terça-feira, agosto 08, 2023

Uma viagem a Montolieu há 13 anos. No Languedoc.


Montolieu, Languedoc. La Village du Livre et des Arts

Há 13 anos escrevia as minhas impressões neste blogue, que mantenho desde 2008, ainda algo longe do Facebook. Descobri Montolieu, no Languedoc, por puro cansaço de viagem e que me obrigou a parar por uma noite. Fiquei lá três. No outro dia, logo de manhã, deparei-me onde estava: numa das «Villages du Livre» comuns, agora, em França. Nessa ocasião estava a iniciar o seu projecto que, tudo indica, terá sido um êxito: treze anos depois, já sem a Deriva, mas não largando os livros, lá vou eu vê-la de novo por uma semana. Talvez tenha tempo de ver tudo e falar com os alfarrabistas e livreiros, sempre dispostos a passar uns tempos numa conversa com estranhos mas ligados a esse mistério que é um livro e como fazê-lo artesanalmente, por exemplo. Após lá estar nos próximos seis dias deixarei a minha impressão gravada aqui. Como o fiz há 13 anos no meu Deriva das Palavras, porque a teoria da deriva existe mesmo:

«Imaginem-vos cansados, mal dormidos, com alguma fome e a precisarem de descanso total depois de percorridos muitos quilómetros (entre os quais muitos a pé, em cidades europeias). Depois de pararem em cafés, em estradas secundárias do Languedoc e do País Cátaro e depois de desconfiarem do turismo de Carcassone, onde se encontravam milhares de pessoas, têm acesso a um lugarzinho chamado Montolieu, de 760 habitantes segundo um censo de 2000, com 15 livrarias. Quinze livrarias e alfarrabistas! Para não falar de um Hotel em cujo hall de entrada esperava que entrasse o inspector Maigret a todo o momento. Não faltava a Abadia (fortificada, claro) não estivéssemos nós em território de revoltas camponesas e hereges. Por falar nisso, a sede do PCF, outrora forte na região, foi transformada num estranhíssimo «Espaço Che» onde pulavam algumas crianças e outros, mais velhos, bebiam café e bolos. Os idosos, provavelmente sem paciência para gerirem «espaços», jogavam no jardim central. Demorei-me dois dias, quase três e ainda hoje lá estaria, não fossem as sempiternas «obrigações».

Mas 15 livrarias e alfarrabistas, duas editoras, ateliers de produção artesanal de livros e ilustrações, bibliotecas numa pequena vila, mesmo que (soube-o depois) se lhe desse o nome de «village du livre» é obra que me custou uns euros (não muitos) em livros (atenção que vim com um saco cheio deles, pagando por um livro do século XVIII 6 euros, com desconto final de 1 euro!). Perdi-me naquilo, acreditem. Como me perdi na leitura de alguns livros, entre cerveja, cigarros e café do verdadeiro arábico, como estava escrito no tal hotel. O jazz e a música clássica esperavam por nós ao fim da tarde, ao ar livre, em restaurantes e poucos bares.

A história destes sortudos 760 habitantes é simples: nos anos 80 um bibliófilo de Paris, farto de estar por lá, criou, com a ajuda da Mairie e de uns quantos entusiastas locais, condições para virem com armas e muitas bagagens alfarrabistas de toda a França (e alguns ingleses também) para Montolieu. A pequena vila ainda hoje está em recuperação deste sonho, depois de ter falecido o seu mentor. Mas aquilo não pára. Só dele, de Michel Braibant, uma grande e antiga fábrica foi adaptada para um enorme lugar onde se pode vender e comprar livros de todos os géneros. Não sem que nos lembrassem que aquela antiga fábrica foi lugar de exílio forçado de 400 republicanos espanhóis que fugiam de Franco e que aquela pequena vila se recusou a entregar. A bandeira da Espanha republicana está lá a recordar-nos.

Nunca antes assentei este nome «Montolieu» no meu mapa mental ou em outro mais físico. Nunca ouvi falar de tal experiência ou desta pequeníssima vila. Mas fui lá ter – esta é, de facto, a teoria da deriva.

António Luís Catarino
21/08/2010»

Montolieu, «La Manufacture du Livre et des Arts».