborado aos nossos sentidos, conseguiu-o plenamente. Cumpriu o seu papel como objecto literário. E isso importa.