terça-feira, junho 18, 2024

«Velhos Supérfluos-Teses sobre o Capitalismo e a Velhice», Andreas Urban

 

Antígona, Maio de 2024. Tradução de Boaventura Antunes
Comecemos pelo jovem autor austríaco Andreas Urban. Aliás, é significativo que existam cada vez mais autores jovens que consulto, o que me faz cada vez mais velho e, concomitantemente, um ávido consumidor sobre o tema. Isto anda tudo ligado. O autor, nascido em 1982, pertence a um grupo marxiano, com evidentes ligações a teorias situacionistas e que desenvolvem as suas teses de superação do capitalismo na sua fase actual, em torno de revistas e plataformas digitais como a Krisis, Exit!, a wertkritik.org., para além de várias obras publicadas. A sua influência teórica é marcada pelos trabalhos de Robert Kurz (já desaparecido) e de Roswitha Sholz, mas eu acrescentaria mais uns como Anselm Jappe, Norbert Trenkle e evidentemente, Marx. Todos eles (excepto Trenkle, onde assisti a uma palestra dele na antiga Ler Devagar) foram editados pela Antígona. 

«Velhos Supérfluos-Teses sobre o Capitalismo e a Velhice» é divido em três partes, todas elas importantes. O primeiro capítulo é a explicação teórica óbvia para o tema da velhice que leva o autor a explicar a superação da síntese marxista do livro I do Capital em que Marx desenvolve a teoria do valor de uso e de troca das mercadorias, do lucro e da mais-valia, assim como a criação do fetichismo dessas mesmas mercadorias levado ao extremo. Sem colocar em causa a teoria, o Grupo Krisis e o autor que claramente se revê nele, aponta uma outra visão que é o desenvolvimento dessa mesma teoria, mas num capitalismo que evoluiu para o absurdo do valor e da «dissociação do valor-compulsão» através do aumento exponencial da produção de mercadorias baseadas num «trabalho-abstracto» que visa o lucro e a multiplicação do lucro até valores estratosféricos (riqueza abstracta) e o «trabalho-concreto» que produz os alimentos e os produtos que necessitamos (riqueza concreta). Este último é claramente secundarizado em detrimento do primeiro que leva à desvalorização (igualmente exponencial) do trabalho, visto que o lucro deste último é residual. Sem esta explicação o trabalho não se entenderia mais à frente.

Ora, é aqui que entra a questão da velhice e do envelhecimento, desenvolvida no capítulo II. Do supérfluo que é criado pela ausência de produtividade e do trabalho-concreto pelos velhos e que, para além do capitalismo que o chuta para o lado ao mesmo tempo que o endeusa através de técnicas de active-aging onde vai sacar ainda alguma produtividade e ganhos dos velhos através das políticas sociais do Estado Social e do capitalismo que lhe é associado, em indústrias multinacionais cada vez mais prósperas. É a contradição, quase esquizofrénica, do capitalismo actual no referente ao envelhecimento. Contudo, este facto visível para todos com a glorificação do «jovem-idoso» não impede que se construa obscuramente o anti-aging já numa fase mais avançada da velhice (a quarta idade) em que será impossível a produção de qualquer mercadoria ou actividade lucrativa por evidente incapacidade física. É a ocasião de (re)entrarem as teses de Foucault sobre os lares de idosos no III capítulo do livro de Andreas Urban. Aqui, se dá a custódia observável por todos e que nos levará necessariamente a uma reflexão crítica, embora a análise de relatórios, todos eles sombrios, se centre sobretudo na Alemanha, na Áustria, na Hungria e na Chéquia. Não será muito difícil, em Portugal, revermo-nos nesses relatórios que levam a um aprisionamento dos velhos em lares que impedem a liberdade que podem e devem ter os velhos. Claro que o autor sabe do que fala e aponta para uma crítica que pode ser-lhe formulada e que não deixa de ser venenosa, visto que pode reverter-se contra ela: ou seja, que os ritmos de trabalho de hoje não permitem à família tratar dos velhos como no pré-capitalismo. Estamos a falar de trabalho e de ritmos de trabalho, a maior parte dele, abstracto em termos marxianos, que já vem sendo denunciado desde os anos 60. Lembram-se?

Gostaria de focar mais dois pontos (há muitos mais, neste livro de 169 páginas e vasta bibliografia) que gostaria de relevar: o «active-aging» não deixa de ser o pior e mais visível da relação entre o capitalismo e da velhice. Esta negação do «não fazer nada» «ou fazer o que se gosta, recusando a produção de capital alienado» é recusado liminarmente pelo capitalismo na sua última fase. Pior do que isto, só a cumplicidade da sociedade perante esta proposta obscura. Pessoalmente, ainda não consigo ver imagens de velhos a «abanarem o capacete» em discotecas, à tarde bem-entendido, por cuidadoras vigorosas entusiasmadíssimas ou ver caras completamente desfeitas por cirurgias plásticas multiplicadas por correcções intermináveis defendidas por quem aposta num futuro transhumano ou lares de idosos tratados por robots, tipo Autoeuropa. A segunda questão, terá a ver com a repressão existente nos defensores por agora silenciosos no anti-aging que leva a colocar tudo no mesmo cesto da exclusão. Os velhos são velhos, onde cabem mulheres (geralmente mais frágeis em lares), racializados, queer, migrantes, com desejos sexuais, que aliás são proibidos nos lares sob custódia e cujos cuidadores podem ser postos em tribunal pela família se vier a acontecer, tal como com jovens sob custódia que empreendem contactos sexuais em visitas de estudo!!

No capítulo III, ainda se levanta um tema polémico, nomeadamente quanto à eutanásia e suicídio assistido; no plano do envelhecimento não estaremos muito longe de o ver aprovado por alguns países europeus, livrando-se a UE de se meter em trabalhos que podem levar a extrema-direita a subir ainda mais, mas que podem servir como porta-giratória para esse fim a preços exorbitantes. Extrema-direita que sabe do que fala porque os seus antepassados o fizeram sem qualquer rebuço aos que consideravam supérfluos. E não foi só na Alemanha e na Áustria, convenhamos. Mas não teremos nós uma percepção que nos leva a crer que existe já como prática escondida relativamente aos velhos? É que as taxas de suicídio dos idosos em terceira e quarta idade na Europa são assustadoras.

alc