Eis um mapa dos navegantes das Ilhas Marshall. As suas derivas eram cartografadas em rotas
apontadas para as estrelas do céu. Nunca se perderam nos mares, ao que consta. A Deriva
Editores criou-se em 2003 acompanhada por um mapa que obrigava à atenção inconformada
dos que não tinham voz ou era tão ténue que mal se ouvia. Foi assim a partida para o largo:
recusa de mais literatura anglo-saxónica já de si excedentária nos escaparates e dar voz às
literaturas minoritárias com a Galiza, o País Basco, a Bretanha, a Irlanda, a Catalunha, a Áustria,
a Argentina. Foram realidades que nos obrigaram a um equilíbrio onde os factores se cruzavam
literariamente do bom ao excelente, da luta política autonómica ou independentista, até à
denúncia das majestosas democracias europeias que não escondiam a sua tendência centrípeta
de engolirem as incómodas culturas minoritárias e lançarem para o ostracismo as riquíssimas
línguas periféricas. Alguns pagaram com encarceramentos duradouros a sua ousadia como o
basco Anjel Rekalde (20 anos de prisão) «Dorregarai – A Casa-Torre», o francês Jean-Marc
Rouillan, (prisão perpétua) «Odeio as Manhãs», os americanos John Zerzan (organizador das
manifestações de Seattle) «Futuro Primitivo», Peter Lamborn Wilson (Hackim Bey, o seu nome
muçulmano) «Utopias Piratas», o bretão Patrick Raynal «Ex», o escocês a viver na Bretanha,
Kenneth White, este último o criador do movimento geopoético e autor de «O Espírito
Nómada», os galegos Antón Riveiro Coello «As Rolas de Bakunine», Xurxo Borrazás «Ser ou
Não», Xavier Queipo «Bebendo o Mar» ou Gonzalo Navaza «Erros e Tanatos». A edição de «A
Mobilização Global, seguido de Estado-Guerra» do catalão Santiago López-Petit veio apresentar
a política notívaga de subversão contra o Estado na senda de uma verdadeira tentativa de
propor as várias possibilidades de insubmissão permanente.
«O nómada que existe em cada um de nós como uma nostalgia, como uma potencialidade, não
tem a noção de identidade pessoal, a «consciência de si» é-lhe estranha. Sem dizer «penso» ou
«sou», põe-se em movimento e a caminho faz melhor do que «pensar», no sentido denso da
palavra, enuncia, articula um espaço-tempo de múltiplas focalizações que é como que um
esboço do mundo. O movimento nómada não segue uma lógica rectilínea, com um princípio,
um meio e um fim. Tudo aqui é meio. O nómada não segue para qualquer lugar, e para mais em
linha recta, mas evolui num espaço e regressa muitas vezes às mesmas pistas, iluminando-as e
talvez, se for um nómada intelectual, com novas luzes.» Kenneth White
«Só a rejeição total da realidade no-la pode mostrar na sua verdade. Só a rejeição total do
mundo nos diz a verdade do mundo. Mas esse gesto radical de rejeição já não é o gesto
moderno que, depois da destruição anunciava e preparava um novo começo. Não há começo
absoluto porque a «tabula rasa» não nos deixa diante de nenhuma verdade absoluta. A rejeição
total da realidade apenas nos oferece «uma» verdade da realidade. Esta é a nossa verdade.»
