sábado, maio 18, 2024

«Menez | Pomar, Cartas»

 

Documenta, Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, 1ª ed. Outubro de 2022

A edição e apresentação desta publicação coube a Sara Antónia Matos e Pedro Faro. Não são cartas de amor ou de confissões mais ou menos privadas. Melhor dito: são também cartas de amor e privadas. É que este livrinho, em boa hora editado, circunspecto, em nada pedante, trata o processo de criação entre dois pintores consagrados como deve ser tratado: em jeito de confidência, vamos tomando nota das suas dificuldades e crises não só materiais, mas igualmente o terror da tela em branco, as interrupções nas séries temáticas, as impossibilidades várias que de tempos a tempos assolam a criação ou mesmo a destruição de telas, diria, por desespero. Que ninguém se iluda: se houvesse dúvidas que todo o acto criativo é também dor e isolamento, estas cartas, escritas entre 1979 e 1982, provam-no sem  qualquer apelo ou agravo. Mas, mostra, igualmente, a alegria e o contentamento de verem os seus quadros expostos, a tarefa terminada, ou já em vias de ser ultrapassada ou revista pelos próprios autores, muitas vezes em interrelação com os amigos.

Nestas cartas e postais (de Paris, Londres, do Báltico até ao Algarve e Lisboa) em que se revela um carinho e amizade profunda entre Menez e Pomar, lemos algumas confidências sobre galeristas, marchands, editores de catálogos, entrevistas, críticos. E aqui se vê, não sem algum incómodo como é difícil escrever sobre arte, ou sobre a obra criada (coloco a poesia neste saco). É até constrangedor ver como algumas figuras da nossa praça são tratadas pelas críticas que elaboram depois de se deslocarem a exposições «como se fossem a passar pelo Chiado», diz Menez. Mas mais do que isso: parece-me uma recusa, assumida quer por Menez, quer por Pomar, de ser interpretado por quem quer que seja. A tela está ali, o quadro chegou ao fim (processo que confessam ser um dos mais difíceis na criação da obra de arte), qualquer «apreciação» é votada a algum desprezo mais implícito do que explícito, excluindo um outro caso comentado ironicamente pelos dois.

Sobre o processo criativo, deixo um trecho de uma carta de Pomar a Menez que achei interessante de relevar aqui: 
«Porque falar não é mais que buscar companheiros - mesmo quando falas só por falar, por passatempo, buscas um eco de companhia nos que te cercam. E se exteriorizas meditações, se dás formas a pensamentos, ideias, sensações, é com o íntimo fito de ligar a ti os que, sentindo ou pensando do mesmo modo, não tiveram, ou não têm possibilidades de o fazer ainda. Falas, porque desejas que estejam contigo. Fazes um trabalho de ordem colectiva. Comunicas. E só do livre intercâmbio dessas comunicações poderá nascer caminho para qualquer real avanço.» (págs. 14 e 15)

Esta epistolografia também me obriga a levantar algumas questões que se colocam nos dias de hoje se entendermos a importância destas publicações. Hoje, já quase ninguém escreve cartas. O email é o mais usado, já para não falar nos SMS, ou WhatsApp. Valha-nos ainda algumas publicações digitais públicas ou os já antiquados Blogues, que ainda podem reter algumas indicações entre autores e criadores, ou mesmo trocas de opiniões entre eles. Espero que um dia se faça a história epistolográfica, principalmente através de emails, e que seja baseada na pesquisa digital, com a necessária autorização familiar, bem-entendido, como aliás aconteceu neste livrinho. Que muita coisa destas não se perca na nuvem.