domingo, agosto 06, 2023

"A Pedra e o Desenho", Julião Sarmento e Gonçalo M. Tavares

 

A água subiu, mas eu estou bem.
O meu pai morreu, mas eu estou bem.
A minha mulher saiu de casa, mas eu estou bem.
A morte já tocou à campainha, mas eu estou bem. (pag.71)

A linguagem é uma forma de desenhar no espaço vazio, no ar, com mão nenhuma. (pag.49)

Uma exposição de Julião Sarmento, em 2016, «O Peso e o Gesto», fez com que o pintor e desenhador convidasse Gonçalo M. Tavares a escrever os textos para o seu catálogo. O resultado foi o de publicar um outro projecto comum com outros textos do escritor e desenhos inéditos de Julião Sarmento que pouco ou nada teria a ver com os da referida exposição. A morte do pintor, em 2021, impediu-o de ver a publicação do livro em Julho de 2022, mas aí está ele pela mão da Relógio D'Água. Lemos, numa breve nota inicial de Gonçalo M. Tavares, um dos maiores escritores contemporâneos, este trecho que retiro: «No dia da morte de Julião, fiquei com o livro nas mãos, há muito a rever infinitamente as mesmas frases, pensando na inutilidade de tanta coisa e no absurdo. Este livro é, pois, também, uma homenagem ao amigo Julião. Um festejo de vida.»
O desenho e o texto, a colagem e o traço, fazem a maravilha deste estranho «A Pedra e o Desenho». Quem quer que ame o risco, entendido nos dois sentidos que a palavra supõe, gostará deste livro e fixar-se-á obrigatoriamente em palavras e imagens feitas à medida dos dois autores. Registo um que não me sai do pensamento: «(...) O que é o momento decisivo? É o momento em que não podes adiar, tens de marcar com tinta o espaço.
Cuidado: que a mão não trema, não falhes o teu traço.» (pag.64)