Angelus Novus, de Klee
Literalmente, Os Anjos.
Mas PT é para poetas e pintores. Há
semanas atrás vi, no Porto, uma retrospectiva da obra de Wim Wenders e o já
épico Asas do Desejo. A minha
introspecção involuntária e algo dolorosa que se verificou após o filme, levou-me
a pensar naqueles anjos de longos cabelos e gabardines, belos e imortais,
olhando os homens e as mulheres com a inveja da felicidade de sermos todos
finitos. Pensei na presença de anjos nos maiores da poesia e arte mundiais. Em
Wenders, os anjos hesitam entre a queda e o voo num mundo realmente invertido.
Nunca saberemos a opção real daqueles anjos que nos estudam, atentos, numa
biblioteca, tentando adivinhar o Outro, ou seja, nós próprios. Por alguma coisa,
o realizador os colocou num ricto nostálgico enquanto deambulam por corredores
cheios de livros. Sabemos também que Larkin, Mallarmé, Eliot, Yeats ou Whitman
clamavam por anjos e Paula Rêgo os pintou com asas negras, particularmente
maravilhosos e provocantes. Mas são os de Heiner Muller que, no seu Anjos do Desespero, nos perturbam. Diz
Muller: «Atrás dele (do anjo) o passado dá à costa, acumula entulho sobre as
asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente
se acumula o futuro, esmagando-lhes os olhos, fazendo explodir como estrelas os
globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com
o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas…». O desespero
em todo o seu fulgor. Mas é Paul Klee, que, num simples quadro de 1920, nos dá
a visão mais abjeta do mundo e que leva Maria João Cantinho, uma escritora e
ensaísta portuguesa, a interpretar o Angelus
Novus do pintor (podem ver a imagem
pela net) desta maneira: «Nessa imagem terrível, o Angelus Novus revê-se num mundo melancólico e triste, horrorizado
pela sua visão, com um olhar alucinado perante esse horror e encontrando apenas
diante de si, um monte de destroços, que quer reunir e «salvar», mas uma
tempestade que sopra do paraíso prende-lhe as asas, arrastando-o, impedindo-o de
realizar esse gesto» (in Anjo Melancólico,
2002). É esse olhar, essa impotência nas asas de um anjo que nos comove
como seres humanos. E que melhor alegoria para o mundo de hoje, que esse olhar
aterrorizado se reverta sobre nós, quando sabemos que esse mesmo quadro de Klee
está em Jerusalém, do lado israelita, provavelmente «protegido» por
metralhadoras e toda a panóplia de armas de guerra e de homens treinados para
as utilizar. Para que o horror continue intacto.
António Luís Catarino
7 de abril de 2017