quarta-feira, dezembro 22, 2021

Uma legítima e pouco conhecida arte de viver


Além de uma arte de viver paradoxalmente pouco conhecida hoje, deve conhecer-se esta obra sem quaisquer preconceitos, o que acontece várias vezes quando abordamos literatura teológica e religiosa cristã. E esta recomendação serve para cristãos, agnósticos ou ateus. Talvez somente teológica, porque como o autor diz várias vezes durante o seu «A Arte de viver em Deus» o cristianismo não é uma religião no sentido do «religio» latino, de ligação. O seu autor é Timothy Radcliffe, frade dominicano, viajado, culto não só no sentido clássico mas também contemporâneo, professor em Oxford, embora desconfiamos que este último epíteto não lhe é para ser levado demasiado a sério; pelo menos, para este livro escrito enquanto luta contra um cancro terminal. Claramente ao lado do Papa Francisco e da profunda mudança que ele protagoniza na Igreja, dá-se conta, durante a sua leitura, que muitos dos mitos urbanos nascidos da crítica ao catolicismo caem pela base na análise aturada que faz Radcliffe: a questão do corpo, da razão e do pensamento, do peso dicotómico do mal e do bem, da crítica ao capitalismo (quando se cita Naomi Klein e David Graeber está quase tudo dito), da ideia do pecado, do amor e do ódio, do sexo, da crise ambiental, da tecnologia dominante e dominadora, realçando sempre de que tudo o que é humano não pode ser estranho (Marx?). E não hesita uma só vez quando vai buscar Bruno Schultz, Levi, Bakhtin ou Wittgenstein. 

Não quero de modo nenhum fazer aqui uma síntese porque estava votado ao fracasso, embora ele assuma que o faz. Pena que as citações de Timothy Radcliffe que vou aqui colocar possam correr o risco de descontextualização. No entanto, arrisco:

«Jesus foi inteiramente obediente ao Pai, mas não era um zombie robótico. A verdadeira obediência é inteligente, quationadora, sem medo de duvidar e experimentar, na sua demanda de verdade. É uma conversação paciente...», pág.43

«A obediência da fé assemelha-se mais a ouvir, numa atitude expectante um quarteto de cordas de Beethoven do que a obedecer a um agente policial.» pág.44

«A compreensão cristã do que significa estar vivo é inteiramente contracultural.» pág.51

«O sangue vermelho nas nossas veias contém ferro nascido das estrelas. Escreveu o teólogo e cientista de Oxford, Arthur Peacocke: '' Cada átomo de ferro no nosso sangue não existiria se não tivesse sido produzido numa explosão galáctica, há milhares de milhões de anos, e se, por fim, não se tivesse condensado para formar o ferro na crosta da Terra, da qual emergimos.'' A real substância dos nossos corpos é inimaginavelmente antiga. Não poderia o Cristianismo, por seu turno, alargar a imaginação científica, afirmando que a emergência dinâmica da vida complexa e da consciência, que a teoria evolucionista urde, não acaba num universo esgotado, mas encontra uma realização para lá do alcance da ciência? » pág.70

«[Citando George Eliot] O crescimento do bem no mundo depende, em parte, de atos sem história; o facto de as coisas não estarem tão mal convosco e comigo como poderiam estar, deve-se em parte aos que viveram com fidelidade uma vida oculta e descansam em túmulos que não são visitados.» pág.99

«Estar vivo é encaminhar-se para a maturidade, ao passo que muitas manifestações da modernidade acorrentam as pessoas ao infantilismo.» pág.125

«Raramente encontrei a famosa ''culpa católica'' na minha infância. O catolicismo em que eu cresci e fui educado não estava oprimido pelo escrúpulo. Para mim, o medo era vergonha. O importante era não ser descoberto. Mas a culpa infectou algumas formas do catolicismo irlandês [eu diria, do ibérico, também] tingido de escrupulosidade jansenista. Muitas vezes, morava no sexo. Timothy Egan recorda a sua educação na infância: ''O sexo era sujo. O sexo era vergonhoso. O sexo era antinatural. Pensar nele era mau. A própria premeditação era um pecado e também namoriscar. O sexo tinha uma finalidade: a procriação, o ato sem alegria da reprodução.'' Brian Moore começa uma das sua primeiras histórias com a frase: ''No princípio era a palavra e a palavra era NÃO.''» pág.128

«A palavra paróquia vem do grego paroikeis, que significa um ''visitante'' ou ''estranho''. pág.207

«O cristianismo compraz-se na diferença. Está no seu ADN. A diferença é fecunda. A nossa Bíblia engloba as duas Alianças, Antiga e a Nova. O Novo Testamento não abole o Antigo, como pretenderam alguns dos primeiros cristãos, e o Judaísmo também não é simplesmente substituído pelo Cristianismo. Vivemos na interação da esperança do Antigo Testamento e da consumação do Novo. O Novo Testamento contém, debaixo da mesma capa quatro Evangelhos que descrevem a vida, a morte e a ressurreição de Jesus de modos aparentemente incompatíveis. Um bispo disse-me que, ao tentar explicar a um grupo de presos, porque é que os Evangelhos apresentam narrativas inconciliáveis daquilo que Jesus disse e fez, um deles não viu aí qualquer problema: ''Se todos eles dissessem a mesma coisa, seria um arranjinho!''» pág.230

«Lamentava-se Theodore Zeldin: ''Infelizmente, embora os seres humanos ruminem, cogitem, meditem, joguem com ideias, sonhem e façam inspirados palpites acerca dos pensamentos das outras pessoas, nunca existiu um kamasutra da mente para revelar os prazeres sensuais do pensamento, para mostrar como é que as ideias podem flirtar umas com as outras e aprender a abraçar-se.''» pág.232

«[Citando Romano Guardini: ''A face de um homem que busca apaixonadamente a verdade não é apenas mais «espiritual» do que a do homem com uma mente entorpecida; é também mais face, ou seja, é mais «corpo» de uma forma genuína e intensa...O corpo, como tal, torna-se mais animado...à medida que é mais fortemente informado pela vida do coração, da mente e do espírito.''» pág. 278

«[Citando Lewis Hyde] A lealdade das crianças das escolas, o conhecimento indígena, a água que se bebe, o genoma humano - tudo está à venda.» pág.303