quarta-feira, novembro 15, 2023

«Cosmos - Uma Ontologia Materialista», Michel Onfray

 

Edições 70, 2015. Tradução de Pedro Elói Duarte
Este é o primeiro volume de uma trilogia fundada por Michel Onfray, sendo que o segundo já é o nosso conhecido «Decadência» publicado em 2019 e já comentado aqui no blogue: https://derivadaspalavras.blogspot.com/2019/12/o-estado-morreu-o-cristianismo-tambem.html . O último da trilogia não está ainda disponível em português e tem o título de «Sagesse».  Nietzschiano de esquerda (embora afastando-se de Deleuze), ateu, hedonista e vitalista, livre pensador e libertário, nem por isso Onfray deixa de ser por vezes desconcertante e provocador, mas, sem essa qualidade, poucos o leriam e o comentariam. É mais do que necessário, num mundo ocidental em clara ruptura, saber dos pressupostos filosóficos que o norteiam e que são apresentados com grande clareza ontológica. O mais interessante em Onfray, para além de uma honestidade e seriedade que podemos sentir em todas as ideias apresentadas nas perto de 500 páginas de «Cosmos», é o seu apego ao materialismo. Não um materialismo básico, daquele que nos reenvia para a mesma fé cega das igrejas e mesquitas ou do monoteísmo das religiões do livro, mas, paradoxalmente, para um materialismo primitivo, hedonista, epicurista, cosmológico. É neste sentido que nos identificamos com as propostas de Michel Onfray porque não cai na vulgaridade, embora não seja nada meigo para com o legado judaico-cristão. Legado esse que ainda é observado em múltiplas reminiscências quer na filosofia, quer na arte contemporânea, mesmo naqueles que propõem o afastamento das religiões. Não é contraditório. É, antes, complexo tudo isto e o olhar de Onfray remete-se para essas pequenas grandes manifestações em que a religiosidade é apanhada em falta, envolvendo-nos na sua negatividade com uma capa de «provocação» e «novidade». A proposta de uma ontologia materialista, sub-título de «Cosmos», não é fácil: a vida em comunidade com o cosmos, com o universo é muito mais difícil de interiorizar do que ir à missa e crer em algo impossível de provar a existência. A materialidade do universo está connosco e não só com o corpo, mas com os átomos de que tudo é feito. Para lá caminhamos (para o universo) e essa fusão final está carregada de uma ontologia que vem dos inícios dos tempos da Humanidade. Basta conhecê-la e compreendê-la, por vezes afastando-nos das pesquisas oficiais e académicas, e preparar a vida merecida de ser vivida em comunidade activa com a Natureza e com os outros. A minha proposta é conhecer esta obra com alguns trechos breves e escolhidos no desejo que seja lido na íntegra.

Sobre o tempo:
«(...) O esquecimento do tempo virgiliano é causa e consequência do niilismo da nossa época. Ignorar os ciclos da natureza, desconhecer os movimentos das estações e viver apenas no betão e no betume das cidades, no aço e no vidro, nunca ter visto um prado, um ampo, uma mata, uma floresta, uma mata de corte, uma vinha, uma pastagem, um rio é já viver no jazigo de cimento que um dia alojará um corpo que nada terá conhecido do mundo. Assim, como encontrar o nosso lugar no cosmos, na natureza, na vida, na nossa vida, se vivemos num mundo de motores poluentes, de luzes eléctricas, de ondas insidiosas, de sistemas de viodeovigilância, de ruas alcatroadas, de passeios cheios de dejectos de animais? Sem outra relação com o mundo senão a de um objecto num mundo de objectos, é impossível sair do niilismo.» (páginas 30 e 31)

Sobre  a «construção de um contratempo»:
«(...) este tempo dissociado das suas ligações ao passado e ao futuro, este tempo não dialéctico, este tempo intemporal define o tempo morto. Vivemos no tempo morto construído pelas máquinas de virtualizar o real. (...) Este tempo morto, portanto, nada mais permite que não a morte. Não é o tempo suspenso do místico pagão ou do sábio que sabe alcançar o sublime, o êxtase e o sentimento oceânico, mas a presença vazia e oca neste mundo como se fosse já um nada. Da mesma maneira que encontramos o silêncio no próprio coração da música descascada como uma cebola, encontramos a morte quando retiramos as escamas deste tempo do niilismo. No vazio mais íntimo do plano da televisão, na sinuosidade mais indetectável da fala radiofónica, no epicentro da mensagem do Twitter ou de correio electrónico, só há magia, ilusão, ficção tomada por realidade - a realidade, a única realidade. Somos sombras que vivemos num teatro de sombras. A nossa vida é geralmente a morte.» (Pág. 109)

Sobre Nietzsche:
«Nietzsche, justamente. Quem quiser sabe, agora sabe: A Vontade do Poder não é um livro de Nietzsche, mas um produto de marketing e de política antissemita e fascista posto no mercado pela sua irmã amiga do Duce e de Adolfo Hitler. Há tudo e o seu contrário neste livro volumoso confeccionado com notas de leitura, citações de autores não referenciadas, pistas de trabalho, esboços de demonstração, ensaios de pensamento, tentativas de reflexão abortadas e até, provavelmente, acrescentos da irmã do filósofo sob o pretexto de recopiar as páginas manuscritas perdidas (!) do irmão - tudo menos aquilo que define habitualmente um livro.» (pág.112)

Sobre o «vitalismo»:
«O Ocidente tem dificuldade em olhar de frente a materialidade da natureza e em encarar o que subsistiria de culturas vitalistas no planeta. O cristianismo praticou um etnocídio planetário a partir de 1492. As civilizações ameríndias do Norte, de Centro e do Sul, os índios e os Maias, os Astecas e os Olmecas, os Maias e os Toltecas, os Zapotecas e os Mixtecas, as civilizações árticas inuítes, as numerosas civilizações africanas colonizadas e depois destruídas pelos militares e missionários vindos dos países europeus, como a França, a Bélgica, a Alemanha, a Inglaterra, o islamismo, também destruidor da cultura dos países que conquistou, todos esses povos que mantêm uma relação sagrada com a natureza e não com o seu hipotético criador.
Antes das devastações efectuadas pelo Ocidente, a África foi a grande terra do sagrado na natureza e da natureza no sagrado, sem que houvesse transcendência alienante: os espíritos dos mortos viviam entre os vivos e vice-versa, tudo nesta terra (...).» (pág.125)

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