Santiago López-Petit
Antes, em 2006 e 2008, publicou-se com Vicente Romano, «A Formação da Mentalidade
Submissa» e «Intoxicação Linguística» dois livros que denunciam os media como o alfa e o
ómega na formação do indivíduo amorfo, narcisista, muito bem com ele próprio e com a
sociedade que o escraviza e que, como bom obediente, o aceita, feliz. O escravo que tem
orgulho em sê-lo:
«A consciência indiferenciada corresponde à vida sentimental estereotipada. O pensamento
mágico acrítico, gera uma consciência conformista, submissa. O que significa deixar por mãos
alheias a solução dos problemas próprios, situação em que tudo pode ser facilmente
manipulado por esses interesses estranhos. Aí radica o perigo de passar as rédeas dos assuntos
pessoais para as mãos dos especialistas ou do novo credo académico. Autodeterminação
significa, antes de tudo, libertar-se da angústia e ganhar consciência das determinações
impostas por terceiros, para conseguir ultrapassá-las.» Vicente Romano
De resto, as coisas fluíam e mais tarde, em 2014, com a edição de «Manual de Sabotagem –
Escritos sobre política, memória e capitalismo», de Elfriede Jelinek, tão nobelizada, quanto
esquecida e ostracizada na sua própria terra, a Áustria (em Viena, em três livrarias de
referência não encontrei um único livro dela), conseguiu-se dar voz a esta autora única do
desencanto germânico, afirmando que nunca a Alemanha ou a Áustria do Anchluss
conseguiram ultrapassar o nazismo. Não só a culpa, mas o nazismo tal qual. Ele subsiste ainda,
vivo.
Nos anos 80, suicidaram-se vários operários na fábrica da Peugeot em Sochaux. Editou-se, em
2014, «Crónicas Peugeot» do sociólogo Michel Pialoux em conversas com o operário Christian
Corouge, de modo a denunciar o trabalho demente porque repetitivo, mesmo na cadeia
robótica que despontava:
«Não sei se algum dia partirei da fábrica. Porque vou contar-te uma coisa perfeitamente parva,
mas... há um ano, estivemos uma semana no desemprego, mesmo antes das férias, portanto
isto dava cinco semanas. Ao fim de quatro semanas de férias – estávamos perto de Cherbourg –
já não dava mais. Estava a bater mal lá. Estava a bater mal, fui obrigado a vir embora. Sabes,
uma espécie de necessidade masoquista. Não estava bem. Quatro semanas, tudo bem, vês:
recuperas fisicamente, fazes o ponto da situação na tua cabeça, tudo bem, descontrais... e
depois, dizes para contigo: ‘O que é que me espera quando regressar? Portanto preciso de
voltar. Preciso de voltar para ver, para estar ali porque... começo a estar farto das férias,
começo a andar às voltas. Ando aqui a coçar os tomates, tenho que bazar’. E foi o que nos
aconteceu. Viemos embora uma semana antes. Demos cabo de uma semana de férias para vir
embora. Precisava de ir ver a fábrica durante as férias, vês, quando a fábrica está parada. Ir
diante da porta e dizer para comigo: ‘Merda, mas como é que a gente vai fazer para desmontar
esta coisa?’ Fazer isto... Crónicas Peugeot, de Michel Pialoux e Christian Corouge.
Nesta mesma colecção aparecem nas livrarias pela mão da Deriva uma obra de Wittegenstein,
«Observações sobre o Ramo Dourado de Fraser» nunca editado neste canto europeu e outro
de Mikhail Bakhtin «Para uma Filosofia do Acto».
A poesia e a narrativa acompanharam-nos durante os 15 anos de existência, com resultados tão
desconcertantes e algo equívocos, como reveladores. Realça-se somente os que se considera
terem sido os poetas verdadeiramente genuínos e que entenderam, desde o início, que um
editor não é exactamente um promotor no mercado, muito menos do mercado literário ou de
gestão de egos excêntricos. Aqui vão os que de uma maneira ou de outra deixaram registadas
as melhores páginas e de doces lembranças em vários livros editados que marcaram uma época
própria: José Ricardo Nunes, Ricardo Gil Soeiro, o já falecido Joaquim Castro Caldas com o seu
«Mágoa das Pedras», Filipa Leal, Catarina Nunes de Almeida, Marilar Aleixandre, João Pedro
Mésseder, Henrique Manuel Bento Fialho, António Alves Martins, Pedro Eiras, Maria Leonor C.
Figueiredo, entre outros.
A parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa deu-nos livrinhos da
colecção Pulsar onde sobressaíram nomes como Sarrazac, Pascal Quignard, Antoine
Compagnon, Anselm Kiefer, Carlo Ginzburg, Olivier Py, Jean-Claude Pinson, Stephane Mallarmé
com o seu «Crise de Versos», Wyndham Lewis e os Manifestos Vorticistas. Também se
editaram estudos literários sobre Annemarie Schwarzenbach, Max Frisch, Kafka, Coleridge ou
Stevenson.
«G. Agamben assinala que desde Miguel Ângelo o inacabamento é teimosamente exaltado pela
arte e que se pode explicar este gosto por uma espécie de prazer derivado do fetichismo. Schlegel
mostrava que, como as obras que admirávamos mais - quer dizer, desde a Renascença, as obras da
Antiguidade - tinham chegado no estado de fragmentos, as obras dos modernos procuravam
assumir esse estado logo ao nascerem, imputando o fascínio que exercem à fragmentação e
julgando que estes pedaços, que evocavam totalidades indizíveis e ausentes ao provocarem o desejo
do todo, ampliavam a emoção.» Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos, Pascal
Quignard
«A autodestruição foi sempre a finalidade mais íntima, a mais sublime da arte, cuja vaidade se
torna desde logo percetível. Pois, qualquer que seja a força do ataque, e mesmo que tivesse
chegado ao limite, a arte há de sobreviver às suas ruínas. (…)
O Colégio de França convidou um artista plástico na esperança, presumo, de que vos fale de arte,
vos informe acerca do que é a arte, demonstre a sua origem. Dir-vos-ei que não há definição da
arte. Toda a tentativa de definição se desfaz no limiar do seu enunciado, tal como a arte, que não
deixa de oscilar entre a sua perda e o seu renascimento. Nunca está onde contamos com ela, onde
se espera apreendê-la e, referindo-me ao Evangelho segundo São João, direi: ‘Onde estiver, não o
podemos alcançar’.» A arte há de sobreviver às suas ruínas, Anselm Kiefer
Seguiu-se, pois, a denúncia com mais parcerias, agora com os livros editados com a edição
portuguesa do Le Monde Diplomatique e com a Cultra, uma cooperativa cultural alternativa do
Porto onde se editou Regina Guimarães com um libelo contra as chamadas «indústrias culturais»,
seja o que isso for.
Mas é com uma intervenção, em Julho de 2016, no último livro que se editou pela Deriva, «Cidades
Materiais», de António Alves Martins, que talvez esteja plasmada toda a génese, leitmotiv e o fim
anunciado da Deriva. Não por acaso, reside nesta declaração tudo o que levou à sua criação e ao
fim da editora e que exponho uma parte significativa:
«Em meados dos anos 80, tínhamos todos 20 e tal anos. Miúdos da Faculdade de Letras que
dizíamos abominar, sob a fórmula de palavrosas parábolas coimbrãs: ‘faça-se luz, incendeie-se a
universidade!’. A verdade é que nos foi ensinado muito mais nos cafés adjacentes à Praça da
República onde o prazer de falar, de conhecer e de debater era superior a tudo. Com algumas
substâncias e segmentos aditivos que o facto de já terem prescrito, e apesar de uma louvável
loucura que contrastava por vezes com imprevisíveis depressões, não me fazem aqui desenvolver e
muito menos pormenorizar, por irrelevante. O agir concreto apareceu com o convite para fazer
parte de um colectivo editorial da Centelha, e, mais tarde, da Fora do Texto.
O espírito da revolta. In girum imus nocte et consumimur igni, o último filme de Debord realizado
em 1978 e editado finalmente em 1981, com peripécias várias que, mais tarde, inclusive, levaram ao
assassinato do editor da Champ Libre, Gerard Levobici (não foi o único), constrói a ideia do consumo
e da alienação como alfa e ómega do capitalismo em fase de mutação para a pós-modernidade.
Esta frase latina atribuída a Virgílio é a descrição real do que nos levou à deriva nocturna e à
necessidade imperiosa de lutar contra a alienação do público que nos olhava de soslaio.
