quinta-feira, maio 02, 2024

«Tomás Nevinson», Javier Marías

Alfaguara, 2021. Tradução de Vasco Gato
«Tomás Nevinson» é uma personagem ambivalente. Não simpatizamos logo de início com ele, até pelo que faz. Trata-se de um agente secreto, um detective, por vezes mais espanhol, outras mais inglês, ex-estudante de Oxford, onde ainda se recrutam agentes do MI5, MI6 ou no caso de Espanha faz uns favores ao Cesid. 

O seu trabalho leva-o, pelos olhos do leitor, a vê-lo como uma espécie de sacana (no mínimo), que não vê a família e os filhos durante anos, para se esconder no Ulster e ter uma outra mulher que abandona junto com a pequena filha. E aproxima-se novamente da primeira por conveniência dos serviços secretos. Devem reconhecer o nome da sua primeira mulher: Berta Isla, que deu o nome ao romance homónimo. Não direi mais, porque sei o risco que corro, numa página de leitura nas redes sociais, a contar tudo, mas, no final, não poderemos deixar de lhe dar alguma razão. Recusa-se a matar (mais uma vez) porque se sente velho e reconhece que um acto de ódio já não condiz com a sua idade. Envelheceu: «Desde que tenho memória, pensei ódio, deitei-me com ódio no coração, sonhei ódio e acordei com ódio.»

Ódio contra aqueles que matam deliberadamente com ódio. Em atentados cegos, para matar inocentes, tão culpados como as estruturas militares e serviços secretos que nem se importam que eles continuem a matar porque lhes justificam a permanência e a «roupa suja» que lavam. Ou eliminam. Tomás Nevinson já deixou de ter ódio. É um empecilho. Torna-se inútil e age por si. Acabamos por simpatizar com o homem.

Deixo-vos com um seu pensamento que se lhe soltou quando, embora ateu, se dirigiu a uma igreja: «Não acreditamos, mas podemos ter o hábito de rezar, ou de murmurar, tanto faz. A quem? Não a Deus nem a nenhum santo ou virgem, a ninguém em particular, não é preciso destinatário para isso. Limitamo-nos a sussurrar com o pensamento: 'Por favor, por favor.' Ou: 'Ainda não, ainda não.' Ou até: 'Desculpa, desculpa.'Costuma haver silêncio nas igrejas; ou cânticos bonitos, se se tiver muita sorte; ou música de órgão, se ainda se tiver mais. Está-se bem lá...» 

Pergunto a quantos de nós, principalmente a ateus e agnósticos, não se sentiram bem dentro de uma igreja, em busca de silêncio e paz sem que nos dirigíssemos a alguém em particular. Quantos de nós encontram num simples exercício de leitura, o silêncio e a paz cada vez mais difícil de encontrar. Um livro muito bom, que seguimos com verdadeiro prazer de leitura.