sexta-feira, agosto 25, 2023

«Debaixo do Vulcão», Malcolm Lowry

 

Relógio D'Água, 2007. Tradução do prefácio, Manuel Alberto. Tradução: Virgínia Motta
México, finais dos anos 30. Um país sempre em convulsão, após o fim da revolução socializante de Cardenas, acompanhando um mundo a preparar mais uma guerra mundial. Malcolm Lowry esteve dez anos para finalizar este livro impossível de catalogar, nem teria interesse em fazê-lo. O escritor avisa-nos, num prefácio à edição francesa e que a editora portuguesa teve a feliz ideia de o incorporar, que teve de lutar contra os editores que não só o recusavam durante anos seguidos, mas igualmente com aqueles que, aceitando a obra, pediam-lhe, contudo, para a encurtar. Nunca cedeu e a sua quarta versão aí está tal como foi a vontade de Lowry. Um extraordinário livro que é um clássico, tal como ele tinha vaticinado aos seus editores americanos e ingleses.
Mas Lowry solicita-nos a nossa atenção para mais umas quantas questões que a leitura de uma obra estranha e violenta pode acarretar. Em primeiro lugar, a cadência da narrativa que ele, no prefácio já referido, compara à poesia, a um texto poético onde por vezes se tem de ler duas a três vezes a mesma frase para entender o seu sentido, ou melhor, o sentido que lhe queiramos dar; segundo lugar e já que falámos em sentidos, este é sem dúvida um livro emocional, visto por uma personagem alcoólica e bebedora de um extracto da mescalina, o mescal, que é alucinogénio. No México era absolutamente legal, que faz com que Malcolm Lowry, que criou o seu alter ego na figura de Geoffrey, um cônsul britânico naquele país, tivesse várias crises alcoólicas e psiquiátricas graves, estando internado duas vezes, também, ao que se julga, por amor pela actriz Jan Gabrial que conhece em Granada e que, no romance, terá o nome de Yvonne. A Espanha e a Guerra Civil, nomeadamente a frente do Ebro, será uma constante em todo o «Debaixo do Vulcão».
Mas também a descrição das alucinações de Lowry e digo-vos que é raro, mesmo nos impressionistas do absinto e depois pelos dadaístas e surrealistas ou nos que vieram depois deles e que tentaram entrar em estado de loucura (não comendo ou dormindo dias seguidos) para com isso conseguir escrever as suas impressões sonâmbulas, encontrar visões do inferno tão imensamente ternas, violentas e belas como encontramos neste livro. Por isso ele acreditava nos anjos, fossem eles do mal ou do bem numa terra que cultiva a morte como o fazem os mexicanos, o que talvez por isso, seja o povo dos mais felizes do mundo. E também dos mais violentos, diga-se. Deixo-vos com uma das alucinações não de Geoffrey, mas de Yvonne que experimenta o mescal pela primeira vez tentando perceber a decadência irremediável daquele (que desembocará na sua morte), escritas e registadas por Lowry (ele dizia-se um registador dessas mesmas alucinações):
«Repugnante, áspero e sabendo a éter, o mescal, a princípio, não lhe produziu calor no estômago; somente, como a cerveja um frio intenso. Mas deu resultado. Fora do pórtico, uma guitarra, ligeiramente desafinada, atacou «La Paloma». Uma voz mexicana cantava, e o mescal continuava a produzir os seus efeitos. Afinal, possuía a qualidade de uma boa bebida forte. Onde estaria Hugh? Teria encontrado finalmente ali o Cônsul? Não, ela sabia que ele não se encontrava ali. Olhou em torno de El Popo, uma casa morta e sem alma, que vibrava e gemia,, como o próprio Geoff poderia ter dito - um mau fantasma de um restaurante americano à beira da estrada; mas já lhe não parecia tão medonho. Escolheu um limão de entre os que estavam na mesa e espremeu umas gotas para dentro do copo. Contra o costume, tudo aquilo lhe levou muito tempo a fazer. De repente, deu porque estava a rir para si própria de forma singular. Qualquer coisa ardia dentro dela, explodia e, mais uma vez, também, no seu cérebro se desenhou uma mulher que batia incessantemente com os punhos no chão...
Mas, não, não era ela que estava a arder. Era a casa que na sua imaginação criara. Era o seu sonho. Era a quinta, era Órion, as Plêiades, era a casa de ambos à beira-mar. Mas onde era o fogo? Fora o Cônsul quem primeiro dela por ele. Que pensamentos insensatos, pensamentos sem forma nem lógica eram aqueles? Estendeu a mão para outro mescal, o mescal de Hugh, e o fogo apagou-se, foi dominado por uma onda súbita, que  a penetrou inteiramente - uma onda de desesperado amor e ternura pelo Cônsul. (...)» (pág. 303)
Lowry vem a morrer precocemente em 1957, em Sussex, após internamentos, viagens contínuas em busca de uma deriva salvífica, bebendo muito álcool, contando com vários divórcios, abuso de barbitúricos e uma escrita nem sempre compreendida. A este inglês, ex-estudante em Cambridge, solidário para com os mais fracos e do lado certo das guerras que presenciou, foi-lhe  passado uma certidão de óbito por um médico, talvez igualmente poeta que apôs a frase seguinte: «Death for misadventure».
 
António Luís Catarino