Consumimos a noite e pegávamos-lhe fogo mesmo com acendalhas já usadas por outros. Creio não
me enganar que entre blusões negros e echarpes negras ou canadianas verdes militares,
construímos à nossa maneira um fogo permanente que nos devorou igualmente na ânsia da revolta
e na dramatização do sem sentido de uma vida quotidiana que negávamos. Recusávamos o tédio.
Recusávamos a mercadoria, recusávamos qualquer valor de troca. Preferíamos a poesia e o
pensamento como as únicas vertentes que não se podem domar. E o amor. Esse, sempre presente
no fogo quotidiano em que geríamos a noite em chamas. As chamas, essas, devoraram-nos? É
possível, mas nas regras do Potlacht primitivo, este com coincidências inquietantes com o
cristianismo também ele primitivo, quem perde ganha, quem ganha, perde. A noite consumiu-nos,
sim, mas com a voragem da revolta romântica. (…) ‘Numa sociedade invertida, o verdadeiro é o
momento do falso’. Isto foi dito em 1967 e corresponde a uma realidade já indesmentível e com
contornos que o seu autor, Debord, provavelmente, não imaginaria na enorme dimensão
espectacular que nos rodeia hoje. Assim, se nenhum movimento reivindicativo da arte
revolucionária foi superado desde 1916 com Dada, esta tornou-se uma mera mercadoria, que vale o
que vale consoante o valor das trocas. Nos anos 80, vivia-se por toda a Europa a ressaca dos anos
de chumbo criados por Andreas Baader e Ulrike Meinhof que proclamava em livro ‘vocês falam do
tempo, nós não!’ e pelas Brigadas Vermelhas de Renato Curccio na Itália, estas últimas teleguiadas,
como se soube, pela polícia secreta. Tudo isto gerou uma impossibilidade poética, uma forma de ver
a política e de destinar uma vida quotidiana não marcada pelo tédio e pelo aborrecimento, ou, se
quiserem, pelas cadeias infernais do trabalho. Mas como promover isto mesmo numa sociedade
alienada pelo medo, pela vingança dos anos pós-Prec e pelo espartilho terrorista no Portugal
mesquinho dos anos 80 e da recuperação yuppie? Foi a altura também dos anos criadores e
libertadores do rock com o aparecimento de Johnny Rotten, dos Clash, de um Lou Reed já sem os
Velvet Underground, do Bowie tornado pop, de Ian Curtis dos Joy Division e depois com os New
Order, de Iggy Pop, de trautearmos Jim Morrison pelas ruas desertas de Coimbra e aclamando o
Jazz, recuperando para nós o be-bop e o free como forma de dizermos: ‘Falem do tempo, falem do
tempo, nada temos a ver convosco!’ Aderimos à arte contemporânea e às possibilidades do vídeo,
do teatro e da performance sendo que estas foram, exceptuando alguns, poucos, casos rapidamente
recuperados. Identificávamo-nos pela música e pela deriva. A deriva consubstanciada todos os dias
numa cidade que cada vez mais se tornava um labirinto de cimento corbusiano. A deriva que aqui se
fala é a de Thomas de Quincey que, nas suas «Confissões de um Opiómano Inglês», tradução
forçada, diga-se, afirmava haver uma rede subterrânea, marginal, na cidade de Londres, não
cartografada pela polícia e pelas instituições políticas. Era terreno livre. Os dadaístas, os letristas e
os surrealistas e muito mais tarde os situacionistas praticaram-na na forma de desconstrução da
palavra e da deambulação livre em corredores libertários. Na construção de situações irreversíveis.
Mas sem se superarem. Precisamente: o verdadeiro aqui, não superou o falso. Assim, toda a deriva
que realizámos, muitas vezes sem sentido, nas ruas e becos nocturnos, só teve consequências na
construção de mercadorias irrevogáveis: os livros e as ideias que eles trazem. O teor do que são
feitos. A forma. A cadência e a recusa da «inovação». Até porque, sabemo-lo, quando o patrão
exige inovação, o escravo honesto é o primeiro a proclamá-la.»
Nunca quisemos aderir à escravatura.
António Luís Catarino, Abril de 2024