segunda-feira, maio 13, 2024

«Planeta» e «De Humani Corporis Fabrica», José Ricardo Nunes

«De Humani Corporis Fabrica» e 
«Planeta», Fotos de Pedro Bernardo, Não Edições, Abril de 2024
«Talvez a poesia se assemelhe às prateleiras
dos supermercados e somente me caiba repor
quando as vejo vazias, por reflexo,
não porque tenha algo de importante a dizer,
imprescindível mesmo, tão implausível
que não possa deixar de ser dito.»

Para se gostar de poesia não é necessário gostar-se de toda a poesia. Não tem sentido. Como também não o terá se nos acantonarmos à impossibilidade da ditadura do gosto ou se não nos ativermos às emoções que a sua leitura produz. Emociono-me ao ler José Ricardo Nunes e com atrevimento posso declarar que é um poeta «meu». Não o perco. Volto a ele quando me encontro face às estantes de casa. Folheio os vários livros publicados com um critério e rigor que adivinhamos no início da leitura e que nos certificamos quando fechamos o seu livro que irá descansar uns tempos, porque parecem vivos. 

Não falarei sobre «De Humani Corporis Fabrica». A última Colóquio/Letras, número 216 de Maio a Agosto de 2024, cujo artigo de Miguel Martins está no site da não editores) analisou-o com detalhe o que me impede de o fazer aqui por manifesto reconhecimento das minhas dificuldades.

Já «Planeta» é um caso que me atrevo a dizer que é dos melhores livros de poesia portuguesa que li. José Ricardo Nunes não se amedronta com o universo, com o macrocosmos e «desce» rapidamente para o jornal, o café, os seixos dos rios, os corpos em ebulição ou na dor indizível atacado pela doença e a própria noção da poesia. 

«Dantes havia mais clareiras
mas então o teu corpo era apenas o teu corpo, não
também memória dele. E mesmo eu
desapareço agora quase por inteiro,
já nem sei onde meter ali o rosto.
Se der com ele é porque chegou ao fim
o tempo que nunca há-de chegar?»

Isto não é para qualquer um, principalmente quendo este exercício é realizado com inegável mestria que nos remete para uma fragilidade tão humana, quanto natural, mesmo que esta ideia se transforme num oxímoro.  Lá está o recurso a uma androginia (será uma página em branco?) e metamorfose magnífica chamando Bowie que surpreendentemente o liga ao poema deste modo ímpar.
Não vou colocar aqui poemas completos, mas sim versos, os tais que me emocionaram. Se quiserem os livros, encomendem-nos à Não Editores ou mandem vir pelas plataformas habituais. Ora vejam este extracto:

«Mas o meu Bowie não o das canções,
Rebel, Rebel, Life on Mars e por aí fora
até chegar a uma falésia e voltar
a não ver a escuridão do mar,
não é o camaleão do show business
que acreditava a cada passo ser diferente
e tanto acreditava nas sucessivas mutações
que todas haveriam de reter um pouco de verdade
que há numa página em branco.»

José Ricardo Nunes termina «Planeta» de uma forma magistral:

«Continuo a viver um dia único.
Já não acredito em nada.
Posso agora realmente acreditar 
que sou mesmo feliz. E não
escalei, não contornei
montanha nenhuma, não mudei
nenhuma montanha de lugar, nunca
dinamitei uma montanha, não
sei para que serve este rastilho.»

É o fogo que arde nestas páginas de «Planeta».