Alma Azul, Outubro de 2008, tradução: Manuel Dias Soares, Capa: Celso Lopes
Livro tão inquietante para nós, como impiedoso para com a sociedade literária do seu tempo escrito por Charles Baudelaire sobre a vida e a obra de Poe. E que dois autores! As ideias expressas em forma de artigo ou de palestra, portanto não dado a grandes elucubrações. Antes pelo contrário: à boa maneira de Baudelaire, firme e seco, sem grandes adjectivos ou loas desnecessárias a Poe, aponta a hipocrisia de quem, reconhecendo o génio de Poe, não consegue retirá-lo da miséria, da doença ou do opróbrio constante. Isto remete para proprietários, editores, falsos amigos, escritores e críticos literários. Baudelaire não o chora, não mostra qualquer pena, mas reconhece a dor de um alcoólico que não se consegue curar e que contou com várias recaídas: «Nunca um homem tomou tantas liberdades quanto às regras da sociedade, desconheceu os que encontrava e se interrogou por que, certos dias, era recebido nos cafés de baixo extracto social ou por que lhe era vetada a entrada em lugares onde bebiam as ''pessoas honestas''. Nenhuma sociedade absolveu tais coisas, ainda menos uma sociedade inglesa ou americana. Poe já tinha o seu génio a fazer-se perdoar; ele havia feito no Messenger uma terrível caça à mediocridade; a sua crítica tinha sido disciplinante e dura como a de um homem superior e solitário que não se interessa senão pelas ideias. (...) Os rancores aumentaram, a solidão fez-se à sua volta. Na França (Paris), na Alemanha, ele teria encontrado facilmente amigos que o teriam compreendido e aliviado; na América, era preciso que ele ganhasse o seu pão à força. Assim se explicam perfeitamente o alcoolismo e a perpétua mudança de residência. Ele atravessava a vida como um deserto e mudava de lugar como um árabe.» (pág.34 e 35). Morre igualmente a sua mulher bastante nova o que o marca indelevelmente.
Baudelaire chega a pôr em causa a verdade das afirmações dos biógrafos, bem longe da análise dos horrores do ensino interno inglês, cujo pai adoptivo americano de Poe o enviou sem apelo, nem agravo; pai adoptivo esse que o deserda completamente ao que se supõe por ciúme da relação entre Poe e a sua segunda mulher, não esquecendo de referir também o facto, que Baudelaire realça, que o autor nunca tenha conhecido os seus pais e que, mesmo oriundos de uma família (paterna) rica, tivessem a ousadia de escolher profissões ligadas à arte e ao teatro. Morreram, como Poe, na miséria e extremamente novos. Depois de apresentar uma citação algo extensa (e que não consigo aqui expôr) de Poe sobre os anos passados nesse colégio interno inglês convida-nos a analisá-lo afirmando: «Quanto a mim, sinto exalar desse quadro de colégio algo como um perfume negro. Sinto aí circular o calafrio dos primeiros anos de claustro. As horas de castigo, a dor da infância doentia e abandonada, o terror do mestre, nosso inimigo, o ódio dos camaradas tirânicos, a solidão do coração, todas essas torturas da adolescência Edgar Allan Poe as experimentou. Jovem, ele ama a solidão, ou antes, ele não se sente sozinho; ele ama as suas paixões. O cérebro fecundo da infância torna tudo agradável, ilumina tudo.» (pág.16). E, como sabemos, iluminou a escrita de Poe até ao fim dos seus dias e em condições tão diversas, quanto penosas ou eufóricas. Uma vida que se confunde com o génio literário de um autor como Poe, analisado por outro génio poético. Há poucos livros assim.
«O Corvo» e «O Gato Preto», este último também editado pela Alma Azul, é claramente elogiado por Baudelaire como dos melhores contos que alguma vez terá sido escrito, se bem que, para Poe, «Eureka» foi o seu livro mais querido e durante muito tempo sonhado.
Um livrinho que deve estar sempre connosco, mesmo dos que não sigam Poe ou Baudelaire com frequência. O que, compreendendo-se que não se consiga estar sempre a ler os clássicos, não deixará de constituir uma falta que deverá ser rapidamente ultrapassada, não vamos nós deixarmos encantar pelo «falso belo» de hoje.