Relógio D'Água, Dezembro de 2020
Um livro de 2020 de Ana Teresa Pereira, cuja obra foi já aqui referida várias vezes. Há aqui uma espécie de impossibilidade: por mais que tentemos conhecer a autora e a seguirmos regularmente, mais se torna um mistério insondável. Essa estranheza reside no grande depuramento das palavras que a autora nos apresenta, mas que é inversamente proporcional aos sentidos de quem a lê. Tento explicar melhor se me for possível: neste livro, tal como em outros, existem odores que advêm das flores de jardins sempre presentes, cultivados com um rigor impressionante, à inglesa, e que é impossível ignorar. Sentimos esses cheiros em cada página dos seus livros e particularmente neste. Realizamos as imagens dos móveis, das toalhas, das janelas abertas para dias luminosos ou para os lúgubres. Sentamo-nos a ler durante uma tempestade com o odor da terra molhada. Isto não é para todos os autores, daí a particularidade das leituras fantásticas em Ana Teresa Pereira. O ambiente também nos chama para o interior de cada conto ou cada frame aposto numa longa película, porque a sua leitura é claramente cinematográfica e musical. Daí os westerns sempre presentes, os policiais de John Dickson Carr ou de S.S. Van Dine (Ana Teresa Pereira recusa, e muito bem, ser uma literatura menor), as charnecas nevoentas de Sherlock Holmes, o olhar, o corpo e os olhos de Audrey Hepburn, uma senha quase presente para o desejo sexual oculto ou real, o jazz de Art Pepper ou de Charlie Mingus e o maravilhoso Kind of Blue de Miles Davis.
Não se pense, contudo, que há uma leveza no ar dentro destes contos (alguns aproximam-se mais da prosa poética, mas isso é outro assunto). Antes pelo contrário: existe uma carga erótica intensa que se pressente pela presença constante dos corpos, da cor dos cabelos, da expressão dos olhos dos protagonistas, das formas coladas aos vestidos, das mãos que se podem transformar em garras, nos diálogos tão curtos como intensos, como também há igualmente na crueldade das canções das crianças (não é por acaso que ela chama Lewis Carroll) ou na constante impossibilidade de amor destes perseguidores ou perseguidoras ao procurar uma felicidade que afinal se encontram perto de nós em tudo o que tocamos, solitariamente, em objectos ou em pessoas. Não é por acaso que o toque sensorial é tão importante nos livros da autora e a que este não foge à regra.
«Como é possível amar tanto e estar tão sozinho?» é a pergunta que se nos arremete, uma verdade que já vem do princípio dos tempos (lembro-me de Dante e Camões) e que nos acompanha desde sempre, presente na literatura e na poesia, mas da que nos rasga, que não nos deixa indiferente. Com Ana Teresa Pereira, esta pergunta some-se, em ondas, no fim de termos lido um livro dela. Aparentemente, desaparece. Mas não.
alc