Às vezes, entre as centenas de livros que se editam, o mais estranho é que, do meio da indiferença que nos gela e que é o maior dos abismos desta época, surge um leitor, um abelhão todo coberto do pólen que se reservou nalgumas páginas, nalgum desses livros feitos quase secretamente e só em nome dessa hipótese de haver mais alguém vivo nesta língua que quase se deixou de falar, e que está, para os efeitos de perturbação profunda e de mudança, praticamente morta. Daí o espanto quando afinal ainda nos surge um leitor pela frente, alguém vindo do outro lado, abrindo uma esperança de não sentirmos o desconhecido como um vazio, mas ainda como um território que nos desafie. Curiosamente, este leitor calha ser um antigo editor, desses que deu tudo e acabou atirado para a berma, muitas vezes também por esse género de autores tomados pela sanha de saltar para algo com um ascendente publicitário maior. Porque a chamada cultura literária entre nós ainda não fez mais que um punhado de escritores com verdadeira vontade de criar tudo outra vez, e por isso vão perfumando os cadáveres de ontem enquanto se queixam por não haver margem para fundar uma razão que diga respeito ao amanhã.
Diogo Vaz Pinto, sobre um artigo referente à edição da biografia de Manuel de Castro, no perfil da editora Língua Morta. Maio de 2024.